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Dezmandamentos: “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar…”

Dezmandamentos: “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar…”

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Quinto texto da série “Dezmandamentos”. Essa é uma série de conteúdo teológico e pastoral voltada para a leitura dos Dez Mandamentos a partir das experiências de dissidentes sexuais e de gênero. Para ler o quarto texto, clique aqui.

Êxodo 20: 8-11 “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado, e o santificou.”

Por alguns anos, eu “guardei o sábado”…

A minha experiência cristã neopentecostal foi “messiânica”. Para quem não entende o que quero dizer com isso, explico: eu fazia parte de uma comunidade de fé que incorporava os ritos da religião judaica à vivência da fé cristã. Bem… para ser mais específica, nem todos os ritos, mas aqueles que eram escolhidos pela pastora. Cantávamos em hebraico, tocávamos shofar, celebrávamos festas judaicas, como Tabernáculos e Chanucá. A santificação ou guarda do sábado fazia parte dessa lista interminável de deveres que tinham que ser cumpridos em obediência a Deus, ou melhor, a Elohim. Nesse contexto religioso, o sábado – ou shabat – começa às 18h de sexta-feira e vai até às 18h de sábado. Nesse período não se pode fazer nada. Deve-se manter a introspecção, evitar cumprir tarefas rotineiras e ficar em adoração e oração. O mais importante do sábado, na minha congregação, era participar do culto de adoração que acontecia às noites de sexta.

Dentre todos os sábados que “guardei”, existe um do qual eu não me esqueço. Em um shabat, junto a uma multidão de pessoas cantando e dançando, visitei, pela primeira vez, o Muro das Lamentações, em Jerusalém. Essa foi uma experiência única. No final de 2002, viajei para Israel e fiquei lá por três meses. No primeiro mês trabalhei em um hotel e nos outros dois em um hospital para reabilitação de crianças. São tantas as histórias… sei que tenho um diário dessa experiência perdido em algum lugar de minha casa.

Fui à Israel com uma missão: servir ao povo escolhido de Deus. Sim, eu ainda não havia tido um encontro com a mulher sírio-fenícia e acreditava que Deus tinha um “povo escolhido”. Essa era uma mentira, dentre tantas outras, que se tornou verdade para mim. A religião tem esse poder de criar “verdades da fé”, que não ousamos questionar para não “cair em pecado”. Mas, para não “cair em pecado”, acabamos caindo em uma fé desconectada da realidade, desconectada das urgências dos nossos dias, afinal, o importante é “conquistar galardões no céu”.

Nessa viagem, conheci uma pessoa que se tornaria uma amiga muito importante para mim. Ela era da África do Sul e nos conhecemos no hotel no qual trabalhávamos. Em uma de nossas folgas, eu, ela e um amigo de Cuba fizemos uma viagem de três dias. Dormindo no carro e lavando “as partes” quando dava, nós acabamos nos tornando bons amigos. Quando eu mudei para Jerusalém, para trabalhar no hospital, acabei perdendo o contato com eles. Mas, antes de voltar ao Brasil, fiz questão de me despedir.

Ela tirou o dia de folga para que pudéssemos passar mais tempo juntas. Não me lembro o que fizemos. Só me lembro dos 30 minutos finais. Eu e ela estávamos em seu quarto, e, não sei por que cargas d’água, ela começou a fazer cosquinha em mim. Revidei! Não sou mulher de aceitar cosquinha calada! Quando eu a toquei… ela se entregou. Tudo bem, eu sei que tenho meus encantos, mas, o que aconteceu ali não era eu a conquistando e ela se rendendo, era uma troca. As duas se renderam. As duas quiseram. E as duas se desesperaram… Começamos a chorar compulsivamente, porque aquela viagem era para ser uma viagem santificada. Não dava para, no último minuto, “render às tentações de satanás”.

Entre lágrimas e orações de arrependimento, nós amordaçamos o desejo. Fizemos tudo o que era necessário a nós, mulheres que estavam se guardando para o “varão escolhido”. Um esforço hercúleo para caminhar de acordo com uma fé assassina – assassina dos encontros, dos afetos e dos amores. A vivência desse cristianismo casto e castrador é um trabalho dos mais exaustivos. Esse cristianismo cansa. Orar, jejuar, ler, memorizar, guardar, santificar, cultuar, ministrar e não, não, não e não! Quando a fatiga chega, quantas de nós simplesmente dizemos: “basta, para mim não dá mais!”. Com isso, abandonamos a fé em Deus, e, muitas vezes, na vida.

