Notas sobre o valor e potencial de articulações corporificadas decoloniais Sul-Sul
Minha própria descoberta da Teoria Queer e da Teologia Queer esteve menos conectada a conquistas teóricas e relacionada a atividades de pesquisa abstrata do que ao processo de busca por um vocabulário para sobrevivência e uma caixa de ferramentas que pudesse tornar possível o questionamento e a desconstrução de construções normativas aparentemente estáveis de gênero e sexualidade apoiadas por ideologias que se interseccionam significadas pelo econo-heteropatriarcado. Minha própria experiência corporificada vivida como uma pessoa queer dentro de estruturas heternormativas desenvolvida tanto no contexto do ministério religioso quanto na academia na África do Sul me impulsionaram a encontrar linguagem, conceitos, marcos teóricos e parceiras e parceiros de conversa que pudessem tornar possível falar de realidades fora do ou outras ao normativo e imaginar algo diferente. Algo que tenha mais espaço, que seja menos rígido e prescritivo, menos final e mais aberto, fluído e colaborativo. Algo que torne a vida possível em toda sua complexidade, desordem e beleza.
Quando eu reflito sobre o meu trabalho, projetos, parceiras e colaborações eu consigo traçar essa busca nos contornos de seu desenvolvimento. Meu compromisso, em colaboração com outras, de desenvolver uma Teologia Queer Sul Africana tomou muitas formas. Incluiu o aprimoramento da prática pedagógica em Teologia e Religião ao borrar as linhas entre sala de aula e contexto, desafiou a noção de textos autoritativos finais ao encontrar superfícies reflexivas alternativas que permitissem uma reflexão prática e desafiassem as noções normativas da/o especialista ao centrar a experiência vivida corporificada daquelas mais afetadas pelas realidades vividas no cenário no qual gênero, sexualidade e religião se interseccionam.
Essa busca incluiu o desenvolvimento de um método teológico queer descolonizador. O trabalho relacionado ao projeto coletivo Stabanisation dá expressão a um método distintamente decolonial do Sul que reivindica termos locais depreciativos como Izitabane e os reanima como lugares de resistência e significado teológico. Isso move a teologia queer na África do Sul para além de importar teoria queer do Norte Global por atacado, insistindo, ao invés disso, no seu enraizamento nos vocabulários, contextos e realidades corporificadas africanas.
Isso tem impulsionado a mim e a outras a insistir em desenvolver teoria, método, prática e conteúdo para além da compreensão única da academia e a trabalhar na intersecção da fé, da academia, da sociedade civil, da política e de governo. Considerando a urgência das realidades relacionadas à violência homofóbica, violência baseada em gênero, a agenda do movimento anti-gênero e as ideologias econo-heteropatriarcais que marcam os corpos queer como “problemas” é imperativo não tratar a teologia como uma teoria abstrata, mas insistir que ela responda às questões urgentes a fim de tornar possível transformação eclesiástica e social tangível. O recente encontro Imagining a Queer Africa [Imaginando uma África Queer] que aconteceu em Cape Towm e reuniu ativistas, pesquisadoras, lideranças religiosas queer e financiadoras globais para refletir sobre estratégias para lidar com o movimento anti-gênero é um dos exemplos do impacto e importância dessa articulação interseccional.
O projeto tem repetidamente exigido imaginação coletiva. Isso inclui reimaginar o papel que as sagradas escrituras desempenham no processo de construir compreensões de fé sobre gênero e sexualidade contemporaneamente. Ao basear a interpretação bíblica nas realidades vividas e conhecimentos corporificados de comunidades marginalizadas, especialmente pessoas queer marcadas como Izitabane, os textos sagrados são reivindicados como lugares de luta e espaços de esperança. Dessa forma, a Leitura Contextual da Bíblia se torna uma ferramenta decolonial e participativa que rompe com o monopólio de teólogos de elite e líderes religiosos ordenados e empodera comunidades de fé a ler a Bíblia com olhos abertos, feridas abertas e abrir possibilidades para mudança.
Mais recentemente essa dimensão imaginativa do trabalho tem também sido um convite criativo novo para imaginar de maneira queer juntas. Inspirando-me na ideia de futuridade queer de José Esteban Muñoz, eu estou atualmente desenhando ideias relacionadas à queeridade não apenas como uma identidade ou um tema a ser “incluído”, mas ao invés disso como uma força disruptiva e imaginativa que pode transformar o próprio método e horizonte do fazer teológico. Eu estou particularmente atraída pela dimensão de imaginação coletiva desse trabalho porque o cenário acadêmico para o qual eu fui treinada e até mesmo em alguns momentos subscrevi é entendido demasiadamente como um projeto único ou individual. O sucesso de uma contribuição nesse marco continua a ser marcado pela publicação de autoria única, montantes de recursos destinados à pesquisa e elogios acadêmicos individuais. A imaginação queer que me inspira recusa o conforto e a singularidade do individual, resiste a noções do completo, encerrado ou finalizado, e resiste à política de respeitabilidade.
