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Não há nada que não possa ser reformado – Sobre tradições e tradicionalismos

Não há nada que não possa ser reformado – Sobre tradições e tradicionalismos

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Aconteceu que por uma conjunção de motivos passamos três finais de anos juntas e a filha de uma grande amiga e um grande amigo disse: “Nós temos nossa própria tradição de Natal”. Não sei se no primeiro ou no segundo ano houve cenouras e leite para as renas do Papai Noel e algum tipo de sinalização brilhante para que ele encontrasse a casa e não houvesse o risco de esquecer de deixar o presente. Nos anos seguintes, essa parte foi abolida por motivos óbvios. Aconteceu, também, que depois desses três anos consecutivos não foi mais possível nos reunirmos da mesma maneira. E, ainda assim, essa é uma memória e uma tradição que me comove toda vez que penso naqueles momentos compartilhados e que nos conecta. Nossa tradição de Natal.

Com isso, eu quero dizer que consigo entender como as tradições são importantes para a constituição de nossas identidades, de quem viemos a ser e daquilo que compõe o nosso universo de sentidos. Mas também quero dizer que as tradições nascem de nossas experiências e se tornam importantes na medida em que sustentam nossas visões de mundo e nossas relações. Por isso mesmo, estão (ou deveriam estar) abertas a mudanças e transformações que emergem justamente de novas experiências. Eu já tive, tenho e possivelmente terei outras tradições de Natal. Nenhuma exclui a outra enquanto continuar fazendo sentido e alimentando a compreensão de quem eu sou e de quem quero ser.

Por esses dias foi comemorado o Dia da Reforma, alusivo ao dia em que Martim Lutero, segundo a tradição, afixou suas 95 teses em Wittenberg. Já se disse suficientemente e é bem sabido que esse gesto único, ou mesmo essa pessoa em particular, não foram responsáveis pelo que era, foi e veio a ser a Reforma Protestante, ainda que não se menospreze sua importância e participação. Disso, inclusive, são feitas as tradições. E não há problemas nisso; em princípio.

Acompanhando algumas manifestações e reflexões para este dia, agora e em outros momentos, é fácil perceber a importância dessa tradição e de sua celebração para muitas pessoas e comunidades. O que chama a atenção, no entanto, é aquilo que sucede com muitas tradições: elas passam a ser repetidas e preservadas mesmo quando carregam significados que podem ser, pelo menos, duvidosos, sem a possibilidade de uma reflexão crítica ou qualquer tipo de questionamento. Nada menos protestante que isso.

Há personagens e autoridades que, muitas vezes, estão implicadas nessas tradições e, supostamente, são um elemento fundamental de sua continuidade. No caso, o senhor mencionado, Martim Lutero, é uma dessas figuras para muitas pessoas que se entendem como parte da tradição protestante, e da luterana em particular. Eu até acho que ele mesmo possivelmente diria alguns palavrões e riria bebendo uma cerveja produzida por sua esposa se visse o que fazem em seu nome e como buscam torna-lo alguém acima de qualquer suspeita.

Nesse caso, revisões e descobertas históricas (aquelas coisas que passaram “despercebidas” por muito tempo) podem soar como uma ameaça à preservação da tradição e, até mesmo, para a identidade de algumas pessoas que dependem de sua permanência e estabilidade. Até mesmo a proposta de revisão e reformulação de determinadas questões pode provocar reações imediatas sem muita reflexão. Creio que seria possível invocar Freud para entender essas relações “filiais” e seus efeitos na psique humana. Mas como eu prefiro não dar tanta autoridade para homens europeus mortos e não sou especialista em psicologia ou psiquiatria eu prefiro não seguir essa linha de argumentação, ainda mais se eu tiver que apresentar uma lista de fontes e referências. Mais adiante acionarei outra fonte a esse respeito.

Exemplifico com outro caso: Jesus e a autoridade bíblica que (supostamente) garante estabilidade à tradição relacionada a ele. Certa feita, em um importante evento internacional de teologia, estava sendo discutida a centralidade da Bíblia para o Cristianismo. Um pouco cinicamente (confesso) eu afirmei que para ser “verdadeiramente cristão” (seja lá o que isso queira dizer) é preciso estar disposto e disposta a, inclusive, abrir mão da Bíblia como elemento central da fé. Eu tinha em mente particularmente aquelas ocasiões em que a Bíblia é usada para fomentar, justificar e aprofundar violências e injustiças.

