meu pai morreu sozinho. infarto.
no dia 8 de abril de 2002, eu recebi a ligação do iml de arapiraca. fala seca. direta.
eu também estava sozinho. morte e solidão. dois dias depois, após uma longa viagem, o corpo chegou para o enterro. o velório durou minutos.
paul b. preciado, na quarentena do covid-19, me fez recriar essa memória. ao narrar a sua experiência de ser infectado pelo vírus, ele diz: “não tive dificuldade em respirar, mas era difícil acreditar que eu continuaria a respirar. eu não tinha medo de morrer. eu tinha medo de morrer sozinho” (p.b.preciado, 2020).
a solidão como mais uma marca de um vírus. a asfixia do corpo só. a vida no limite do deserto. um espaço habitável por quem precisa ter a coragem de enfrentar os seus demônios – aquilo que cinde, que separa, quebra (diabolos). inclusive o demônio como medo do morrer. a cisão com o tempo-agora. antes da aventura do viver junto em comunidade, a quarentena nos abre a perspectiva, sempre presente, do viver só, mesmo entre outros. um corpo dividido que precisa se sentir de outro modo. não há mais o encontro carne-a-carne. pele. resta-nos corpos-virtuais. e a presença das palavras para se povoar o silêncio. uma ideia de morada coletiva.
não tenho pensado nas políticas de povoamento da casa. live. som. chamadas. aula ead. se é no limiar da vida que se pode encontrar e criar possibilidades de uma vida, de formas-de-vida, é talvez, aqui, que se possa imaginar algo. ou simplesmente, aqui, que eu assuma o colapso de uma subjetividade que não sabe dizer seu mundo. nesse espaço, desejo redimir o silêncio da sua tarefa produtiva, da sua obrigação de espera pela palavra, pelo ofício, pelo dever ser, por um dizer urgente e operativo.
aprendi com vilém flusser que “a separação entre intelecto e língua, entre o aspecto subjetivo e objetivo da realidade, portanto, quebra a realidade. o intelecto supera a língua e dissolve-se. o resto é silêncio”. (v. flusser, 2007, p. 159). estamos no abismo do indizível. o que podemos dizer de nós, do mundo que está ruindo, das formas-de-vida ensaiadas na casa? estamos no colapso da língua e do mundo produtivo.
ainda com flusser: “a explicação da conversação é lógica, a explicação da oração é mítica” (flusser, 2007, p. 159). o terreno da “oração” é o nada-dizer. estar para além da língua. o ruir da palavra. adentramos em um campo propriamente mítico/ficcional. não que a lógica não tenha também a sua ficção. no mítico, o fim do mundo encontra o seu espaço. e também a possibilidade privilegiada de ficcionar subjetividades vindouras. um corpo qualquer. um mundo qualquer. uma subjetividade qualquer – como compreendi em g. agamben. destituir a palavra. ter a coragem do deserto. do indizível. o vazio. uma saída no cenário da regulação da vida pelas políticas de segurança e de trabalho? gestos no silêncio. como escreveu bifo: “não há pânico, nem medo, mas silêncio. rebelar-se revelou-se inútil; então, apenas paremos” (bifo, 2020). parar a vida. um singelo preferiria não, como em bartleby.
essa lembrança me evoca preciado: “sob que condições e de que forma valeria a pena viver a vida?” (p.b.preciado, 2020). não sei bem. ainda estou provocado pelo morrer e pelo fim. talvez isso venha da minha vivência cristã-protestante. como aprendemos na páscoa, entre a cruz e a ressurreição há o silêncio do shabbat, o desconhecido. como preciado, especialmente depois da morte do meu pai, tenho um medo: morrer sozinho. por vezes o demônio se vai. mas às vezes ele teima em aparecer no meu deserto. como metáfora profunda, na remissão do silêncio e vivendo no sábado da incerteza e da insegurança, talvez eu precise ter a força-fraca de sozinho olhar o morrer de um mundo, de um tipo de vida, de alguns modos de relação. como no poema girassol (2019) de ana martins marques,
O sol rodeia o mundo e você
o acompanha
a você pouco importa
que seja ele — o mundo –
a dar a volta
ao sol
à vista aérea do sol contrapõe
seu olho amarelo
fincado à terra e que vê
como nós vemos:
nem mais
nem menos
mas está
mais do que nós
alerta
até que tomba
sua cabeça pesada
que conhece o fardo
o peso da luz
Este ano não floriu
Antes, floria sempre.
Envelheceu talvez
E esqueceu-se
ou viu-se finalmente livre
da pesada obrigação
como uma velha senhora que acorda certo dia
decidida a não arrumar a casa.
Conhecerão
também as plantas
o cansaço?
Floria sempre
a cada ano
indiferente aos acontecimentos
se havia guerras ou desastres
se um trem chocou-se no Egito
com um ônibus escolar
e 40 crianças morreram.
floria
ainda assim
independente da cotação do dólar
das quedas das bolsas
indiferente à ideia de repetição
aos últimos escândalos
flores cíclicas, pontuais
abertas sem razão
(este ano, porém, não).
Indicações de leitura:
BERARDI, Franco Bifo. Crônica da psicodeflação. N-1 edições. 2020.
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2007.
MARQUES, Ana Martins. O livro dos jardins. São Paulo: Quelônio, 2019.
PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del vírus. El País. 2020.
___. A conspiração dos perdedores. Medium – Sara Wagner. 2020.
Professor de filosofia (CSD). Doutor em ciências da religião (UMESP). Interessado em teologia, filosofia e política. Pesquisador, em estágio de pós-doutorado, na UFABC.