Rumo a uma Teologia da Defifiência [Disca]

Julho é o mês do Orgulho das Deficiências [disca], assim como junho é o mês do Orgulho das diversidades. O que há de comum em falar de deficiências e de diversidades sexogenéricas? Num primeiro momento poderia parecer que são duas lutas sociais carentes de relação. No entanto, se conhecemos em detalhes suas reivindicações e história, encontraremos muitas formas de interconectá-las.

Como corporalidades cuir vivemos violências e discriminações. Historicamente falando, sempre nos entenderam como estranhas. Nos ensinam a nomear nossas existências como o indesejável. No México, por exemplo, é comum encontrar frases como: “prefiro que minha filha seja puta a lésbica; prefiro uma filha morta a puta” ou “prefiro que meu filho morto a viado”. Desde nossa primeira infância nos ensinam a entender que nossas orientações sexuais e identidades de gênero não são o desejável. Pareceria que não merecemos viver uma existência plena.

Como corporalidades com deficiência [disca] vivemos violências e discriminações. Historicamente nos têm entendido como algo incompleto e que deve ser curado. Anormais, ao fim e ao cabo. O exemplo daquilo que ninguém quer tornar-se.  Por que alguém buscaria estar doente? A pior tragédia é quando alguém é amputada/o. Nascer com alguma deficiência se converte em tragédia familiar; são a condenação a existências maltratadas, incompletas… incapazes de produzir.

Teologicamente falando, como corporalidades queer temos sido entendidas como doentes e pecadoras. Em alguns momentos uma mistura de ambas. Pecadoras e doentes, uma mistura que, quase sempre, vai acompanhada de uma compaixão mal-entendida: “não as odiamos, Deus odeia o pecado, mas não o pecador”. Além de sermos pecadoras e enfermas, somos odiadas por Deus.

Enquanto isso, as corporalidades com deficiência têm sido entendidas como aqueles sujeitos aos quais se pode aplicar uma compaixão cristã; quer dizer, sujeitos incapazes de atuar e construir sua própria realidade. Sujeitos que sempre necessitaremos depender de alguém mais para existir no mundo. Ou bem, teologicamente falando, justificam as deficiências a partir do pecado: “mas, quem pecou; ele ou seus pais?”. É impossível imaginar que Deus tenha permitido que alguém com deficiência [disca] exista. Ao que parece, nossas vidas são entendidas como o resultado de um Deus perverso que castiga pelos pecados.

Mais problemático ainda, atualmente certas teologias unem ambas as teologias argumentando que as pessoas que adquirem uma deficiência ou doença estão associadas ao “homossexualismo” e “lesbianismo”. Assim, encontramos que, o problema são as práticas sexuais não heternormativas que as pessoas podem ter.

Como uma mulher lésbica que vive com deficiências invisíveis pode fazer teologia? Fácil, enunciado, imaginando e crendo que outro entendimento da Deusa é possível. Declarando-me ateia do Deus antes descrito.

Metodologicamente falando, me separo da Bíblia como única forma de fazer teologia. Partindo do fato de que toda pessoa que crê tem uma experiência única e sagrada com a Divindade e a partir dessa experiência se pode imaginar a teologia. Apelo à imaginação ao invés da razão para permitir-nos expandir nossos horizontes teológicos e regressar à Divindade, que faz muito tempo foi sequestrada pela teologia de escritório. Por último, mas não menos importante, entendendo a nossas corporalidades cuir e com deficiência [discas] como locus theologicus.

Há alguns meses escrevi para Com Efe um pequeno texto refletindo sobre as experiências das corporalidades com deficiência [discas] retomando minha própria experiência e a experiência de pessoas próximas a mim. Na continuação, apresento uma adaptação do texto acrescentando novas contribuições que nos permitam escrever teologias libertadoras para quem vivemos como pessoas com deficiência [discas] e cuir.

Rumo ao entendimento de uma Divindade que se encarna nas vulnerabilidades

Estávamos nos abraçando em silêncio, quando me pergunta: por que Deus permite as doenças?

Minha resposta foi uma heresia: a Divindade não pode tudo e não controla tudo. Me nego a crer em uma Deusa que violenta e envia doenças como teste ou castigo. Me chamem de louca, mas se ser cristã significa crer em um Deus que envia doenças como castigo, faz muito tempo que deixei de ser cristã. E tampouco me interessa voltar a sê-lo!

Me nego a crer que Deus, desde o seu escritório dita diagnósticos e condena as pessoas a viver com dores. Sou ateia de um Deus que castiga as práticas sexuais de seus/suas filhes com dores eternas e doenças incuráveis. Esses atos são perversos! Esses atos são violentos! Me nego a crer em um Deus assim.

Deus não permite as doenças, ao invés disso se encarna em nossas vulnerabilidades; nos acompanha e as vive conosco.