Notei que houve uma certa preocupação (pastoral?) com a minha afirmação/pergunta e um amigo se achegou para me dizer que ele não acreditava que eu acreditava no que tinha dito, e achava que para mim a Bíblia era central, ou pelo menos importante. Eu disse que pensava que sim, mas que seu eu não estivesse disposto a abrir mão dela, ela – e aquilo que eu acredito que ela testemunha e potencialmente produz – deixaria completamente de ter sentido. Num contexto em que a Bíblia (inclusive como símbolo) produz violência, discriminação e injustiças de todos os tipos eu tenho que supor que ela possa ser suspendida em nome de outras fontes e materiais que promovam aquilo que a própria Bíblia testemunha, mas é incapaz de faze-lo por conta do contexto no qual está sendo lida e, possivelmente, manipulada desonestamente.

Ao fazer essa afirmação, eu pensava em figuras como Dietrich Bonhoeffer que falava de um cristianismo arreligioso, ou na Sra. Xavier de Clarice Lispector e seu desejo inabalável por Roberto Carlos:

“Então a Srª Xavier pensou assim: ‘Se eu quiser muito, mas muito mesmo, ele será meu por ao menos uma noite’. Acreditava vagamente na força de vontade. De novo se emaranhou no desejo, que era retorcido e estrangulado. Mas, quem sabe?, se desistisse de Roberto Carlos, então é que as coisas entre ele e ela aconteceriam.”

Mais ou menos como aquela passagem em que o tal Jesus diz, segundo as Escrituras, aos seus discípulos: “Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á” (Mt 16:25). E quem poderia supor que Jesus e a Sra. Xavier poderiam ter algo em comum?! E até parece que ele avisou aos seus seguidores e às suas seguidoras. Evidentemente os registros nem sempre ajudam e às vezes é possível criar outras versões, afinal, o mesmo Jesus disse que não veio para revogar a lei, mas cumprir, cada “i” e cada “til” (Mt 5.17,18). E, ainda assim, pareceria que ele mudou muita coisa. Talvez a culpa seja de Mateus e exegetas se debatem incansavelmente sobre o tema.

Paulo Freire e muitos outros e muitas outras educadores, educadoras, filósofos e filósofas já disseram que a sua tarefa está cumprida justamente quando se tornam prescindíveis. O mesmo pode ser dito do Papai Noel aos teólogos da libertação (o masculino é proposital). Todos vêm com a promessa de que deixarão de ser importantes ou, pelo menos, imprescindíveis (assim como suas narrativas e teologias) na medida em que novos contextos exigirem novas narrativas e novas respostas. O próprio Lutero deve se remexer no túmulo (ou não) quando ouve a galera cantando “Deus é castelo forte e bom, defesa e armamento”, especialmente no Brasil que elegeu a outra galera (ou a mesma) que “faz arminha com a mão”.

Mas nem sempre dá pra desculpar o Papai Noel, os teólogos da libertação ou mesmo Lutero que, de alguma maneira, podem ter se deixado levar pelo desejo da imortalidade nos tradicionalismos simplesmente para continuar operando. Quem nunca. Mas aí já é um problema deles e de quem entende que é necessário manter a tradição a qualquer custo – mesmo quando ela é uma tradição de outra tradição que reinventou outra tradição. No caso do Papai Noel a gente ainda teria que discutir a Coca-Cola© e sua participação na ivenção do símbolo e sua interferência na tradição. O marketing tem um papel tem um papel importante na manutenção das tradições.

No caso da Reforma (e outras datas comemorativas) ainda há a coincidência com outras tradições, como o Dia das Bruxas. Esse é um outro tema a ser aprofundado (a relação entre as duas tradições), mas algo que chama a atenção é que há, em muitos casos, uma demanda pela escolha de uma tradição por sobre a outra. Ou se comemora o Dia da Reforma ou se comemora o Dia das Bruxas. Sem entrar no mérito de cada uma das datas, suas histórias, significados e impactos, por que é mesmo que duas tradições não podem conviver, inclusive para uma mesma pessoa ou grupo social? Qual é a autoridade que define quais as tradições são válidas e quais devem ser rechaçadas e por quais motivos? Não inventamos e articulamos nós mesmos e nós mesmas nossas linguagens para dar sentido a nossas vidas em comunidade, usando referências do passado, demandas do presente e desejos em relação ao futuro?

