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Desentortando a fé: quando o corpo também é religião

Desentortando a fé: quando o corpo também é religião

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Explicar a realidade, bem como a natureza humana, constitui uma das formas mais antigas de produção do saber a partir da investigação de cosmologias vivenciadas e aprendidas por determinados povos. Nessa busca, a relação entre corpo e alma, tal como a definição da essência do homem e de sua aproximação com Deus, marcam grandes momentos da investigação filosófica que propuseram estabelecer e explanar conceitos e definições, a partir da linguagem, do que é a alma e o corpo, assim como o que é mundo sensível e inteligível. Ao dizer que é o corpo cárcere da alma, Platão define uma hierarquia da realidade humana em que a alma, que participa do mundo inteligível, marca a perfeição no homem. Embora o corpo possibilite o homem conhecer como são as coisas, é por meio dela que ele conhece o que são as coisas.

No entanto, o filósofo francês Michel Foucault nos acorda para uma outra possibilidade de compreender a realidade e a vivência humana no mundo da mutabilidade. Segundo o filósofo pós-estruturalista, é a alma, entendida como uma identidade psíquica, o cárcere do corpo, pois este é enquadrado pelo poder normativo que o cerca à medida em que se torna sujeito. Os valores que nos “educam” são também princípios de enquadramentos morais que formam, através da repetição, costumes impostos aos sujeitos e interiorizados por eles. Por essa via, compreendemos que entender como as coisas são a partir da nossa corporeidade e da percepção da construção dos valores éticos, morais e religiosos, é imprescindível para interiorizarmos a mudança das formas de expressão artística do humano que visam traduzir o sentimento do sagrado, ou da vivência de espiritualidade.

A arte sempre foi a forma mais simples de transmitir a experiência religiosa por não exigir, necessariamente, do artista, que explique sistematicamente o que foi visto ou sentido durante o momento de transe. Utilizada por grandes místicos como São João da Cruz, Teresa d’Ávila e Rhumi, a poesia se faz caminho para que o outro consiga passear pelas mesmas veredas do sentimento de transcendência sem garantir que são as palavras do místico o ingresso para a experiência, mas sim atestados de um convite em que a expressão se faz necessária. O corpo, como atesta Foucault, é a expressão de poderes e saberes. É ele que nos possibilita conhecer e experimentar o prazer, assim como a punição e a vigilância. Categoria que imprime sua marca em toda expressão e recepção da transmissão de conhecimento, a corporeidade destaca as manifestações artísticas religiosas como forma de se instaurar não só um sentimento, mas uma praxeologia, isto é, um modo de pensar e agir a partir de determinados conceitos pré-estabelecidos e despertados.

Assim como um pesquisador não parte de um lugar de plena isenção ao iniciar um trabalho científico, a arte não domina, e não pretende dominar, esse espaço imaculado de ausência de poder, uma vez que trabalha com a corporeidade e os sentidos para penetrar o sentimento do outro. Não é, também, puro instrumento de persuasão, pois embora desperte ideias em quem é atingido por ela não o faz sem um esforço íntimo e subjetivo. Nasce da necessidade de expressão do sujeito e penetra os crespos do outro, despertando uma identificação ou repulsa que dialoga com a forma com que este outro foi constituído enquanto sujeita ou sujeito dentro de uma dinâmica de enquadramento.

É inevitável que vidas marginalizadas construam uma expressão artística que transmita, a partir da realidade vivida, uma verdade religiosa que não ignore as suas particularidades. Na música popular, encontramos artistas como Ventura Profana1Cantora e compositora travesti que utiliza expressões religiosas, profanas e corporais em suas performances musicais., que marca sua transição e performance de gênero em suas letras sobre Deus, além da presença do sentimento de fé nas periferias e nos limites da pele e no transbordar das escrituras. Na música Homem Torto, Ventura Profana faz um paralelo com a música homenzinho torto da cantora gospel Aline Barros e diz:

“Havia um homem torto

Morava numa casa torta

Andava num caminho torto

Toda sua vida era torta

Torta, torta

 Um dia, esse pequeno homem

A trava encontrou

E tudo que era torto

A trava derrubou

[…]

Foi tremendo

Os vasos transbordaram de azeite, fartura de pão e peixe

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E pencas taba pra elas acordar

Aquilo que era terra, virou mar

E o que é macho, branco e torto

A trava vem exorcizar.”

Colocar no centro da reflexão religiosa a figura de uma travesti como agente de mudança e transformação, e a metáfora do macho, branco e torto como representação do inimigo que deve ser exorcizado, é tanto uma forma de afirmar a espiritualidade marginal que sobrevive em meio a carência, quanto uma denúncia de uma estrutura social que marginaliza determinados tipos de existência enquanto eles, que centralizam o controle do poder, vivem uma vida torta que deve ser derrubada. A estrutura das religiões, bem como a expressão religioso, acontece por meio da linguagem, visto que somos nós mesmos seres de linguagem, nesse sentido, a verdade da fé depende dos corpos que vivenciam o fenômeno religioso e é traduzida para linguagem da música de acordo com a realidade viva, expressando o real na produção artística. Nesse sentido, a revelação do sagrado revela também uma estrutura social e religiosa que deve ser transmutada para ser reconhecida por aqueles que não são contemplados na forma original de determinada tradição.


Referências

Ventura Profana. Homem Torto. Disponível em:  Acesso em: 14/05/2021.

Notas

  • 1
    Cantora e compositora travesti que utiliza expressões religiosas, profanas e corporais em suas performances musicais.