Teologia da doença não deveria ser o entendimento de que aquelas de nós que vivemos doentes/com deficiência somos sujeitos que requerem receber ajuda eternamente. Não deveria significar nos questionamentos quando, como e onde pecou. Teologia, doença e deficiência deveriam nos chamar a enunciar a uma Divindade que encontra a fragilidade e vulnerabilidade como fonte principal de resistência. É entender nossas corpas, com suas dores e doenças, como locus theologicus.

A corpa como locus theologicus é reconhecer uma Divindade viva, encarnada na experiência de sujetes que o sistema tornou vulneráveis. É reconhecer a Divindade em:

  1. Um suspiro de duas corpas doentes. Aquela que se encara em nossas corporalidades. Deusa Eternamente Vulnerável. O que acontece se a sacralidade e a força da Divindade vêm do reconhecimento de suas vulnerabilidades? Um suspiro e uma noite de duelos. Como viver uma vida que a sociedade marcou como invivível?
  2. Dexs de Ternura Radical, sacralidade que nos convida a abraçar a própria vulnerabilidade e a nos reconhecer a partir da coletividade.
  3. Mãos entrelaçadas, reconhecendo sua inflamação. Massagens e maneiras diferentes de dar afetos. Encontro entre corpas, prantos, risos e afetos que se interconectam.
  4. Um abraço, transbordar de sentimentos. Ressurreição de possibilidades. Sim, há vida depois do diagnóstico! Quem disse foi a lésbica, enquanto abraçava a quem estava a ponto de ser diagnosticade.
  5. O roçar de duas corpas, duas que se fazem uma. Uma em dores, uma em mal-estares físicos e tomando comprimidos. Acompanhando-se mutuamente, vivendo mal-estares e aprendendo a reconhecer que existe fortaleza para a partir da vulnerabilidade. Fazendo do tomar medicamentos um ritual para estar bem, para poder seguir desfrutando da vida.

Se a Divindade criou o ser humano a sua imagem e semelhança, Ela é imperfeita. SE a Deusa se encarna na minha corpa, Ela vive com Lúpus, com Artrite Reumatoide, com Parkinson. A Deusa está doente! A divindade tem deficiência; Ela é deficiente [disca]!

A Divindade é acompanhamento

Chegamos aos laboratórios cedo. Estávamos juntes, esperando a retirada da amostra. Rotina cotidiana para mim. Algo novo para elu. Dois mundos, duas experiências e o entrecruzamento de sentimentos. Um luto que espero que ninguém viva. Ainda assim, estamos aqui… começando de novo.

Acompanhar a partir do silêncio. Estar e só isso. Ler os resultados juntxs. Ir para a consulta médica e escutar o que não queres aceitar; o que você jamais gostaria de ter que viver. Onde está a Deus quando a médica diagnostica? A Ruah, esse sopro vital, se torna vida quando você escuta palavras de encorajamento e empatia. A Ruah se faz presente nas palavras de uma médica: “farei todo o possível para encontro o tratamento apropriado para melhorar tua qualidade de vida”. Quando essa mesma médica pergunta pelos pronomes de tua/teu comapanheire para chama-la da maneira correta.

Em forma de conclusão: breves recomendações para viver uma Deus Deficiente [Disca]

  1. Equipes de saúde que se deixem comover pela realidade vivida e permitam que a Ruah, esse sopro vital, se mimetize em palavras de consolo.
  2. Uma Deusa que abraça e encarna a vulnerabilidade por meio de um Jesus ressuscitado. Negar a existência de um Deus que tudo vê, tudo pode e tudo sabe. Nos reconciliar com uma Divindade que acompanhar nosso sofrimento e que Ela mesma sente.
  3. Reconhecer pessoas com deficiência [disca] e crip como vozes proféticas que questionam o sistema capitalista e a compreensão do valor humano que o sistema enuncia. Somos valiosxs porque existimos, nosso valor não recai na produção!
  4. Entender nossas corporalidade com deficiência como espaços vivos para viver e enunciar à Divindade nos permite ter enfoques teológicos libertadores. Isso inclui retomar saberes trazidos do feminismo comunitário territorial por meio da realização de mapeamentos do corpo-território. Assim, nossas corpas são sagradas, belas habita a Divindade. A partir dos nossos sentires, paixões, dores, deficiências e teologias podemos gestar teologias que nos aproximem mais de uma Deusa de ternura e amor.

O texto mencionado pode ser acessado aqui.

Mónica T. Alvarez

É graduada em Direitos Humanos e Gestão de Paz pela Universidad del Claustro de Sor Juana e mestra em Estudos Críticos de Gênero e Teologia pela Comunidad Teológica de México. Seu trabalho teológico aborda as experiências das juventudes cristãs cuir, com ênfase nas histórias de vida de mulheres e pessoas não binárias. Da mesma forma, busca aportes para imaginar teologias da deficiência/discas/crip.

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A Senso é uma revista bimestral voltada à temática do senso religioso contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como referencia os Estudos Religião.

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