Tirando o Santo Daime do armário

Resultados preliminares do survey acerca da população daimista LGBTQIAPN+ no contexto brasileiro no ano de 2025

O Santo Daime é uma religião brasileira de origem amazônica, fundada na década de 1930 na periferia de Rio Branco (AC) Raimundo Irineu Serra – um homem negro, maranhense e que por meio da religião daimista, se tornou Mestre de tantos pelo mundo. Embora o Santo Daime em menos de 50 anos de existência tenha ganhado proporções globais, alcançando adeptos de diversos países – especialmente do Norte Global -, suas estruturas litúrgicas, simbólicas e organizacionais tendem a refletirem muito da trajetória de Mestre Irineu e da sociedade acreana do século XX. Isto é, especialmente no que toca a força do patriarcado como uma das principais fontes de organização daquela sociedade.

Diante disso, como parte de seu processo de transnacionalização, o Santo Daime vem sendo desafiado a se adaptar às demandas de movimentos feministas e LGBTQIAPN+ presentes nos fluxos globais e trazidas por seus novos adeptos.

Nessa direção, como citei em minha tese publicada em 2025, a emergência de lideranças femininas, movimentos de mulheres daimistas por mais espaço, valorização, emancipação e autonomia têm se tornado mais recorrentes na religião. Concomitantemente, denúncias e campanhas contra assédios e assediares, homofobia e outras violências,  também têm vindo à tona. Assim, se por um lado, essas movimentações denunciam elementos nada progressistas e violentos presentes em alguns grupos, por outro, elas têm incentivado a emergência de novos arranjos, flexibilizações, leituras e interpretações teológicas.

No que toca especialmente ao público daimista LGBTQIAPN+, além de denúncias públicas e noticiadas de casos de homofobia, sua presença tem sido cada vez mais marcada dentro da religião. O survey aplicado durante o mês de abril de maneira online, demonstrou que essa população tem crescido cada vez mais no contexto do Santo Daime, especialmente após a pandemia da COVID-19. Diante desses dados que revelam o crescimento dessa presença, não se pode, no entanto, ignorar as tensões que ela revela. Desse modo, buscou-se compreender como pessoas daimistas LGBTQIAPN+ têm vivenciado sua participação na religião e criado arranjos para lidar com as tensões entre pertencimento, reconhecimento e possíveis violências ou exclusões nos diferentes contextos do Santo Daime pelo Brasil.

Neste texto, apresentarei alguns dos resultados preliminares da pesquisa. Trata-se de um relatório que apresenta um panorama inédito sobre a presença e algumas das experiências de daimistas LGBTQIAPN+ no Brasil, com base em um levantamento realizado com 309 respondentes.

Mas o que nos trouxe até aqui?

No ano de 2023, foi publicado pela revista Carta Capital, uma entrevista com a pesquisadora Julia Moura sobre o campo psicodélico brasileiro. Segundo ela, naquele ano, um dos eventos mais significativos do campo teria sido a realização do meu casamento e de minha esposa, Ana Clara de Castro na igreja daimista Céu da Divina Estrela em Santa Luzia (MG). O impacto do evento se deu, uma vez que pela primeira vez no contexto daimista, um casal homoafetivo se casara em uma cerimônia oficial, de farda branca e dentro do salão onde acontecem os rituais e onde, até então, só casais héteros se casavam.

Vale ressaltar que, anterior ao nosso casamento, outras cerimônias alternativas, de casais homoafetivos, já haviam acontecido no contexto daimista brasileiro, e, mesmo tendo ocorrido em ambientes e cerimônias não oficiais, – como foi o caso de Lígia e Klarissa Platero, que documentaram em um texto[1] as negociações e lesbofobias que permearam a organização de sua cerimônia de casamento no Céu do Mar no Rio de Janeiro – essas movimentações já marcavam o desejo por pertencimento, reconhecimento e equidade na comunidade daimista por parte de pessoas LGBTQIAPN+. Além disso, elas são parte fundamental da construção da trajetória e do alargamento de espaços para daimistas LGBTQIAPN+ na religião.

Outro evento relevante no que toca as relações entre Santo Daime e o movimento LGBTQIAPN+ aconteceu em 2025, marcando a primeira vez em que uma religião ayahuasqueira se fez presente em um ambiente inter-religioso LGBTQIAPN+. Isto é, dentre as religiões ayahuasqueiras brasileiras – Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal (UDV) – apenas o Santo Daime teve uma representante no I Encontro Nacional LGBTQIAPN+ de Fé. O Encontro foi realizado pelo Fundo Positivo por meio do apoio do deputado pasto Henrique Vieira (PSOL) que visava reunir estas pessoas para construção de uma carta inter-religiosa contra o fundamentalismo religioso a ser apresentada ao congresso Nacional. O documento foi assinado por Paulina Valamiel como representante nacional daimista, ao lado de outros representantes e grupos ligados às religiões de matriz africana, ao judaísmo, islamismo, catolicismo, evangélicos, entre outros.

