A metáfora das religiões como caminho
Em uma recente reunião do nosso Grupo de Pesquisa Religião, Pluralismo e Diálogo, estávamos discutindo a respeito do “diálogo interfé”, uma expressão utilizada pela teóloga feminista Kwok Pui-lan, quando um dos membros trouxe a metáfora da religião como caminho de Raimon Panikkar (1918-2010). Segundo esta metáfora, somos pessoas peregrinas e as religiões são como caminhos em torno de uma montanha, que levam ao seu cume. E, acrescenta que, embora esses caminhos possam se cruzar em determinados momentos, não seria adequado ficar mudando de caminho, pois isso jamais nos levaria ao cume.
Aquilo ficou martelando em mim, pois ao mesmo tempo em que me considero “sem religião”, minha busca espiritual sempre esteve ligada às diversas experiências às quais fui exposta ao longo da vida. (Como contei neste texto sobre a Diversidade Religiosa à Brasileira). Então, resolvi escrever aqui uma possível resposta a esta minha inquietação.
Existem muitos caminhos externos (não somente as religiões institucionais e os novos movimentos religiosos, mas as filosofias, as ciências, o ateísmo, etc.), mas a forma como iremos trilhá-los é interna e individual. Portanto o verdadeiro caminho acontece dentro e não fora. Da mesma forma, em que existem diferentes idiomas e linguagens (também uma metáfora de Panikkar), mas cada uma é interpretada e se expressa de uma forma diferente, a partir da síntese que é feita pelo indivíduo. Daí surgem os diferentes sotaques, gírias, expressões idiomáticas, as diferentes formas de reproduzir a experiência em forma de linguagem: prosas, poemas, música, a dança, as artes em geral.
Essas complexidades individuais podem encontrar ou não ressonância na coletividade. Quando isso acontece, há uma consonância entre o caminho interno e o externo e a adesão à uma instituição torna-se mais provável. Quando não acontece, há um certo isolamento da pessoa peregrina que passa a viver mais focada no caminho interno, o que não necessariamente se reflete em um individualismo, no sentido egoísta e egoico do termo, mas no sentido de viver profundamente a autenticidade e a complexidade da experiência, seja ela religiosa ou não.
Abraçar a autenticidade da própria experiência, é como amar o próprio corpo da forma em que ele se apresenta e ter a consciência de que a experiência de viver neste corpo é pessoal, intransferível e inexplicável. Podemos traduzir em palavras essa experiência, mas a palavra será também interpretada e vivida de forma diversa por quem a escuta. Assim, formamos um emaranhado de caminhos que se cruzam, fazendo conexões, que são necessariamente temporárias e provisórias. Já o caminho interno existe, enquanto houver consciência, mas está em constante transformação. Como um software que é atualizado a todo segundo, a partir das milhares de experiências que são vividas. Cada inspiração e cada expiração é uma experiência e constitui parte desta transformação.
As religiões não são, neste sentido, caminhos, mas um encontro de caminhos que se conectam e fazem sentido juntos naquele determinado espaço-tempo, mas que podem não mais fazer no segundo seguinte. Na próxima expiração. Mas, o caminho interno permanece e continua existente na experiência individual.
Isso pode, também, vir a explicar a múltipla pertença. Se a complexidade da minha experiência individual se conecta a diversos caminhos dentro de coletivos diferentes, nos quais me sinto acolhida, por que devo me restringir a uma só conexão? Por que limitar o que pode ser tão rico, é claro, quando vivido não de forma superficial? Ou melhor, às vezes até na superficialidade, as conexões internas do caminho estão sendo feitas. Pois, o que importa não é a forma como se apresenta, mas como está reverberando dentro. Como múltiplas vozes, com diferentes sotaques, que formam um diálogo interno até que seja feita uma síntese que, de forma geral, traduz-se como silêncio. O silêncio entre uma respiração e outra. Entre um pensamento e outro. O silêncio após o gozo. O silêncio da fé.
Os símbolos, os mitos, os rituais, os templos, os sacerdotes, as pessoas que encontramos, as ações, enfim, nos conduzem (ou deveriam nos conduzir) a esse silêncio, que é interno e individual. Assim como o caminho. Para dentro.
O caminho é você
Você é o caminho, a verdade e a vida
O caminho é dentro
Existe dentro?
Referências
PANIKKAR, Raimon. The intrareligious dialogue. New Jersey: Paulist Press, 1999.
PUI-LAN, Kwok. Globalization, Gender, and Peacebuilding: The Future of Interfaith Dialogue. New York: Paulist Press, 2012.
TOSTES, Angélica. Diálogo Interfé. ARAGÃO, Gilbraz; PANASIEWICZ, Roberlei, RIBEIRO, Claudio de Oliveira(orgs.). Dicionário do Pluralismo Religioso. São Paulo: Recriar, 2020.
Doutoranda em Sciences Religieuses pela École Pratique des Hautes Études- EPHE (Paris Sciences et Lettres), Mestra em em Ciências da Religião pela PUC-Minas, Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Objetos de pesquisa: Diálogo Intercultural, Inter-religioso e Interconvicções, Pluralismo Religioso, a obra de Raimon Panikkar, Hinduísmo (Vedanta Advaita) e Cristianismo. É membro do Grupo de Pesquisa REPLUDI (Religião, Pluralismo e Diálogo) do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-Minas.