Há crenças depois da Igreja

Ser uma pessoa LGBT no Brasil nunca foi tarefa fácil — e quando essa identidade se cruza com o universo das religiões cristãs, o caminho se torna ainda mais tortuoso. É como viver em tensão permanente, entre o desejo de pertencer a uma comunidade de fé, na qual se aprendeu a viver, e a constante sensação de rejeição, julgamento ou silenciamento.

A ideia de que a sexualidade LGBT é “antibíblica” ou “antinatural” ainda é dominante nas igrejas cristãs tradicionais. O discurso é quase sempre o mesmo, com variações de tom: Deus criou o homem e a mulher, e tudo o que escapa disso é considerado pecado, desvio, abominação. É como se existisse um manual de uso do corpo, da afetividade e do desejo, escrito por Deus e interpretado exclusivamente pelas instituições religiosas, descontextualizadamente. Nessa lógica, a sexualidade precisa se submeter a uma lei natural — e quem não se enquadra, deve renunciar a si mesmo.

Esse discurso, repetido ao longo de gerações, produz uma maneira de pensar por parte dos fiéis da igreja, uma vez que a linguagem cria a realidade. Ele exclui, adoece, interioriza a vergonha, o medo, o sentimento de inadequação, já que o sujeito percebe que não é como deveria ser, ou como Deus deseja que fosse. A canção “Não recomendado”, de Caio Prado, ilustra essa experiência: “pervertido, mal amado, menino malvado, cuidado! Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado!”. Esse tipo de imaginário continua sendo alimentado, sutil ou explicitamente, nos púlpitos de muitas igrejas.

E no entanto, apesar de tudo isso, muitas pessoas LGBTs seguem crendo. O que acontece é que essa fé se desloca, se transforma, se reinventa. E aqui começa o que talvez seja uma das histórias mais silenciosas — e mais poderosas — do nosso tempo: a história das pessoas cujas espiritualidades que sobrevivem depois da igreja.

A igreja como lugar hostil — e a espiritualidade como resistência

Quando usamos a palavra “igreja” aqui, não nos referimos à comunidade de fiéis, ao povo de Deus em sua pluralidade. Estamos falando da igreja enquanto instituição: seus dogmas, suas estruturas hierárquicas, suas doutrinas e normatizações morais. E essa institucionalidade, para muitas pessoas LGBTs, tornou-se um lugar hostil. Essa afirmação não nega a existência de igrejas inclusivas, de comunidades acolhedoras, iniciativas das igrejas históricas de se aproximar das pessoas LGBTs ou de teologias que tentam repensar a fé cristã a partir das experiências LGBTs. Esses espaços existem — e são preciosos. Mas a experiência de algumas pessoas LGTs é a do afastamento das instituições. A fé continua viva, mas, para sobreviver, precisa se desvincular da instituição que a tornou insuportável. Isso me faz recordar o que ouvi de um interlocutor certa vez: “igreja não é lugar para LGBTs”.

Esse movimento não é apenas religioso; é também político e subjetivo. Ao sair da igreja, pessoas LGBTs não estão rejeitando Deus, tampouco abandonando toda forma de espiritualidade. Estão, na verdade, buscando um lugar onde possam ser verdadeiras consigo mesmas. Estão rompendo com a exigência de negar sua identidade em nome de uma santidade que nunca os acolheu de verdade.

Esse processo de afastamento institucional é, em muitos casos, libertador. Mas ele também é doloroso. Implica abrir mão de vínculos afetivos, de redes de apoio, de espaços que, por mais ambíguos que fossem, ainda faziam parte da vida. Não é incomum ouvir relatos de luto, de saudade, de uma sensação de exílio espiritual. E, justamente por isso, é impressionante como, mesmo depois desse rompimento, as pessoas mantenham viva a dimensão espiritual de suas vidas.

Fé reinventada: o que fica depois da ruptura?

A pergunta que motivou parte da minha pesquisa foi: o que acontece com a fé quando a pessoa LGBT sai da igreja? A resposta, longe de ser simples, revelou uma complexidade: o afastamento institucional não significa o fim da espiritualidade. Em muitos casos, o que acontece é uma “subjetivação da religião” — um termo técnico que aponta para a maneira como as pessoas passam a se apropriar, individualmente, de elementos religiosos e espirituais, construindo uma fé personalizada, íntima, muitas vezes sincrética.