Nesse chamado à imaginação queer coletiva eu tenho sido afirmada, presenteada e desafiada não somente por uma crescente comunidade de estudiosas queer em teologia e religião nos contextos sul africanos, mas por causa de iniciativas de intercâmbio Sul-Sul intencionais, por estudiosas, práticas e teoria queer dos contextos latino-americano e asiático. Minha exposição tem se tornado possível principalmente através de intercâmbios facilitados por Act Church of Sweden numa tentativa de dar expressão à Estratégia para Educação Teológica em um Contexto Global 2020-2025 adotada pelo Conselho da Igreja. Para além de apoiar inciativas bilaterais e multilaterais direcionadas a fortalecer a Educação Teológica, ela também torna possível o intercâmbio e parcerias Sul-Sul. Essas iniciativas de intercâmbio têm me posto em contato e dado acesso a estudiosas e pesquisas (queer) latino-americanas que não apenas têm informado, mas profundamente transformado meu próprio pensamento e práxis.
Na parte final dessa contribuição eu gostaria de refletir sobre alguns dos insights e aprendizados fundacionais que eu reuni ao longo dos anos em numerosos diálogos, encontros e contínuas conversas.
A primeira coisa que me ocorre quando penso na pesquisa queer latino-americana é a intencionalidade deliberada. Eu muitas vezes fico impressionada em como a pesquisa se relaciona com arte, prática e experiência vivida nessa região. Eu encontrei essa intencionalidade mais profundamente no contexto de um devocional litúrgico que fez parte do 8º Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião realizado na Faculdades EST em São Leopoldo, Brasil. Através de música, arte, leitura e reflexão devocional e ação litúrgica corporificada Prof. Andrea Musskopf e um grupo de estudiosas queer apresentaram a passagem da mulher samaritana em João 4 à vida e ela se tornou um lugar de encontro coletivo e revelação. Cada elemento desse devocional falava de intencionalidade deliberada refletida e de um compromisso de transformar liturgia e prática ritual para criar espaços sagrados inclusivos fora ou dentro de igrejas tradicionais. Liturgias e espaços litúrgicos alternativos no processo se tornam lugares de resistência e um novo tornar-se coletivo.
Em segundo lugar, eu encontrei na pesquisa queer latino-americana uma forte articulação de resistência contra as formas pelas quais a religião é enredada com o projeto colonial e como isso encontra expressão na imposição de construções heternormativas e patriarcais de gênero, sexualidade e corporeidade. Esse foco fortemente ressoa com o trabalho de estudiosas de gênero e sexualidade africanas tais como Kapya Kaoma, zethu Matebeni, Stella Nyanzi e Sylvia Tamale, mas também guarda um chamado profundo à ação por pesquisadoras africanas em gênero e religião.
Em terceiro lugar, eu experimentei o desafio inspiracional ao borrar fronteiras setoriais ou contextuais no processo de fazer teologia. Diferentemente de algumas teologias queer do Norte Global que permanecem acadêmicas, muitas teólogas latino-americanas enfatizam teologias desde o corpo e teologias desde baixo. Teologia e a leitura de sagradas escrituras se torna uma prática enraizada nas experiências cotidianas corporificadas de pessoas queer, especialmente pobres, trans e comunidades afro-indígenas, e frequentemente as conectam com a opção pelas pessoas pobres da teologia da libertação.
Finalmente, e possivelmente mais profundamente eu não apenas tenho sido influenciada, desafiada e inspirada pelo trabalho de teólogas queer e feministas latino-americanas, mas pelas conversas e amizades que vão além dos confinamentos de colegialidade na academia. A alegria de celebrar a vida em toda a sua beleza e complexidade em diferentes continentes e contextos tem me transformado, tem me feito ver as coisas em uma nova luz e me desafiado e ir mais fundo, ficar mais perto e ser mais verdadeira às comunidades que estão no centro do nosso trabalho coletivo. Que nossas amizades ultrapassem tudo e que nossas conversas incluem a todas.
Notas:
Econo-heteropatriarcado: Econo-heteropatriarcado como um termo teórico articula as implicações sistemáticas e institucionalizadas nas quais ideologias dominantes como patriarcado, heteronormatividade e capitalismo se alinham para informar construções dominantes e realidades vividas em relação a gênero e sexualidade. A realidade sistêmica sustentada pelo Econo-heteropatriarcado não é uma mera construção conceitual ou uma ideia, mas tem consequências muito reais para corpos e encontra expressão nas complexas realidades vividas situadas na intersecção de realidades socioeconômicas, de classe, raça, gênero e sexualidade.
A Estratégia para Educação Teológica em um Contexto Global 2020-2025 de Act Church of Sweden pode ser acessada no seguinte link.
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