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A vergonha da fé: o constrangimento de intelectuais e cientistas ante a própria experiência religiosa

A vergonha da fé: o constrangimento de intelectuais e cientistas ante a própria experiência religiosa

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Lembro de, certa vez, quando cursava a faculdade de Psicologia, ir a um culto de aniversário de uma mulher da igreja dos meus pais. A essa altura eu já não pertencia mais àquela comunidade, mas, como cresci nela, conhecia todas aquelas pessoas, e me sentia num ambiente familiar ali. Após o culto, quando estávamos a comer e beber, o pastor de meus pais (e meu antigo pastor) me perguntou: “E aí, já virou ateu?”. Confesso que a pergunta me incomodou, como se o pastor tivesse me chamado para o fight, mas não me surpreendeu. Muitas pessoas associam a entrada no ambiente acadêmico ao se tornar ateísta, e isso dentro e fora das instituições universitárias, principalmente quando o curso é de alguma das ciências que estudam o ser humano.

Essa expectativa vem da longa história de oposição que se criou entre as ciências e a religião. Uma – a ciência –  baseada em evidências empíricas, materialista, lida com o mundo a partir do que pode ser verificado, portanto, não se baseia em iluminações ou revelações sobrenaturais, mas, sim, na pesquisa e na verificação a partir do método científico. A outra – a religião – se baseia na fé. As religiões reclamam para si diferentes formas de e chegar ao conhecimento religioso. Na tradição ocidental, cristã, o conhecimento religioso se dá a partir da revelação divina. Isso não significa que se resume a ela, o cristianismo tem uma ampla tradição filosófica, sobretudo derivada da filosofia pré-cristã. Só que o conhecimento religioso diz de coisas invisíveis, do Sagrado, do transcendente, e isto o torna diferente do conhecimento científico.

Essas diferenças, assim como uma inimizade, muitas vezes, real entre a Igreja e as ciências, fizeram se desenvolver uma representação da pessoa cientista como aquela que não tem fé, que não precisa crer porque só afirma o que se pode comprovar por meio do método científico.

A relação entre ciência e religião, e as próprias concepções de ciência e religião, no entanto, são muito mais complexas do que se pode imaginar num primeiro momento. Da mesma forma, as pessoas que estudam e produzem a ciência também são diversas e complexas, como todo ser humano. Muitas dessas pessoas, apesar de terem se inserido no ambiente acadêmico e científico, insistem em ser, ou, não conseguem deixar de ser, religiosas. A religião, para essas pessoas, faz parte de sua constituição psiquíca e é fonte de sentido existencial e de suas construções simbólicas e afetivas. Para elas, não há oposição entre ciência e religião, e as relações que se estabelecem entre os dois campos podem ser as mais variadas possíveis.

Será, então, que tais intelectuais e estudiosos não entram em conflito por conta de sua religiosidade? Não é bem assim. Existe um conflito em ser um intelectual da ciência e ser religioso que muita gente experimenta que é, propriamente, de ordem social. Vou chamá-lo de “vergonha da fé”.

O que seria essa tal vergonha da fé? Rubem Alves a descreve em seu livro “O que é religião”. Segundo o autor, aquelas pessoas que pretendem já ter passado pela iluminação científica sentem um constrangimento evidente diante da própria experiência religiosa, pois é como se a pessoa confessasse que ainda vive – mesmo que em parte – no mundo encantado do passado. Nos intelectuais ligados às ciências humanas, esse sentimento se torna mais intenso, sendo que são, justamente, essas ciências que estudam a religião.

Como poderia alguém conhecedor dos fenômenos sociológicos, psicológicos, políticos e dos processos históricos da religião, encantar-se e envolver-se com ela como se fora um mero leigo? No ambiente pretensamente cético da academia, isso gera desconfiança, como se ser religioso “contaminasse” o saber científico do sujeito, levando-o para longe da “ortodoxia” da ciência. Por conta disso, é comum ver acadêmicos religiosos buscando justificar suas experiências e adesão religiosas com argumentos racionalistas, como se estivessem querendo provar que sua vivência é legítima. Por outro lado, há quem pese a mão no “cientificismo”, mostrando que, apesar de religiosa, tal pessoa é fiel ao método científico.

No mundo da ciência, há quem veja a religião como epifenômeno das condições econômicas, como forma de loucura coletiva, como derivada de impulsos arcaicos e hereditários de nossa mente. Eu, particularmente, não posso afirmar como ela surgiu, nem de onde, porém, fico com Viktor Frankl quando diz que herdamos a religiosidade das orações dos nossos antepassados, dos ritos de nossas tradições, do exemplo dos santos e das revelações dos profetas.

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Somos inseridos no mundo da religião por outras pessoas, e, quando continuamos, é porque o religioso tem algo que nos toca. A religião encontra eco em dimensões profundas e secretas do ser humano. Ela expressa emoções, expectativas, impulsiona a imaginação e faz ver o mundo com outros olhos. Acho que é exatamente isso que a religião causa no ser humano: o encanto. No fim, o encanto que envergonha é o mesmo que chama à religiosidade – e, talvez, muitas pessoas no mundo acadêmico nunca sejam capazes de compreender isso.


Referências

ALVES, Rubem. O que é religião. 14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

FRANKL, Viktor Emil. A Presença Ignorada de Deus. 19. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2019.