O Cristianismo foi e ainda é um grande formador de valores e regras sociais a serem seguidos. Em nome de Deus, muitas vezes o que se vê é a imposição da vontade do homem, marcada por exclusão e tratamentos desiguais. Dentro dessa lógica, determinados grupos da sociedade são silenciados, marginalizados e deslegitimados como ocorre, principalmente, com as mulheres e pessoas queer, cuja existência desafia a estrutura normativa imposta por interpretações patriarcais da fé cristã.
Nesse contexto, uma questão a ser superada é quando se vive entre a fé e o ser, ou seja, quando mesmo sendo queer também há a necessidade de viver a religião. Muitas/os fiéis queer não querem deixar sua religião, e nem deveriam ser obrigadas/os a fazerem isso. No entanto, em alguns casos, ao viverem sua religiosidade e enfrentarem a visão de alguns grupos cristãos, acabam vivenciando situações drásticas, como aconteceu, por exemplo, em um caso que Luís Corrêa Lima narra na obra Teologia e os LGBT+: perspectiva, histórica e desafios contemporâneos:
Eu fui em um simpósio de direito homoafetivo na Universidade Católica de Pernambuco. […]. Falei sobre o amor de Deus e a importância da consciência da pessoa. E alertei sobre o mal-uso que frequentemente se faz da Bíblia para condenar homossexuais. Após o final, um jovem me procurou e disse: “Padre, o senhor não sabe o bem que me fez! Eu ia me matar! Até escrevi uma carta de despedida para minha família, que está aqui na minha mochila”.
À continuação, Luís Corrêa Lima afirma que esse jovem lhe escreveu uma carta posteriormente explicando o motivo:
Eu fui criado na igreja. A minha mãe é ministra da eucaristia. O lugar onde eu mais gosto de estar é a Igreja. Por eu ser gay, o padre da minha paróquia fez um duro sermão em uma missa. Olhando para mim, ele disse que as pessoas homossexuais têm um demônio. Quanto mais elas vivem, mais pecam. É melhor que não vivam muito. E os outros fiéis balançavam a cabeça concordando.
Esse caso demonstra o impacto devastador de discursos religiosos que condenam ao invés de acolher, bem como evidencia a luta constante entre a fé e o ser por parte de quem não se enquadra no “ser” imposto pelo cristianismo. É uma luta que pode chegar ao extremo e levar pessoas à morte, principalmente quando os líderes religiosos são os disseminadores da intolerância e do desrespeito.
E é exatamente contra esse tipo de situação que vozes de resistência se levantam e ecoam, e devem assim continuar. Vozes formadas, geralmente, por grupos menosprezados pela religião e por alguns religiosos que trabalham com esses grupos. Que tentam fazer com que o cristianismo compreenda o erro que comete ao excluir pessoas dentro das igrejas e, consequentemente, fora também, demonstrando a necessidade de acolher a todas, o que muitas vezes é feito por meio de estudos da própria Bíblia. Pois, como bem aponta Cris Serra na obra Para que Tenhamos Vida: saberes e fazeres de coletivos cristãos de feministas e dissidentes de gênero e sexualidade no Brasil:
Pessoas cristãs são também lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgênico, queer, intersexo […]. Pessoas cristãs são também pais e mães, irmãos, e irmãs, filhas, primas, sobrinhas, amigas, vizinhas, conhecidas de dissidentes de gênero e sexualidade – ou, no mínimo vivem em um mundo, e em igrejas, em que tais dissidentes (cada vez mais) existem.
Desta forma, é possível ver que a convivência entre a fé cristã e as identidades queer é muitas vezes marcada por dor, silêncio, exclusão, e pelo conflito entre a fé e o ser, tendo em vista que frequentemente não são bem-vindas em suas igrejas. Além disso, o próprio fato de continuarem a buscar suas igrejas demonstra uma resistência, ainda que dolorosa. Por fim, verifica-se que é urgente a busca por mudanças na visão cristã dentro das Igrejas e na própria sociedade, e pela conscientização de que o ser cristã/o e o ser queer não são identidades opostas, e que ninguém deveria ter de escolher entre viver sua fé ou sua verdade.
Referências
SERRA, Cris. Para que Tenhamos Vida: saberes e fazeres de coletivos cristãos de feministas e dissidentes de gênero e sexualidade no Brasil. 1ª.ed. – Rio de Janeiro: Metanoia, 2024.
LIMA, Luís Corrêa. Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos. 1. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021. 3ª reimpressão, 2022.