Ao ouvir relatos de pessoas LGBTs que se afastaram das instituições religiosas, pudemos perceber uma espiritualidade que se reinventa a partir de fragmentos, memórias e experimentações. Muitos continuam a orar, a ouvir músicas religiosas, a cultivar rituais — às vezes combinando elementos de diferentes tradições, como o cristianismo e religiões de matriz afro-brasileira. Outros preferem adotar uma linguagem mais universal, falando em “energia”, “universo” ou “força maior” em vez de “Deus”. A conexão espiritual, nesses casos, acontece em espaços cotidianos, em momentos de paz, em experiências que oferecem sentido e bem-estar. Mesmo sem liturgia ou templo, permanece uma busca por transcendência e significado, construída de forma íntima e singular.

Esses relatos apontam para algo que precisa ser levado a sério: há, sim, vida religiosa depois da igreja. E essa vida não é menos autêntica por ser menos institucionalizada.

Há crença depois da igreja: entre ruptura e continuidade

Aqui preciso parafrasear o título do livro de Andrea Musskopf — Há vida depois da Igreja  — para nos ajudar a nomear esse fenômeno: há crença depois da Igreja. Não estamos falando de ateísmo, de rejeição total à fé, mas de uma reconstrução possível. Uma fé que se descola da tradição institucional e encontra outros. Isso não significa necessariamente abandonar todos os símbolos ou práticas do cristianismo. Muitas pessoas continuam a valorizar a Bíblia, a oração, a figura de Jesus, práticas caritativas. O que muda é o lugar a partir do qual essas práticas são vividas.

Esse processo também lança luz sobre a própria natureza da fé. A espiritualidade, afinal, não é monopólio das instituições. Ela é parte da condição humana. É o desejo de conexão, de sentido, de transcendência. E quando a instituição se torna opressiva, esse desejo busca outros caminhos — às vezes por dentro, às vezes por fora da religião tradicional, às vezes meio dentro meio fora.

Por que isso importa?

Falar sobre espiritualidade LGBT não é um luxo teórico. É uma urgência. Porque o sofrimento causado pela rejeição religiosa ainda está muito presente na vida de muitas pessoas LGBTs. Porque ainda hoje há jovens que, ao descobrirem sua orientação sexual, entram em pânico, com medo de “pecar” ou “ir para o inferno”. Porque ainda há famílias destruídas por lideranças religiosas que aconselham pais e mães a rejeitarem seus filhos. Porque ainda há muita culpa, muita solidão, muito silêncio.

Reconhecer que há fé depois da igreja — e que essa fé é legítima — é um passo importante na construção de uma sociedade mais justa e mais honesta com a pluralidade das experiências humanas. Isso não significa jogar fora a tradição cristã, mas reconhecer seus limites e suas violências, suas belezas e suas potências. Significa abrir espaço para outras formas de viver o sagrado. Também é uma chance para que as próprias igrejas se repensem. Porque a pergunta que fica é: o que leva tantas pessoas a precisarem sair para continuar crendo? O que há de problemático em um modelo religioso que exige o abandono de si mesmo como condição para pertencer?

Espiritualidades dissidentes, vidas inteiras

As experiências de pessoas LGTS que mantêm uma vida espiritual ativa fora das instituições religiosas mostram que é possível — e necessário — pensar a fé para além dos muros da igreja. Mostram que a espiritualidade é um terreno fértil, em constante transformação, e que ela pode florescer mesmo depois de ter sido pisada.

Há algo profundamente humano — e profundamente divino — nesse movimento de resistência. Porque crer, mesmo depois de ser rejeitado em nome da fé, é um ato de coragem. É um testemunho de que o sagrado não se deixa aprisionar por dogmas nem por doutrinas. E de que, sim, ainda cremos. Apesar da igreja. Porque o Deus em que acreditamos não tem medo das nossas cores, dos nossos amores, da nossa verdade.

Sandson Rotterdan

Editor chefe da Revista Senso, doutor, mestre e licenciado em Ciências da Religião, graduado em filosofia, teologia e graduando em psicologia.

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A Senso é uma revista bimestral voltada à temática do senso religioso contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como referencia os Estudos Religião.

ISSN 2526-589X

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