Pegar, Temperar, Comer: Uma cozinha hermenêutica queer para estudar religião na América Latina

Religião, gênero e sexualidade costumam aparecer, nas leituras dominantes, como engrenagens de interdição que regulam corpo, sexo e desejo. A experiência concreta, porém, acontece justamente onde essas interdições se impõem. O corpo desvia e se faz devir. Na América Latina e no Caribe, essa disputa ganha cheiros, sabores e gestos que lembram a cozinha. A cozinha, aqui, não é mera metáfora. Antes, é linguagem religiosa, política e sexual.

Pense nas quituteiras baianas e no acarajé, em que a mistura de dendê e feijão não é sistema simbólico e política de corpo vinculados às religiões afro-brasileiras, como mostra Florismar Menezes Borges em sua pesquisa sobre tradição e modernidade do acarajé. Lembre também as cozinhas solidárias de pessoas que convivem com HIV e Aids, como o Projeto Cozinha Solidária do GTP+. Cozinhar ali produz alimento, renda e visibilidade, e subverte lógicas cisheteronormativas. E, ainda, comunidades indígenas, rurais e nas cozinhas do MST, por exemplo, preparar a comida junto é exercício de solidariedade, de resistência e de afirmação de território. Nessas cozinhas, se transformam sabores, noções sobre Deus, sobre redenção e sobre os amores de nossas vidas. Nesse sentido, é teologia viva.

É desse lugar que escrevo. Como cientista da religião, proponho uma hermenêutica queer que toma a cozinha como método. Marcella Althaus-Reid, em sua teologia indecente e em Deus Queer, sustenta que toda teologia deveria passar pela suspeita e pelos corpos. Seguindo esse caminho, assumo que religião, gênero e sexualidade se cozinham, se temperam, se queimam e se recombinam. Minha hipótese é simples. Cozinhar pode ser um ponto de partida queer para estudar essas dimensões. Um método com três movimentos: pegar os ingredientes por inteiro, temperar para criar sabor e comer, isto é, assumir o desvio coletivo que dá significado outro e perverte metodologicamente o que se naturalizou.

Antes, importa dizer de que cozinha falamos. Não é a cozinha asséptica e silenciosa de superfície branca e cheiro neutro. É também outra. Viva, quente, coletiva. Onde mulheres, pessoas negras e indígenas, dissidentes sexuais e de gênero, pessoas com deficiência, crianças e todas aquelas a quem as cozinhas hegemônicas têm deixado de fora de suas receitas, circulam, conversam, debulham, riem, brigam, inventam soluções e partilham histórias. Ali, cozinhar pede atravessamento e obriga a encarar o que é cru, o que cheira forte, o que dá trabalho, o que nem sempre fica belo. Exige contato, textura e transformação. É um gesto humano e situado. É também um gesto sexual.

Esse método nasce da leitura e do corpo. Deixe-me situar: cresci em família religiosa e conheço por dentro a força normativa de seus códigos. Carrego cicatrizes e aprendi a negociar com a comida em meio a um transtorno alimentar. Para mim, religião, corpo e cozinha nunca foram espaços domésticos neutros. Sempre foram campos sexuais e políticos, nos quais precisei revisitar fomes, receitas e dores. Cozinhar virou prática de cuidado e desejo. É esse percurso que trago às cartografias queer latino-americanas, mas com uma pergunta central: O que uma cozinha queer ensina sobre religião?

 

Cozinhar em três atos

 

Círculo hermenêutico libertino

Em diálogo com a Teologia da Libertação, Althaus-Reid propõe um círculo hermenêutico libertino. Em vez de circular no movimento clássico das teologias sistemáticas, a saber: texto, contexto e realidade social – ela introduz a suspeita sexual e política. Segundo sua reflexão, símbolos e doutrinas foram “fatiados” por leituras coloniais. Por isso mesmo, se quisermos seguir na contramão, é preciso trabalhar com os ingredientes inteiros, incluindo suas ambiguidades e partes indecentes e libertinas. Libertino, aqui, é a recusa de fronteiras teológicas que marginalizam corpos e prazeres. É assumir o compromisso de colocar a obscenidade onde sempre houve pretensão de pureza. É dizer, sem máscara de neutralidade, de onde falamos e o que desejamos.

 

Primeiro ato. Cozinhar começa antes do fogo. Começa no pegar os ingredientes por inteiro. Esse gesto coloca sob suspeita os pressupostos sexuais que embalam os produtos “prontos” das teologias tradicionais. Em vez de aceitar cortes e embalagens, buscamos pistas nas rebarbas, nas partes fibrosas, no que tem sido descartado. Perguntamos como os discursos religiosos foram disputados, o que têm ensinado e o que ainda podem ensinar quando lidos desde corpos que não cabem na norma.

 

Segundo ato. Depois de pegar, é hora de temperar. Criar sabor não inventa algo do nada. Recombina o que existe, reconta mitos, ritos e doutrinas a partir das experiências de corpos dissidentes. É trazer de volta a localidade dos ingredientes. Temperar o estudo da religião com vivências sexuais e políticas de quem historicamente ficou fora dos púlpitos, das cátedras e dos conselhos. Esse movimento rompe o centro do poder e do privilégio sem criar novo pedestal. Ao contrário, temperar é assumir os riscos de não se ter pedestal. É sair da zona de conforto e testar novos aromas. Althaus-Reid chama isso de uma teologia sem roupa interior. Uma teologia que assume seus interesses e não finge neutralidade. Andrea Musskopf, Ana Ester Pádua Freire e Rafael Leopoldo são também nomes importantíssimos que insistem nessa direção ao pensar religiosidades que não apagam o desejo, mas o tornam visível e disputável no espaço público.

