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Estigma e humor depreciativo: reflexões sobre as cenas de racismo religioso

Estigma e humor depreciativo: reflexões sobre as cenas de racismo religioso

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Estamos, em decorrência da crise sanitária atual, presos e presas às telas. O efeito dessa relação direta com o mundo on line, com os lugares de entretenimento e, com as cenas recortadas a fim de configurar percepções, desejos e afetos, faz com que tenhamos a sensação de que não há relação entre a vida off line, os valores, as normas e as estruturas que solidificam violências estruturais e estruturantes das nossas relações. Separação que o Professor e Pesquisador Luiz Valério, através das “análises críticas do humor depreciativo”, aponta como uma ilusão, uma vez, que para este pensador

as plataformas e redes sociais se tornaram […] um pelourinho moderno. Ou seja, elas capacitam, elas têm capacitado, as pessoas, os usuários que defendem ideologias de supremacia branca numa arena muito poderosa para disseminar as suas ideologias de uma forma instantânea e com uma amplitude impressionante […] o ambiente virtual e o ambiente off line não consistem em duas realidades distintas, paralelas ou duas dimensões elas estão interligadas. A atitude que essas pessoas têm no ambiente virtual tem sim impacto na vida real das pessoas. (2020, NOSSA VOZ; YOUTUBE PLATAFORMA FEMINISMOS PLURAIS).

Queremos, nesse sentido, refletir sobre o impacto de desconsiderar o humor, bem como as outras construções estéticas como discurso e, por consequência, como lugar de reprodução de valores, normas, estigmas, precarização de identidades e de crenças.

Imagem de Pete Linforth do Pixabay

O estigma que é comumente reforçado contra as religiões de matrizes africanas é fruto de uma construção narrativa e imagética ampla e sofisticada, direcionada a subalternizar e relativizar a importância destes saberes e valores civilizatórios. Aliás, segundo o pensador Adilson Moreira no livro Racismo recreativo “o humor hostil cumpre então uma função importante: preservar a distinção social positiva de um grupo em relação a outro por meio da ênfase nos aspectos negativos dos que são representados”.

Destacamos que em tempo algum nos colocamos contra o humor ou contra a arte. Isso seria um desarranjo, uma vez que somos do samba, do axé, do hip hop e exalamos as culturas que transbordam das Comunidades Tradicionais de Terreiro. Não somos contra o humor ou contrários/as ao entretenimento em si. Nós nos distanciamos dos modos pelos quais estes recursos são utilizados para manter capitais políticos que escoam as vidas de pessoas negras, LGBTs, indígenas, umbandistas, candomblecistas e todos os sujeitos que são significados numa lógica de extermínio da diferença, ou do “alterocídio”, como nos ensina Achille Mbembe em sua Crítica da razão negra.

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Ao identificarmos a produção técnica do extermínio do outro e, mais, ao compreendermos que ela se dá em múltiplos lugares, inclusive no entretenimento, reconhecemos que o Racismo religioso, isto é, uma perseguição não só à prática das Comunidades Tradicionais de Terreiro, mas também à sua origem negra — como nos ensina Sidnei Nogueira em sua obra Intolerância religiosa — desvela um sistema colonial que compõe não só o nosso imaginário, mas também as nossas relações concretas.

Enquanto ideologia, ou seja, como lente forjada para que enxerguemos a realidade, nós mesmos e os outros, o racismo opera como força constituinte dos espaços políticos e, pode ser, inclusive, reproduzido por pessoas que o sofrem, embora quem o reproduza não goze das benesses de uma estrutura expressivamente branca, ciseteropatriarcal, centralizada nos privilégios de classe e de território. Nesses termos, precisamos enxergar o pano de fundo atrás das cenas, telas e valores que são produzidos para que não percebamos os problemas e violências estruturais. Essa articulação serve, de forma profunda e sofisticada, aos que se beneficiam do massacre contra as diferenças.