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A tensão religiosa em tempos de Coronavírus, na cidade de Paris

A tensão religiosa em tempos de Coronavírus, na cidade de Paris

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Não pretendia escrever sobre o Coronavírus, mas a realidade me obriga a fazê-lo. Hoje, exatamente agora, dia 17 de março, ao meio-dia, enquanto escrevo, estamos entrando em confinamento total aqui na França. Só poderemos sair mediante a apresentação de um atestado (documento fornecido pelo governo), onde declaramos estar saindo por um dos cinco motivos: ir ao médico ou hospital, ir cuidar de alguém mais vulnerável, ir trabalhar (nos casos em que o trabalho em casa não for possível), ir fazer esporte (apenas individual), caminhar com o cachorro ou levar as crianças nas creches que estão funcionando para quem trabalha nos serviços de saúde. Fora isso, devemos ficar em casa ou seremos penalizados. Por que chegamos a este ponto?

Na quinta-feira passada, dia 12, o presidente da República, Emmanuel Macron, fez um pronunciamento, pedindo que as pessoas restringissem ao máximo suas saídas para proteção de pessoas mais frágeis e vulneráveis, o que de fato não aconteceu. Muitas pessoas (a maioria jovens), pensando ser invencíveis, continuaram suas vidas normalmente. No sábado, em Paris, bares e restaurantes estavam lotados. Então, o Primeiro Ministro fez outro pronunciamento anunciando o fechamento de todo o comércio e serviços, exceto, mercados e farmácias. No domingo, novamente, parques e praças lotados, aglomerações… Resultado, alta taxa de contaminação (cerca de 1.100 pessoas em 24 horas) e, dessa vez, atingiu em cheio os adultos de mais de 30 anos, principalmente. Agora, além de “não ter passaporte” (palavras do Macron), o vírus não tem mais idade. Enfim, ontem, o Presidente da República novamente se pronunciou estabelecendo o confinamento obrigatório.

Mas, você pode me perguntar, o que isso tem a ver com a religião. Nada e, ao mesmo tempo, tudo. Vivi, na última semana, alguns episódios interessantes. Bom, primeiro uma constatação de que o principal assunto antes do Coronavírus, aqui, era a questão da religiosidade islâmica (mais precisamente quanto ao uso do véu por parte das mulheres) em contraposição à laicidade do Estado francês, conforme abordado na última coluna. No entanto, para além dos discursos acadêmicos e midiáticos, essa tensão se dá na vida real.

Estava no metrô, quando uma pessoa em situação de rua, claramente perturbada (provavelmente portadora de uma doença psiquiátrica), pedia dinheiro – sim, isso também acontece aqui – e era solenemente ignorada. De repente, ela começou a dizer em bom francês, às vezes misturando um pouco de árabe (eu não saberia identificar de que região): “Vocês cristãos não são solidários!”. Ao que uma mulher se levantou e começou a se defender: “Se não damos é porque não temos!”. Começou uma discussão entre as duas, quando um homem de origem árabe (que, também, minha ignorância não permitiu identificar de qual região), começou a tentar apaziguar. Então, os ataques da primeira mulher se voltaram para ele: “Vocês marroquinos não são solidários!” e dizia coisas em árabe e, também, em francês, que não cabe repetir aqui. O homem se irritou e mandou-a calar a boca. Decidi sair de perto, pois o nível de agressividade estava subindo, quando o metrô parou. O homem foi até o condutor e disse que a mulher estava ameaçando as pessoas com algum objeto. Eu saí. Uma mulher branca francesa também saiu e disse para o homem: “C’est du n’importe quoi!”. Neste contexto, seria algo do tipo, “isso é uma tempestade num copo d’água”. O homem respondeu: “Todos nós precisamos trabalhar, senhora.”. E ela: “Isso é a Sharia!”. Que seria, na visão do senso comum francês ocidental, o equivalente à “lei islâmica”. Tal lei violaria, para muitos entre eles, exatamente os princípios que lhes são tão caros de laicidade do Estado, dos direitos humanos, da liberdade de expressão, da liberdade feminina, etc. Enquanto, para os muçulmanos e mulçumanas, segundo a Profa. Dra. Patrícia Prado, “a Sharia é a lei de Deus revelada aos homens. Está ligada ao fiqh (jurisprudência). É a fonte da qual deriva as regras que conduzirão o comportamento, na vida pública e privada, do crente.” (p. 83)

Num outro dia, fui levar minha filha adolescente para fazer um teste de francês para a escola e, na sala de espera, havia uma mãe e uma filha, também adolescente, vestindo o véu cobrindo a cabeça. Ao se encaminhar para a sala do teste, foi pedido à menina que retirasse o véu antes de entrar na sala e ela obedeceu.

Enfim, esses são pequenos relatos de como a tensão religiosa está presente no nosso cotidiano de forma irrefutável e da necessidade de se estabelecer novas formas de diálogo para que o convívio possa ser mais salutar e respeitoso às escolhas e liberdades individuais, bem como aos símbolos religiosos e suas subjetividades. Sem dúvidas, o melhor caminho para a quebra de preconceitos é o do conhecimento, mas isso é assunto para um outro momento.

Voltando ao Coronavírus e ao estado de confinamento, paro e penso que, neste momento, ninguém está pensando na religião do outro, nas formas de se vestir e de expressar sua compreensão sobre o outro. Por um momento, alguns dias ou semanas, estamos iguais, no mesmo barco (sem desconsiderar, é claro, as diferenças sociais e o que elas implicam). Alguns com medo, outros ansiosos, ou aceitando a situação como ela é. Não podemos nos reunir em cultos ou templos, portanto a religião volta-se para a esfera privada, individual, no seio da família. E os movimentos solidários que têm acontecido, religiosos ou não, não perguntam a religião de ninguém. Oferece-se ajuda para fazer as compras de uma pessoa idosa, para passear com o cachorro, para ficar com as crianças de quem precisa sair para trabalhar, sem se importar se a pessoa está vestindo um véu ou um crucifixo. Precisou uma ameaça maior que nós para nos fazer silenciar por um momento e, quem sabe, refletir sobre o que nos trouxe até aqui e no que, de fato, devemos focar nossas atenções. O sair das necessidades e prazeres individuais para pensar no coletivo, quando todos e todas nós passamos a ser uma ameaça à vida do próximo, ainda que sem saber.

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O isolamento é necessário e pode ser muito útil. Veremos qual será o resultado disso em nossa prática diária e nas observações do dia-a-dia.


Referências

NEWBY, Gordon D. Sharîah. In: A concise Encyclopedia of Islam. Oxford: Oneworld Publications, 2002.
PRADO, Patrícia Simone do. Toda Terra é Karbala, todo dia é Ashura: A pedagogia do martírio nas narrativas xiitas e a construção de uma identidade de resistência. Tese.