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Muito além do latim: papa Francisco tenta moldar a Igreja Católica do futuro

Muito além do latim: papa Francisco tenta moldar a Igreja Católica do futuro

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Leva-se cerca de 100 anos para implementar as decisões de um Concílio de forma plena. Essa observação foi feita pelo próprio papa Francisco, durante entrevista ao jornal italiano Avvenire. O Concílio Vaticano II, o evento mais determinante na vida da Igreja Católica do século XX, aconteceu entre 1962 e 1965, mas quase 60 anos depois, suas reformas nunca foram completamente postas em prática.

Com o motu proprio “Traditionis Custodes” (Guardiões da Tradição, em tradução literal), publicado no dia 16 de julho, Francisco tenta avançar nesse prazo, mirando em um projeto de Igreja que sobreviva ao seu pontificado. A normativa do Pontífice argentino é apenas superficialmente sobre a liturgia, e está menos preocupada com a missa em latim propriamente dita e mais em enfrentar o sectarismo que ameaça dividir a instituição, e que tem na recepção do Concílio Vaticano II um ponto central.

O “Sacrosanctum concilium”, documento do Vaticano II sobre a reforma litúrgica, cujas principais modificações foram o uso da língua vernácula de cada local, a simplificação dos ritos e o altar separado da parede, em que o padre celebra voltado para o povo, encontrou no pontificado do papa Francisco a ocasião perfeita para a sua revisão de rota, uma vez que os reinados dos seus antecessores representaram um “freio” pontifício na plena implementação do Concílio.

João Paulo II e Bento XVI, a bem da verdade, tentaram promover as mudanças impostas pelo Vaticano II, mas ao mesmo tempo em que se esforçaram para acomodar aqueles que resistiam à força renovadora da assembleia. Segundo o papa Francisco, na carta que acompanha a publicação do seu decreto, textos como o “Ecclesia Dei” (1988), e o “Summorum Pontificum” (2007), do papa Bento XVI, que tornou legítimo o uso do rito pré-conciliar, contribuíram para alimentar dúvidas e divisões, mesmo que desintencionalmente, sobre a legitimidade da reforma litúrgica proposta pelos bispos conciliares da década de 1960.

Desde que assumiu o Trono de São Pedro, em 2013, após a traumática e surpreendente renúncia de Joseph Ratzinger, Francisco vem enfrentando uma oposição feroz, sem precedentes na história moderna da Igreja Católica. E muitas dessas críticas e ataques emanam dos setores eclesiais mais tradicionais e conservadores da instituição, que ainda resistem ao processo de recepção do Vaticano II, tão defendido por este papa atual, e que se agarram à forma extraordinária do Rito Romano, muitas vezes chamada de “Missa Tradicional”, com unhas e dentes.

O Summorum Pontificum, que deveria funcionar como um “ramo de oliveira” para os tradicionalistas, a exemplo dos lefebvrianos, críticos mordazes do Vaticano II, acabou fomentando o sectarismo dentro das fileiras católicas ao ser instrumentalizado pelos ultraconservadores que se opõem ao papa, usado para desacreditar a grande reforma do Concílio e minar a autoridade papal. Nesse sentido, um problema muito mais de “soberania” e “eclesiopolítica”, do que meramente litúrgico.

Com o novo decreto, que revoga de modo contundente a decisão do papa emérito Bento XVI, o Pontífice jesuíta busca proteger o legado do Vaticano II e incentivar a unidade da Igreja ao promover uma “revolução cultural”, tendo a liturgia como ponto de partida. Além de favorecer a plena implementação da assembleia universal de 1962 e a fidelidade aos bispos e ao Santo Padre, Francisco busca um futuro para a instituição que seja à imagem e semelhança do que vislumbrou o Concílio.

Hoje, o rito antigo, em que a missa é oficiada em latim, de costas e com outro missal, ainda é adotado por alguns grupos de católicos na Europa Central e nos Estados Unidos, mas exerce grande atração e é fonte de interesse para os fiéis e sacerdotes mais jovens, por exemplo, e acabou criando espécies de “paraísos tradicionalistas”, onde os guerreiros culturais conservadores, que engrossam as fileiras da Igreja anti-Francisco, mantém à distância o que eles consideram “heresias pós-conciliares”.