“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue” – diria Riobaldo. Expandir; não restringir.

Para lidar com os riscos e os perigos dos tradicionalismos estagnados, Marcella Althaus-Reid falou da necessidade de “desfiliação” que, segundo ela, implica: “retrabalhar de forma crítica os contextos dos relacionamentos amorosos” (p. 710). “Isso pode nos deixar, obviamente, com a sensação de que ser uma teóloga é responder aos impulsos da ingratidão parental divina, e de certa forma, nada pode ser mais verdadeiro; a ideologia sexual em teologia deve ser traída” (p. 71). É aí que se coloca o que ela chama de “sujeito queer” ou “sujeito indecente”:

“O sujeito queer é nômade, não-fio e não possui vocação sedentária. Suas fronteiras de filiações estão movendo-se constantemente, destarte desestabilizando as ideias estabelecidas da ética cristã” (p. 71)

Isso não implica a eliminação de tradições, mas a sua constante revisão naquilo que ela chamou, na segunda parte do seu livro, de “antiteologias populares do amor”, “demonologia: incorporando espíritos rebeldes” e “santidade queer: revelações pós-coloniais”. Ou a construção de “tradições alternativas” no que Wanda Deifelt chamou de terceiro passo da Teologia Feminista:

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“Nesse terceiro passo, a teologia feminista tem a função não só de criticar o passado e buscar histórias perdidas de mulheres, mas também de reconstruir a teologia, re-criando e re-visando categorias teológicas, usando as experiências de opressão e as lutas de libertação das mulheres como articuladoras de saber. A base para essa reconstrução teológica não se encontra necessariamente dentro da igreja institucional e de sua tradição, das Escrituras, mas na convicção de que as mulheres são criadas à imagem de Deus, vivendo numa comunidade de fé e engajadas nas lutas de êxodo do patriarcado” (p. 184).

Minha suspeita (já há algum tempo) é que lideranças e grupos neo/conservadores e fundamentalistas já entenderam isso e grande parte de seu sucesso se deve a isso. Por trás de uma fachada de “conservação” de tradições e de inalteração e permanência está uma incrível capacidade de se adaptar e recriar e criar novas tradições. Já o contra-fundamentalismo que repousa na vaga acusação de que essas são interpretações ruins das tradições (inclusive da Bíblia), que se desgasta em tentar provar a “verdadeira tradição” e tem preguiça de pensar em novas ou recria-las, esquece justamente de olhar para a realidade concreta das pessoas e grupos hoje, o lugar de onde todas as tradições que informam a vida, seus desejos e suas necessidades emergem e ganham sentido.

Colocar a responsabilidade pelas decisões que vão afetar o mundo hoje nas mãos (ou nos escritos) de quem já não está mais aqui para se defender, além de ser um grande risco, é desonesto com as próprias tradições que surgiram e foram parte da experiência vital de pessoas e grupos no passado, mas que nem sempre podem ou devem ser revividas no presente. Não é um problema que tradições que nasceram no passado continuem informando nossas identidades e nossos modos de viver. Mas há um problema quando a possibilidade (e a necessidade) de questioná-las e revisa-las é suspensa – aquilo que Nancy Cardoso chamou de “fundamentalismos”. Se não estivermos abertas e abertos à possibilidade de abrir mão delas, elas possivelmente perderam o que de mais precioso poderiam transmitir: a esperança por justiça vivida no encontro e nas relações que antecipam essa justiça, ainda que em partes; já, mas ainda não.


Referências

ALTHAUS-REID. Deus queer. Rio de Janeiro: Metanoia, Novos Diálogos, 2019.

CARDOSO, Nancy. Palavras… se feitas de carne – leitura feminista e crítica dos fundamentalismos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2013.

DEIFELT, Wanda. Temas e metodologias da teologia feminista. SOTER (org.). Gênero e teologia. Belo Horizonte, São Paulo: SOTER, Paulinas, Loyola, 2003. p. 171-186.

LISPECTOR, Clarice. A Procura de Uma Dignidade – conto de Clarice Lispector | Conto Brasileiro. Acessado em 31/10/2021.