 

Terceiro ato. Comer é assumir a perversão metodológica. Perverter, aqui, significa desviar conscientemente do caminho reto das sistemáticas, para escancarar colonialidades e recuperar elementos temidos e decentes demais. A obscenidade torna-se método, e expõe o caráter sexual e político das doutrinas. Esse ato se faz desde corpos situados. Corpos com cheiro, cicatrizes e excesso. Excesso de sal, excesso de açúcar, excesso de amor, excesso de mistura, excessos… ex-cessos… ex-cêntricos. Fora do centro. Ex-cêntricos. Corpos que cozinham e comem, e por isso produzem hermenêuticas novas. É também o momento de pôr a mesa com exemplos concretos de resistência. As quituteiras baianas e o acarajé que corporifica cosmologias afro-brasileiras. As cozinhas solidárias do GTP+ que sustentam vida e cidadania para pessoas que enfrentam estigma. As panelas das aldeias e das ocupações camponesas, que ensinam partilha e cuidado do comum. Em cada uma, cozinhar é política e sexo. É memória e insurgência. Esses exemplos mostram a complexidade e riqueza em celebrar os corpos dissidentes que cozinham e comem, reconhecendo que há, nas comunidades latino-americanas e caribenhas, uma fome intensa por narrativas que desestabilizem as ordens morais idealistas, binárias e hierarquizantes. Há muita fome. Fome de vida. Vida sincera. Vida sem-roupa. Vida indecente.

 

Considerações finais

Quando decidi escrever sobre símbolos religiosos a partir da metáfora da cozinha, foi difícil parar em um texto tão curto. Isso porque aqui dentro há também muitas fomes diferentes, que se aprofundam junto à de tantas outras colegas. Por isso mesmo, esse foi parte importante do exercício de explicitar mais e mais o compromisso com a materialidade do fenômeno religioso. Religiosidade organiza sentido e é organizada por processos históricos, políticos, sexuais e econômicos. Quando aceitamos lidar com as camadas, as receitas se refazem e os sentidos se recombinam. O desafio, na Ciência da Religião, é não naturalizar interpretações clássicas, não cristalizar leituras e não esquecer que o religioso é histórico, localizado e profundamente humano. Estudar religião é disputar linguagem, território e poder. É seguir mexendo as panelas, provando o caldo, perguntando que interesses atuam sob a superfície e que fomes estamos alimentando e quais não – e o que elas ensinam ou podem ensinar. Nos territórios das cozinhas queer não se reduz os ingredientes para caber no prato. Inteiros, eles se encontram e se misturam. E essa mistura pode ser deliciosa. Que sigamos apurando, ganha (novos e outros) corpo(s) e criando nossas próprias mesa com sabor denso, inquieto e vivo.

 Referências citadas no texto

ALTHAUS-REID, Marcella M. Marx en un bar gay: la teología indecente como una reflexión sobre la teología de la liberación y la sexualidad. Numen: Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, Juiz de Fora, 2008, v. 11, n. 1-2, p. 55-69.

ALTHAUS-REID, Marcella. Deus queer. Rio de Janeiro: Metanoia; Novos Diálogos, 2019.

ALTHAUS-REID, Marcella. La teología indecente: perversiones teológicas en sexo, género y política. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2005. (Serie General Universitária). ISBN 84-7290-275-7.

BORGES, Florismar Menezes. Acarajé: tradição e modernidade. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2008. 132 f.

FREIRE, Ana Ester Pádua. Church on the march: sexual and gender dissidents in the struggle for embodied political rights. Conexión Queer: Revista Latinoamericana y Caribeña de Teologías Queer, v. 3, p. 44-70, 2020. Disponível em: https://repository.usfca.edu/conexionqueer/vol3/iss1/3. Acesso em: 27 jun. 2025.

FREIRE, Ana Ester Pádua. Dirty martini: toasting with Marcella Althaus-Reid. In: Fetish Boots and Running Shoes 2: Latin American and Asian Perspectives Symposia. 2019.

MUSSKOPF, Andrea S. As queer as it gets. In: KNAUSS, Stefanie; MENDOZA-ÁLVAREZ, Carlos (ed.). Queer Theologies: Becoming the Queer Body of Christ. London: SCM Press, 2019. p. 13-21. ISBN 978-0-334-03151-2.

MUSSKOPF, Andrea S.; VAN DER WALT, Charlene. A queer (beginning to the) Bible. International Journal of Theology, Concilium, n. 2019/5, p. 109-118, 2019. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/344375646_A_Queer_Beginning_to_the_Bible. Acesso em: 27 jun. 2025.

LEOPOLDO, Rafael. Tango: o baile dos corpos dóceis. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

LEOPOLDO, Rafael. Por uma utopia suja: Próteses Eclesiásticas. Revista Senso, 3 mar. 2022. Disponível em: https://revistasenso.com.br/sem-categoria/por-uma-utopia-suja-proteses-eclesiasticas/. Acesso em: 22 abr. 2024.

Giovanna Sarto

É doutoranda em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista da CAPES. Seus temas de pesquisa são religião e diversidade sexual e de gênero. Trabalha Teologias Feministas e Queer. Participa do Grupo de Pesquisa Indecências – Religião, Gênero e Sexualidade (ReGeSex).

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