O riso, o prazer e a celebração de corpos dissidentes têm sido frequentemente marginalizados pela tradição cristã hegemônica. Entretanto, o surgimento das teologias queer – especialmente aquelas enraizadas na experiência latino-americana – tem reivindicado tais afetos como campos legítimos de revelação teológica. Este artigo examina a alegria como tecnologia de sobrevivência, não como metáfora, mas como prática teológica e epistêmica, tomando como referências principais o artigo de Matthew B. David e Andrew Kam-Tuck Yip, Via(da)gens Teológicas de André Musskopf e o Guia de Apoio ao Esboço da Declaração de Fé da ICM.
Alegria Queer: Um Saber que Transborda
No artigo “The loving queer gaze”, os autores afirmam que a alegria queer é um saber relacional, visceral, encarnado – uma forma de conhecer a partir do corpo, da afetividade e da coletividade dissidente. A alegria, neste contexto, não é alienação, mas ferramenta de sobrevivência, de reinvenção de si e de reconstrução de mundos possíveis.
Ao se referirem à alegria como um olhar amoroso queer [loving queer gaze], os autores desafiam a lógica cis-heteronormativa que patologiza os afetos fora da norma e propõem que o prazer, o humor e a estética do escândalo queer são também epistemologias críticas, capazes de gerar saberes libertadores.
Teologia Queer e Ambiguidade Epistêmica
Em “Via(da)gens Teológicas”, André Musskopf propõe a ambiguidade como princípio epistêmico para uma teologia queer no Brasil. A alegria, sob essa ótica, não pode ser pensada como algo puro ou desvinculado das dores que a antecedem. Ao contrário, ela é construída nas brechas, nos deslocamentos, nos corpos marcados pela violência e pela resistência.
Musskopf afirma que as teologias queer precisam “ocupar, resistir e produzir” – e a alegria é um modo de produção teológica que desafia o binarismo, a exclusão e a vergonha. A alegria queer, nesse itinerário, é subversiva porque é vivida em corpos que foram considerados indesejáveis, pecaminosos ou abjetos.
Espiritualidade Encarnada: A ICM e a Liturgia da Alegria
A Declaração de Fé da ICM proclama: “Tu restauras o prazer de nossa relação com Deus, mesmo em meio à solidão, ao desespero e à degradação”. Esse trecho não é apenas poético; ele explicita uma espiritualidade encarnada, onde o prazer, o afeto e a corporeidade são sagrados.
A ICM afirma os corpos como locus teológico. Isso significa que rir, dançar, amar, gozar e existir plenamente são expressões legítimas da presença divina. A alegria, nesse contexto, é também sacramento – uma prática comunitária de cura, memória e reencantamento.
Sobrevivência e Liturgia: A Alegria como Proclamação Profética
Inspirada pela performance dissidente de figuras como Frida Kahlo, cuja obra é resgatada em “Via(da)gens Teológicas”, a teologia queer propõe uma liturgia da sobrevida. A imagem do veado ferido que caminha – símbolo de dor, mas também de beleza e resistência – encarna a tensão da alegria queer: mesmo ferido, o corpo dança.
Cada parada LGBTQIA+ é, neste sentido, uma procissão profética. Cada beijo público entre pessoas queer é uma homilia corporal. Cada celebração em espaços de culto inclusivos é uma afirmação escatológica de que outro mundo é possível – e está sendo gestado no aqui e agora.
A Alegria Como Ressurreição Cotidiana
A alegria queer é uma prática espiritual que transforma o ordinário em extraordinário. Não como negação da dor, mas como resposta insurgente a ela. É saber teológico que canta, mesmo diante do túmulo, como Maria Madalena diante do Ressuscitado.
Assim, a alegria como tecnologia de sobrevivência é um dom do Espírito que nos empodera a construir teologias onde o prazer não é pecado, mas louvor; onde resistir é amar; onde existir é orar. Ela nos convida a construir uma teologia que não apenas explica, mas também celebra. Que não apenas denuncia, mas também dança. Que não apenas sobrevive, mas também floresce e Goza.
Referências
David, M. B., & Yip, A. K.-T. (2023). The loving queer gaze: The epistemological significance of queer joy. Sociology Compass, 17(2), e13255. https://doi.org/10.1111/soc4.13255
Musskopf, A. S. (2008). Via(da)gens Teológicas: Itinerários para uma Teologia Queer no Brasil. São Leopoldo: EST.
Igreja da Comunidade Metropolitana. (2020). Guia de Apoio ao Esboço da Declaração de Fé da ICM.