Devir-viado

[beyond vanilla calvinism: fucking colonial norms]

O calvinismo chegou na baía de Guanabara com o projeto colonial da França Antártica em 1.555. Nicolas Durand (Villegagnon) encabeçou o projeto colonial depois de convencer Gaspard de Coligny e o Rei Henrique II de que a colônia serviria de refúgio para os Huguenots (Protestantes). O empreendimento colonial colecionou calvinistas das regiões que hoje em dia compõem os estados-nações da Alemanha, Bélgica, Escócia, França, Holanda e Suíça. O grupo incluia artesãos, pastores e pobres. Quase todos eram homens. Alguns eram queer.

A colônia da França Antártica ficou famosa por vários motivos, entre eles por trocar cartas diretamente com João Calvino, por promover uma convivência religiosa entre católicos-romanos e protestantes sendo que todos assistiram ao culto de rito protestante (aliás, de acordo com Jean de Lery, a primeira santa ceia protestante das Américas foi celebrada no dia 21 de março de 1557 pelo pastor Pastor Pierre Richier), pelas cartografias de André Thévet (inclusive a primeira descrição escrita de um pássaro tucano), pelos primeiros registros das músicas dos povos indígenas (Heitor Villa-Lobos trabalha essas partituras no século XX) e pelas primeiras tentativas de tradução da Bíblia para línguas indígenas.

Os escritos de Jean de Lery e André Thévet são a base das informações sobre a França Antártica. Mas são comprometidos, não confiáveis, uma vez que Lery e Thévet (um protestante e um católico-romano) entraram em conflito sobre a divulgação dos acontecimentos na França Antártica. Um dos pontos de conflito parece estar vinculado ao caso curioso do julgamento (e morte) de cinco pessoas por sedição (insubordinação). André Thévet, na sua obra Cosmologia Universal, acusa vários homens de sedição e registra sua morte por afogamento. Por sua parte, em Viagem à Terra do Brasil, Jean de Lery afirma que desconhece o caso e acusa Thévet de todo tipo de invenção sobre a França Antártica e os protestantes. Nas entrelinhas, a briga e intriga entre os dois deixa uma suspeita de que religião e sexualidade (atos sexuais entre homens) foi um dos motivos para apontar para o caso.

Interessa-nos algumas propostas calvinistas na França Antártica que subvertem normas coloniais. Primeiro o batismo. A norma calvinista propõe batismo de mulheres indígenas antes dos colonos terem relações sexuais com elas. Importante notar que houve celebrações de casamento na ilha, mas as propostas calvinistas não trabalharam o conceito de sexo só depois do casamento. Em vez disso, a proposta era sexo só depois do batismo. Lery afirma que “Como esta lei encontrava claro fundamento na palavra de Deus, foi ela exatamente observada” (1961, p. 78).

Lery logo se contradiz quando ele observa uma outra proposta calvinista sobre a pena de morte que subverteu a norma colonial. Villegagnon impôs a pena de morte para vários compartamentos, inclusive atos sexuais com indígenas. Os pastores calvinistas, Richier (um doutor da Sorbonne) e Chartier, foram contra e intercederam em várias ocasiões para comutar a pena de morte (afogamento ou enforcamento). Um dos casos foi o de “um normando que fora apanhado em comércio carnal com uma índia” (1961, p. 78). Na lógica construída por Lery, a pena foi imposta não pelo ato sexual, mas pelo fato de ela não ter sido batizada.

Uma terceira proposta calvinista, que não apenas subverte a norma colonial, mas adota uma postura decolonial por motivos religiosos, diz respeito à cidadania e à santa ceia (eucarista). Era preciso participar na santa ceia para ser reconhecido como cidadão da França Antártica. Ou seja, a base da cidadania não é nacionalidade, mas religião. Isso tem o efeito de excluir indígenas da França Antártica. Ao mesmo tempo, tal perspectiva exclui o próprio governador. Quando Villegagnon renunciou sua confissão protestante e parou de participar na santa ceia como expressão desta renúncia, os calvinistas se posicionaram desta forma: “como depois de seu repúdio lhe fizemos saber, por intermédio do senhor Du Pont, que em virtude de ter renunciado ao Evangelho não nos considerávamos mais seus súditos, nem queríamos permanecer a seu serviço” (1961, p. 81).

O coitidiano da França Antártica – projeto calvinista de colonização – foi bem mais colorido que as projeções austeras do calvinismo do imaginário popular. Sedição e sexo se misturavam com ritos de batismo e santa ceia. Atos carnais e as várias maneiras de policiar e puní-los viram penas de morte comutadas para penas corpoais focadas nos ventres e nádegas. E a imposição das mãos, prática cristã, sobrava apenas para os casos de enviar os indígenas para a França como objetos de curiosidade para desfile e exposição na metrópole.

Referências

Lery, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 1961.

Thévet, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. Brásilia: Senado Federal, 2018.

Graham McGeoch

É teólogo e cientista da religião. Atualmente, trabalha com o Council for World Mission. É professor da Faculdade Unida de Vitória, Brasil e professor visitante da Universidade de Pretória, África do Sul. Participa do Grupo de Pesquisa Indecências - Religião, Gênero e Sexualidade (ReGeSex). Seu mais recente livro é Theology After Gaza (Cascade, 2025) co-organizado com Mitri Raheb.

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