Ogum e o redirecionamento ético
É possível dizer que as epistemologias afrocentradas se estruturam, entre outros fatores, na compreensão refinada sobre o contexto e, mais, na análise crítica e ativa que tenciona desmantelar as supostas cosmovisões hegemônicas. Ao perturbar esse projeto que se pretende universal de descrição da realidade, o nosso interesse está em propor novos lócus enunciativos e interpretativos sobre a nossa realidade, a partir da convergência e diálogo. Trata-se de um caminho aberto e profundamente despido de intenções que desautorizem o encontro.
Desse lugar, isto é, das epistemologias afrocentradas ou como nos ensina Sidnei Barreto, das epistemologias de terreiro, pensamos a necessidade de colocar em xeque os estatutos valorativos que nos trouxeram até aqui. Ogum, Orixá cultuado no Brasil pela nação Ketu, é senhor das estradas de tudo que é contemporâneo será nosso aliado nesse processo de reflexão.
O novo caminho que percorremos faz com que abandonemos o fracasso valorativo e a corrosão dos nossos elos. Estamos diante de uma ressignificação aguda das nossas compreensões a respeito do cuidado, do valor da vida, da importância e da urgência de se valorizar o conhecimento, a ciência, a informação. Nesse processo, é necessário reconstruir — das ruínas, dos valores manchados pela brutalidade e pelo sangue — a nossa percepção sobre o que é a relacionalidade.
Pensamos que Ogum, Orixá da tecnologia, da produção e responsável pelos caminhos é importante nesse momento tão difícil, como força expressiva do redirecionamento ético. Nesse aspecto, as suas lutas indicam a potência que necessitamos para romper com os estatutos de desumanização que se instalaram entre nós, ancorados na indiferença e na banalização da morte.
Travamos uma guerra contra a relativização da vida e contra o enfraquecimento perverso dos nossos pactos de humanidade, em nome do egoísmo, do individualismo e do fechamento absoluto em relação à vulnerabilidade do outro. Diante desse cenário, estamos diante da reavaliação dos valores que nos trouxeram até aqui e, mais, chamados a reaver novas engrenagens valorativas, políticas, econômicas e éticas. É importante que essas novas engrenagens nos façam implodir, de forma corajosa, os mecanismos de violação, desigualdade e marginalização que são anteriores a pandemia de COVID-19, mas se tornam tão agudas nesse momento.
O alvo que se amplia no peito dos que foram, em nome dos arranjos bélicos de perversão, lançados à margem das cenas de poder, será desfeito no instante em formos capazes de restituir, longe dessa realidade desigual e caótica, a nossa percepção do que pode ser considerado uma vida vivível. Esse destino erigido sobre o ódio se retroalimenta na manutenção de um estado de exclusão e de morte. Trata-se de uma determinação política que naturaliza o perecimento dos que são constituídos longe dos olhares. Nessa guerra injusta, as vidas dos que são enunciados à distância, como nos lembra Butler em Vida precária: os poderes do luto e da violência, não são “passíveis a ser enlutadas.” Nessa lógica, a morte é instrumento de devastação e, mais, sua articulação política depõe contra os sujeitos subalternizados.
A guerra justa, isto é, aquela que é encabeçada por Ogum, tem em seu núcleo a preservação da liberdade e da comunidade. Ela entra em rota de colisão com a necropolítica, visto que essa perspectiva de poder se estrutura na violência. O necropoder se alimenta do ódio e materializa a colonização tecida, por exemplo, pelo sistema econômico, político e mantida pelas múltiplas desigualdades que nos tocam. No horizonte da necropolítica “a expressão de uma hostilidade absoluta que coloca o conquistador face a um inimigo absoluto”, como nos mostra Achille Mbembe.
A guerra justa, ao contrário, acontece na implosão desses limites que demarcam corpos, narrativas e existências em lugares destinados à morte. Ela requisita novos valores éticos, forjados, sobretudo, na reciprocidade e na responsabilidade. Sua disposição faz emergir uma reflexão e uma ação disruptiva, no instante em que reage, de modo ostensivo, à moral restritiva — perspectiva que normatiza a destruição dos outros sujeitos lidos como dissidentes. Nesse momento, nós enfrentamos um inimigo invisível que descortinou todos os nossos inimigos visíveis. Sendo assim, é necessário que instalemos uma mudança de direção rumo a construção de um mundo humano, comum e recíproco.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.