Francisco já manifestou preocupação com a “rigidez” na formação sacerdotal e com uma certa tendência dos novos padres de se afastarem do Vaticano II. Diante desse contexto, o Traditionis Custodes e suas restrições impostas às celebrações da missa pré-Concílio são as armas escolhidas pelo papa argentino para tentar vencer a guerra ideológica que a Igreja atravessa entre suas distintas correntes, especialmente a do setor ultraconservador, e que Francisco acredita representar um perigo real de divisão.

Ao dificultar e limitar o uso do rito antigo, o “Rito Tridentino”, até a iminência da sua quase extinção, Francisco não só endurece o cerco contra os tradicionalistas da Igreja, mas também busca criar um terreno infértil para que novos adeptos da rejeição teológica do Vaticano II, protegidos pela justificativa da defesa da liturgia pré-conciliar, floresçam dentro do catolicismo. É improvável que isso aconteça imediatamente, claro, já que aqueles que eram gratos a Bento XVI por permitir que qualquer padre celebrasse a forma extraordinária do Rito Romano já erguem suas vozes em desacordo ao decreto do papa.

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O motu proprio promulgado por Bergoglio admite o precedente para que os bispos locais permitam ou não o uso do Missale Romanum de 1962 em suas dioceses, e muitos deles, os mais alinhados com as vertentes tradicionalistas da Igreja Católica, já garantiram que permitirão. Portanto, a missa em latim não desaparecerá tão cedo, e a herança que o papa espera deixar no que diz respeito à efetivação do Concílio Vaticano II só virá com o tempo e com as futuras gerações, caso o Pontífice consiga consolidar outra importante reforma do seu pontificado: substituir o establishment clerical instituído por 35 anos de conservadorismo imposto pelos papados de João Paulo II e Bento XVI.

Logo, para consolidar a sua revolução cultural no seio do catolicismo e garantir o legado do Vaticano II, este Pontífice precisa, pari passu, obter sucesso na missão de construir um episcopado global que reze pela sua cartilha. Em seus oito anos como papa, Francisco conseguiu alterar a geopolítica do Colégio de Cardeais, instituição que deverá eleger o seu sucessor, compondo um colegiado que, pela primeira vez na história, é menos europeu e mais latino-americano, asiático e africano, mas ainda está longe de conquistar o mesmo feito a nível universal e mudar a face da Igreja que ele herdou.

Mas, para garantir que suas reformas — a litúrgica e eclesiológica — perdurem, reinar “por decreto” não é o suficiente. Afinal, como o próprio papa Francisco já provou, ao revogar normas de seus antecessores, não é impossível que o futuro ocupante do Trono de São Pedro, dependendo de quem emergir eleito do próximo Conclave, também anule algumas normas do seu predecessor, como o Traditionis Custodes, por exemplo. Francisco parece estar ciente que é preciso, então, uma “mudança de espírito” profunda na hierarquia da Igreja, com seminaristas, padres e bispos que estejam alinhados com a sua abordagem “bergogliana” do catolicismo.

Essa tarefa, porém, além de hercúlea, é uma verdadeira corrida contra o relógio. Aos 84 anos, recém-saído de uma cirurgia no intestino para tratar de uma estenose diverticular, é fácil afirmar que o pontificado do argentino Jorge Mario Bergoglio está mais perto do fim do que longe. Então, para moldar a Igreja do futuro e dar um caráter irreversível às suas reformas e à plena recepção do Concílio Vaticano II, o papa precisa “pisar no acelerador” das transformações que já vêm pondo em marcha.

O que está em jogo é a própria primazia papal. Para Francisco, a missa pré-conciliar é um símbolo não apenas da rejeição à autoridade do Vaticano II, mas também dos papas que a sancionaram, como João XXIII, que convocou o Concílio, e Paulo VI, que reinou durante suas três sessões finais. A publicação do Traditionis Custodes se insere nesse esforço. Se o Pontífice terá sucesso, ou se os conservadores, que afirmam que a assembleia de ​​1962 “traiu” a tradição e a “verdadeira Igreja”, sobreviverão ao pontificado do jesuíta, somente o tempo dirá. Uma coisa é certa: a lealdade ao papado e a lealdade ao Vaticano II se tornaram, nesse pontificado, para todos os efeitos, inseparáveis.