Vale destacar que durante a cerimônia inter-religiosa de abertura do evento, o Santo Daime, via Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal” (ICEFLU), que se trata da instituição que protagoniza a expansão da religião foi convocada a tecer alianças com o público LGBTQIAPN+.

“(…) Eu peço a essa bebida, ao ser Divino Santo Daime que nossa igreja honre esse ecletismo [que inspira o nome da ICEFLU] também com as pessoas LGBTQIAPN+ e possa tecer alianças conosco, alianças institucionais e nos entender como sujeitos. Então esse é meu pedido” (Paulina Valamiel).

A partir disso, estando agora publicamente e – documentadamente no Congresso Nacional – fora do armário, os dados a seguir trazem outros elementos ligados ao perfil bastante plural sobre o perfil de daimistas LGBTQIAPN+ e instigam discussões a serem aprofundadas em trabalhos acadêmicos sobre marcadores sociais da diferença, experiência psicodélica, colonialismo e, sobretudo, oferece subsídios para a criação de políticas internas de acolhimento, desejadas por grande parte da comunidade entrevistada.

Perfil geral da amostra

A maior parte das pessoas participantes está na faixa etária entre 25 e 44 anos e possui um alto nível de escolarização: 68,9% têm ensino superior completo ou pós-graduação. A maioria das pessoas se identifica como cisgênero, com destaque para 144 mulheres e 130 homens cis.

Em relação à orientação sexual, as identidades mais prevalentes são:

  • Pessoas gays (34,3%)
  • Bissexuais (32,7%), majoritariamente mulheres
  • Lésbicas (16,2%)

A amostra contou com 9 pessoas trans (5 homens trans – 1,6% e 4 mulheres trans – 1,3%) e 17 pessoas não binárias (5,5%). A maioria das pessoas não binárias é branca, pansexual e reside nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. As mulheres trans se dividem igualmente entre brancas e pardas, com concentração no Sudeste. Já os homens trans, em sua maioria, são brancos e do Nordeste.

Do ponto de vista racial, a maioria das pessoas respondentes é branca (55,7%), seguida de pessoas pardas (30,7%) e pretas (7,4%). Todas as pessoas indígenas que responderam ao levantamento são mulheres, principalmente do Nordeste.

Geograficamente, a maior concentração de participantes está nas regiões Sudeste (39,8%) e Nordeste (26,9%), sendo o Norte a região com menor participação (5,5%).

Tempo de participação no Santo Daime

A maioria das pessoas está na religião há pouco tempo: 25,7% têm entre 1 a 3 anos de farda. Entre as pessoas com mais tempo na doutrina (acima de 23 anos – 6,1% da amostra), predomina o perfil de homens brancos; não há pessoas pretas nesse grupo. Apenas quatro pessoas pardas possuem esse longo tempo de atuação. Esse dado sugere que existe uma maior diversidade racial entre as pessoas recém-chegadas ao Santo Daime, indicando um processo de pluralização racial da religião.

Participação em funções rituais e institucionais

A participação em funções dentro do ritual é alta: 70,9% das pessoas já exerceram alguma função, com destaque para fiscalização. No entanto, no âmbito institucional, essa participação é bem menor: 66,2% nunca ocuparam cargos administrativos. Entre os que ocuparam, destacam-se as funções de secretaria e tesouraria. Nenhuma pessoa indígena ocupa cargos institucionais, e as pessoas pretas estão entre aquelas com menor presença nesses espaços.

Respeito e experiências de preconceito

Quase metade das pessoas (48,2%) sente-se muito respeitada nos grupos que frequenta. Contudo, pode-se afirmar que mais da metade da amostra não se sente tão respeitada assim. Entre aqueles que não se sentem respeitados, predominam pessoas pardas e pretas de várias regiões do Brasil, incluindo uma mulher trans e uma pessoa não binária (ambas brancas).

Curiosamente, a maior parte das pessoas trans e não binárias relatou sentir-se de bem a muito respeitadas em seus grupos.