Ao se falar em trabalho, nesse esforço que a vivência cristã parece requerer, eu sei que a reconciliação entre a fé e a sexualidade é, para muitas de nós, também um trabalho exaustivo. Só nós sabemos quanto esforço a saída dos armários requer. Mas, uma teologia sexual da reconciliação deve ser uma teologia do sábado, e não de um sábado qualquer, mas, de um sábado à noite. Afinal, como cantou Lulu:

Todo mundo espera alguma coisa

De um sábado à noite

Bem no fundo, todo mundo quer zoar

Todo mundo sonha em ter uma vida boa

Sábado à noite tudo pode mudar

O que se pode esperar de um sábado à noite? Essa infinidade de respostas que passam pela nossa cabeça deve permear uma proposta teológica que transgrida a tradição hegemônica do cristianismo em direção a, enfim, um descanso sabático. Daniel Santos Souza, em sua tese de doutorado1Daniel Santos Souza, “A Revolta da Ineficiência: os acontecimentos de junho de 2013 no Brasil e suas destituições político-teológicas”, 2019, p. 261. (que deve ser lida, prazerosamente, em noites de sábado), explica que: “O sábado (…) é o espaço da memória e da organização do povo na resistência à exploração, na busca por um ‘novo êxodo, por libertação’. (…) O descanso é recordação e o momento para organizar o agir, com a esperança e a fé em uma nova passagem, uma nova saída da ‘opressão’ que persegue o ‘povo de javé’”. Nesse contexto, em meio ao trabalho forçado pela escravidão, a ideia do descanso transgredia a opressão imposta pelos babilônios ao povo hebreu. Em nosso contexto, o sábado – à noite – é, também, o momento da organização do agir e da esperança, e mais, é o momento do gozo, da festa, da celebração!

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O descanso transgride o cansaço imposto pelo cristianismo tradicional e hegemônico. Afinal, “em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados. Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos” (cf. 2 Coríntios 4: 8-9). O descanso é um conceito-chave para minha proposta de uma epistemologia queer. E, já que é para desmandar o quarto mandamento, o sábado também pode ser um conceito-chave para uma epistemologia queer!

Hebreus 4:11a é imperativo: “esforcemo-nos por entrar nesse descanso”! Se podemos entrar nesse descanso, o descanso deve ser, então, mais do que uma condição – o descanso é um lugar. E, se é um lugar, qual o caminho para chegarmos até lá? Talvez, um caminho, um método (?) ou uma epistemologia queer, que transgrida essa perspectiva cansativa de se viver de acordo com regras trabalhosas (e desumanas) demais, seja o que proponha a reconciliação entre o sábado bíblico e o sábado do final de semana.  Uma “Teologia do Sábado à Noite”! Quantos foram os sábados que nós deixamos de nos jogar na pista, porque nos foi dito que “Jesus não entraria ali”? Quantos foram os sábados que passamos em vigília na tentativa exaustiva de não nos juntarmos “ao mundo”? Quantos foram os sábados que se tornaram a grande metáfora hipócrita de uma vida santificada e separada para Deus?

Uma “Teologia do Sábado à Noite”, que começa no Muro das Lamentações, só pode acabar em um muro de esquina, uma mureta de bar, ou nas paredes de uma boate. Uma “Teologia do Sábado à Noite” transforma a lamentação em festa. Uma “Teologia do Sábado à Noite” é uma teologia do descanso – descanso para as pessoas que disseram basta ao conservadorismo cristão e decidiram colocar a melhor roupa para encontrar, sábado à noite, cazamiga!

(P.S. Seis anos depois de minha viagem a Israel, passei dois sábados à noite na casa de minha amiga da África do Sul.)

* Com todo meu amor e respeito à religião judaica, artigo dedicado ao meu amigo André Liberman, judeu e ativista LGBTIA+.


Notas

 

  • 1
    Daniel Santos Souza, “A Revolta da Ineficiência: os acontecimentos de junho de 2013 no Brasil e suas destituições político-teológicas”, 2019, p. 261.