Refletir sobre as espiritualidades LGBTQIAPN+ é, acima de tudo, compreender como pessoas que se autoidentificam como dissidentes – a partir de suas experiências, corpos, gêneros e sexualidades – vivenciam e experienciam a espiritualidade. Segundo Andrea Musskopf, em um texto de “Espiritualidade queer” publicado na Revista Periódicus em 2021, p.2: “Uma abordagem queer sobre o tema da espiritualidade geralmente assume como ponto de partida a forma como ‘pessoas queer’ vivem sua espiritualidade.”
Ao longo da história, pessoas dissidentes de gênero e sexualidade têm sido sistematicamente afastadas das estruturas religiosas, que constantemente negam suas identidades, corpos e vivências – e, assim, também lhes negam o direito à pertença religiosa e à construção orgânica da própria espiritualidade.
Esse afastamento histórico e sistemático está diretamente associado à construção de uma ideia de pecado e abominação, sustentada por leituras literais, seletivas e tendenciosas da Bíblia e de outros textos sagrados. Com isso, consolidou-se a noção de que pessoas LGBTQIAPN+ são sinônimo de pecado, evidenciando assim que as igrejas e religiões – especialmente as de tradição judaico-cristã – não são, em sua maioria, espaços seguros e acolhedores para pessoas LGBTQIAPN+. Nesses espaços, dificilmente se pode existir plenamente, sem as amarras de estruturas opressoras e normativas.
Ainda que muitas dessas igrejas não pratiquem uma exclusão direta, oferecem uma participação condicionada: é possível “ter lugar”, desde que se aceite o retorno ao armário, à negação, à anulação de si. Trata-se de uma exigência de conformidade ao padrão estético e moral cis-heteronormativo, historicamente implementado e ainda hoje imposto de forma imperativa.
Portanto, para buscar um entendimento acerca de espiritualidades e vivências LGBTQIAPN+, torna-se necessário reconhecer que não existe uma única forma de vivenciá-las, nem uma definição que melhor as represente. Nesse sentido, tentar definir a espiritualidade de maneira única e fixa contraria a própria perspectiva queer, que é, por natureza, fluida, múltipla e contestadora de normatividades, esse tipo de definição tende a gerar novas exclusões — ainda que motivada por intenções inclusivas.
A urgência em reafirmar os marcadores identitários e dissidentes na construção de uma compreensão queer da espiritualidade está profundamente relacionada à exclusão histórica e aos efeitos do processo de colonização. Este, por sua vez, não apenas impôs formas hegemônicas de ser e existir, mas também estruturou modelos normativos de religiosidade e espiritualidade — muitas vezes utilizados como ferramentas de controle cultural e moral. Segundo Pablo Quintero, Patricia Figueira e Paz Concha Elizalde, em Uma breve história dos estudos decoloniais, publicado em 2019:
A colonialidade, em seu caráter padrão de poder, acarretou profundas consequências para a constituição das sociedades latino-americanas, pois assentou a conformação das novas repúblicas, modelando suas instituições e reproduzindo nesse ato a dependência histórico-estrutural. (p.06).
Tal estrutura colonizadora molda e constrói a realidade a partir dos interesses dominantes, que, ao longo da história, vêm impondo — muitas vezes de forma violenta — modelos específicos de conceber a vida, a cultura, a educação e, de modo incisivo, a religião e a espiritualidade. Essa imposição opera por meio de uma lógica binária, religiosa e moralizante, que classifica o mundo em categorias rígidas como certo/errado, bem/mal, pecado/salvação. A partir dessa perspectiva hegemônica, corpos e experiências são julgados, aprovados ou condenados conforme seu alinhamento (ou não) a esse padrão historicamente construído.
Nesse contexto, espiritualidades LGBTQIAPN+ contemporâneas — frequentemente denominadas “espiritualidades queer” — surgem como práticas contra-hegemônicas que desafiam a cisheteronormatividade religiosa. Mais do que reivindicar inclusão nas religiões tradicionais, essas espiritualidades propõem outras formas de relação com o sagrado, partindo das experiências, corpos, afetos e desejos dissidentes. Elas se constituem como caminhos de resistência e reconstrução, onde o sagrado não é mediado pela negação de si, mas pela afirmação radical da existência plural, fluida e encarnada.
Essas vivências espirituais dissidentes não apenas denunciam as exclusões promovidas pelas religiões normativas, mas também reimaginam o divino de maneiras libertadoras, em que a corporeidade, a diversidade de gênero e sexualidade, e a experiência afetiva são partes constitutivas da relação com o transcendente:
Santidade queer é a libertação do controle de autoridades que se apoiam em falsas justificativas alheias à justiça. Santas e santos queer tornam-se, assim, uma força subversiva ao viver com integridade e desafiar as normas estabelecidas (Althaus-Reid, 2003, p. 166 apud Musskopf, 2021, p. 09).
Considerações Finais
Assumir uma espiritualidade LGBTQIAPN+ sob uma perspectiva decolonial é, portanto, um gesto radicalmente político. Trata-se de desobedecer à ordem epistemológica que afirma haver apenas um modo legítimo de conceber espiritualidade, a fé e o sagrado — o modo branco, cisgênero, patriarcal eurocentrado em que, segundo Marcella Althaus-Reid (2005, p.239) “indecência e decência foram historicamente criadas no mundo colonial para assegurar a regulação do excedente da ordem social” — inclusive no funcionamento global do mercado religioso-político.
Nesse novo horizonte, o sagrado não é negado, mas reinventado. A teologia queer, por exemplo, propõe uma releitura das escrituras e dos símbolos religiosos a partir das experiências LGBTQIAPN+, revelando outras interpretações para narrativas, rituais e mitos que antes os excluíam ou condenavam.
Entre o sagrado e o subversivo, forma-se assim um campo fértil de reinvenções e construções de espiritualidades que rompem com a lógica de um cristianismo hegemônico e afirmam a potência das vivências LGBTQIAPN+ como expressões legítimas. A espiritualidade decolonial, neste contexto, é um caminho de retomada: de saberes, de corpos, de afetos que foram historicamente negados, excluídos e violentados.
Trata-se, enfim, de reconhecer e afirmar as formas plurais de transcendência e pertencimento, assumindo uma postura teórica rigorosa e uma sensibilidade política atenta às urgências das existências dissidentes.
Referências citadas no texto
ALTHAUS-REID, Marcella. La teología indecente: perversiones teológicas en sexo, género y política. Barcelona: Edición Bellaterra, 2005.
LUGONES, Maria. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa, 2008.
MUSSKOPF, Andrea S. Espiritualidade queer. Revista Periódicus, v. 2, p. 01-14, 2021.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. CLACSO, 2005.
QUINTERO, Pablo; FIGUEIRA, Patricia; CONCHA ELIZALDE, Paz. Uma breve história dos estudos decoloniais. In: MASP; AFTERALL (Org.). Arte e descolonização. 1. São Paulo: MASP, 2019.