Quanto à vivência de preconceito, 71,2% dos respondentes disseram nunca terem sofrido discriminação no contexto daimista. Entre os 28,8% que afirmam ter sido alvo de violência, predominam homens gays, o que chama a atenção e convoca para mais pesquisas acerca das masculinidades presentes na religião. De todo modo, as formas mais frequentes de violência relatadas foram:

  • Comentários negativos e desrespeitosos (53,8%)
  • Exclusão social (32,8%)
  • Interferência na performance de gênero (18,5%)
  • Assédio moral (18,5%)

Duas meninas cis, nascidas na doutrina e do Nordeste, relataram casos de assédio sexual, destacando a vulnerabilidade das pessoas mais jovens (menores de 18 anos).

Também é alarmante que pelo menos 12 pessoas tenham sido impelidas ou sugestionadas a práticas de cura com o “daime”, hinos e orações para reversão de sua sexualidade e/ou identidades de gênero dissidentes. Praticas como essa podem configurar terapia de reversão, já criminalizadas pela Resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia em vistas à criminalização nacional de maneira abrangente via PL 504/2020.

Percepções sobre inclusão e representatividade

As percepções se o Santo Daime é um espaço aberto ou fechado para pessoas LGBTQIAPN+ se dividem. Porém, a grande maioria (88,4%) considera importante a existência de um órgão representativo para essas pessoas dentro do contexto daimista.

Perfis específicos e correlações relevantes

  • Perfil racial e violência: As pessoas pardas e pretas são mais numerosas entre os que relataram não se sentir respeitados e entre aqueles que sofreram preconceito. Entre os pretos, a maioria é composta por mulheres, e há menor acesso à ocupação de cargos institucionais e à pós-graduação. Indígenas não ocupam nenhuma posição institucional.
  • Perfil das pessoas com mais tempo de doutrina: Entre aqueles com mais de 23 anos de farda, predomina o perfil masculino, branco e do Sudeste. Este grupo apresenta menor diversidade racial e maior tendência a ter sofrido comentários negativos.
  • Idade e dissidências de gênero: A pessoa trans mais velha da amostra é uma mulher trans parda, do Sudeste, com 55-64 anos e entre 13 a 17 anos de farda. A pessoa não binárie mais velha tem entre 45-54 anos, é branca, do Sudeste e possui de 4 a 7 anos de farda. A maior parte das pessoas não binárias está entre as mais recentes na religião (1-3 anos de farda).
  • Jovens e violência: Entre os menores de 18 anos, predominaram mulheres, e o tipo de violência mais recorrente foi o assédio sexual.

Conclusão

Os dados deste levantamento revelam um cenário complexo no qual a presença LGBTQIAPN+ no Santo Daime está em expansão, trazendo maior diversidade racial, sexual e de gênero para os espaços daimistas. No entanto, persistem desafios relacionados à inclusão, ao respeito e à ocupação de cargos de poder, especialmente para pessoas pretas, pardas e indígenas, indicando a interseccionalidade da luta.

Diante desse cenário, é fundamental que as principais instituições daimistas, como o ICEFLU e outras igrejas centrais, assumam um papel ativo na criação de políticas internas de acolhimento, respeito e visibilidade para pessoas LGBTQIAPN+

Em um momento em que vivemos a chamada Renascença Psicodélica, na qual o uso terapêutico e espiritual de plantas e substâncias enteógenas ganha projeção global ,o público LGBTQIAPN+ desponta, ao lado de veteranos de guerra, como um dos segmentos que mais podem se beneficiar dos potenciais transformadores e terapêuticos da expansão da consciência proporcionada pelos psicodélicos. O Santo Daime, enquanto religião amazônica psicodélica que historicamente se apresentou ao mundo como pioneira na legalização e internacionalização da ayahuasca, demonstrando uma postura progressista frente à guerra às drogas, não pode se permitir caminhar na contramão desses avanços. Ao contrário: cabe às suas lideranças e instituições institucionalizar seu apoio a pessoas e coletivos LGBTQIPAN+.

Notas

[1] Uma experiência de casamento homossexual no Santo Daime. Disponível em: <https://www.chacruna-la.org/artigos-pt/uma-experiencia-de-casamento-homossexual-no-santo-daime> . Acesso em: 19/08/2025.

Paulina Valamiel

É Doutora em Sociologia pela UFMG. Cofundadora da organização Hijas del Sur – Rede interdisciplinar de saúde das mulheres, cultura e psicodélicos na América Latina. Coordenadora do Comitê de Diversidade da Psychedelic Parenthood Community. Participa do Grupo de Pesquisa Indecências – Religião, Gênero e Sexualidade (ReGeSex).

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