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Re-pensando ecumenismo

Re-pensando ecumenismo

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A procura de uma definição de ecumenismo em tempos atuais não é uma tarefa tão simples quanto parece. Afirmar que ecumenismo é casa comum é, não somente simplista, como comporta, em si mesmo um grande problema. A palavra sempre foi apropriada por igrejas cristãs desde a Antiguidade e, por isso, carrega em si mesma a cultura na qual foi forjado. Se ecumenismo é diálogo entre igrejas cristãs, compreende-se, logicamente, que esta casa é comum somente a cristãos, alijando outras crenças e matrizes religiosas dessa comunidade. Nesta compreensão, o ecumenismo com centralidade cristã, é excludente, ou seja, não é uma casa comum. 

Nesse sentido, é necessário, repensar o termo e seu alcance para que ele represente, de fato aquilo que diz, uma casa comum. Assim, há que se renunciar, de antemão a dicotomia clássica entre teólogos, entre ecumenismo e diálogo inter-religioso. 

Superando a dicotomia ecumenismo x diálogo inter-religioso, pode-se definir ecumenismo como a construção de diálogo entre pessoas crentes e não crentes no sentido de se criar uma casa comum onde seja possível o desenvolvimento integral de tudo o que existe, tendo como centralidade a defesa intransigente da vida digna para tudo e todas. 

Neste sentido, Brakemeier corrobora o quadro que aqui apresentamos ao afirmar que “o problema da unidade não se esgota numa questão de dogmática cristã. É assunto eminentemente prático, de abrangentes relações sociais.” (2001,p.198). Ou seja, a construção de um caminho comum não pode passar somente sob o crivo da teologia cristã em sentido de reafirmar a sua supremacia sobre as outras tradições religiosas, seja em uma perspectiva exclusivista ou inclusivista, mas integrar todas as moradoras e moradores da casa comum em um projeto de unidade que mire a construção de uma outra civilidade, com bens de fato comuns, em que as diversidades sejam respeitadas em suas singularidades. 

Aqui aparece um desafio grande não somente para a teologia cristã como também para nossas práticas, que é renunciar a qualquer centralidade cristã e olhar o mundo em perspectiva pluralista. Em recente artigo publicado na Revista Senso, o teólogo Marcelo Barros, afirma que “em uma sociedade pluralista e complexa, não é justo classificar as pessoas de forma simplista. Ninguém mais tem uma unidade única e uniforme” (2017, p. 27). Dessa forma, é preciso na contemporaneidade superar uma visão institucionalista de ecumenismo. São pessoas, com suas múltiplas faces que, em tese, fazem o ecumenismo, não o protocolo das instituições. 

É desafiador aqui pensar bases bíblicas para o ecumenismo. Um primeiro ponto que se deve ressaltar é que a bíblia não é um absoluto. Ela foi construída em uma cultura muito peculiar e é imprescindível que seja interpretada como não absoluta, mas relativa a uma cultura, sob pena de não ser uma interpretação ecumênica, de fato. 

Seguindo a intuição de Barros (2017) uma primeira referência bíblica para o ecumenismo é não construir uma imagem de Deus, não circunscreve-lo ou diminuí-lo àquilo que uma tradição X ou Y construiu como compreensão teológica (Ex 20, Dt 5,8). Não construir uma escultura de Deus talvez seja um indicativo para compreender nossas diversas teologias como metáforas não absolutas acerca do Transcendente, a que chamamos Deus. Barros também se apropria do texto de Ap 1,4; 3,1; 4,5; 5;6 para fundamentar a sua tese de que Deus é um e muitos já que seus espíritos são sete. Dessa forma, não se absolutiza compreensões culturais, mas abre-se a perspectiva para um ecumenismo que se funde em uma hierodiversidade. 

Foto: Elói Corrêa/SECOM

O Concílio Vaticano II representa uma voz muito institucionalizada e exclusivista acerca do Ecumenismo, no documento Unitatis Redintergatio. Afirma o documento que a unidade passa pelo reconhecimento da institucionalidade do papa e dos bispos, mas reconhece, em contrapartida, o aspecto salvífico presente em outras tradições cristãs, mesmo que em alguns momentos a Igreja Católica se coloque em algum nível de superioridade. Já na Declaração Nostra Aetate a Igreja Católica reconhece também a presença de elementos verdadeiros e santos nas religiões não cristãs e convocam os fiéis católicos a dialogar e colaborar com eles na construção de uma sociedade moralmente melhor. É lapidar o número 5 desta breve declaração:  “a Igreja reprova toda e qualquer discriminação ou vexame contra homens por causa de raça ou cor, classe ou religião, como incompatível com o espírito de Cristo”. Assim, a Igreja Católica dava um primeiro passo institucional que se aprofundou ao longo do pós-concílio, mesmo no pontificado conservador de João Paulo II e Bento XVI e no pontificado reformista de Francisco. 

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Contudo, a recepção do Concílio não acontece somente pelas vias institucionais. Há inúmeros organismos, geralmente liderados por leigos, que têm construído uma caminhada ecumênica pluralista, aprofundando as intuições conciliares. Pode-se citar aqui a mobilização feita por pessoas dos Estados do Rio Grande do Sul e Minas Gerais que estão mobilizando, sobretudo jovens para a construção de um movimento ecumênico e cidadão, que se ocupe da construção de uma casa que seja, de fato, comum, não somente de cristãos. Também como construção de uma caminhada ecumênica pluralista, pessoas ligadas a este grupo lançaram este mês a Revista Senso, um magazine de Ciências da Religião que quer popularizar o conhecimento de um público não especializado com as diversas formas de expressão ou sensos religiosos presentes na sociedade, de maneira a, promovendo conhecimento, superar as culturas exclusivistas e de neocristandade que, por vezes, são violentas e excludentes. 

O ecumenismo, em tese, é um caminho a se fazer, a se construir, a se desbravar, assumindo a limitação de toda e qualquer linguagem de o que seja aquilo que experimentamos e chamamos Deus (ou não), mas reconhecendo que crentes ou não habitamos uma casa comum, na qual a vida clama pelo reconhecimento de sua dignidade. 


Referências

BRAKEMEIER. Gottfried.Ecumenismo: Repensando o significado e a abrangência de um termo. Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, nº 33, 2001.
BARROS, Marcelo.Diversidade: aqui na terra como no céu: Por uma Teologia da Hierodiversidade. Revista Senso, Belo Horizonte, nº 1, Abr. 2017. Disponível em:https://revistasenso.com.br/revista-senso-edicao-01-ano-2017/#fb0=27. Acesso em 03/04/2017.
IGREJA CATÓLICA. Decreto Unitatis Redintegratio. Petrópolis: Vozes, 2000.
IGREJA CATÓLICA. Declaração Nostra Aetate. Petrópolis: Vozes, 2000.