No princípio, ninguém era cisheteronormativo. Quem leu Gênesis 2 só pelas catequeses sabe: Adão e Eva surgem como casalzinho padrão, mas o texto hebraico e suas antigas interpretações nunca couberam nesta caixa. Antes de qualquer costela, a humanidade era andrógina – híbrida, múltipla, ambos e nenhum.
No livro organizado por Athalya Brenner, Gênesis a partir de uma leitura de Gênero, as autoras recordam que em antigas tradições judaicas, especialmente em algumas leituras místicas do Midrash e da Kabbalah, o primeire ser humano (Adam) é uma pessoa andrógina — ou seja, contém em si tanto o masculino quanto o feminino. A androginia é o ponto de partida do humano: nem macho, nem fêmea. Seria Adam o/a primeiro/a intersexual? Adão, na verdade Adam, é termo hebraico – não nome próprio – mas um substantivo coletivo ou neutro, representando a humanidade antes da separação em “homem” e “mulher” (Gênesis 2,21-23).
De início, Eva e Adão eram ambos transgressores em potencial, prontos para abocanhar a sabedoria proibida do pomo do conhecimento do bem e do mal. Logo cedo, Eva escuta, atentamente, a visita mais inconveniente da história: a serpente mítica do além-mundo. Não aquela besta caluniada pelos dogmas, mas a primeira intermediária queer, um “falo encantado”, portadora do saber proibido. De acordo com André Lacocque na obra Pensando biblicamente, rabinos antigos afirmavam que depois de Eva e Adão manterem relação sexual, e enquanto Adão dormia, a serpente se aproximou para conhecer Eva e sussurrar em seu ouvido o desejo do conhecimento do bem e do mal. Então, Eva e a serpente se entregaram em prazeres sexuais. Nessa hermenêutica rabínico-sexual, Eva morde o fruto, e nesse gesto há tudo que aterroriza os puros: desejo, fome, capacidade de tomar iniciativa – todos ingredientes de uma revolução política e erótica.
Ainda mais indecência surge na interpretação suprimida ao longo dos séculos: Adão também gostava da fruta. Santo Hipólito de Roma, denunciando a heresia dos ofitas em sua obra Refutação a Todas as Heresias (ou Philosophumena), livro V, capítulo 9, entende que, depois de Eva, foi a vez de Adão se encontrar com a serpente-naás – e não exatamente na posição que a história deixou passar. Adão foi passivo. Sim, o primeiro homem era viadão: experimentou a alegria do ser-penetrado, o prazer – sexual e simbólico – de não reinar, mas de gozar outro tipo de domínio.
Na verdade, para os ofitas ou naasenos, a serpente-naás não veio para lançar o mundo no pecado, mas para libertar Eva do tédio da submissão. Nada de pecado original – o que houve ali foi uma aula prática de resistência epistemológica e erótica.
Assim, seguindo o modo de fazer teologia de Marcella Althaus-Reid em Teología Indecente, podemos dizer que, no jardim, sexo não era apenas possível, mas ato inaugural da gnose, transmissão de liberdade pelo gozo que renuncia ao controle. O prazer da passividade, aqui, não é derrota, é iluminação. Nada de “masculinidade original”; a fundação bíblica é queer, indecente e aberta ao prazer do lado de lá.
A tradição tentou apagar essa indecência. Chamou de pecado. Inventou punição. Tentou controlar a interpretação da narrativa para que ninguém desconfiasse que a passividade de Adão estava ali há milênios, antes mesmo de Sodoma ter endereço. Só que expulsar Eva e Adão do Éden não é punição – é liberdade, que nem saída do armário. É nessa passagem que se funda o que importa: a libertação da prisão da decência, a iniciação da humanidade no devir, no risco, no desejo vivo.
No fundo, a saída do paraíso revela um grande segredo desse texto bíblico: quem quer viver na verdade e na liberdade de si, pode perder a casa, mas ganha corpo – corpo passivo, aberto, indecente, desejante e misturado. Eva (a mediadora com o além-humano) e Adão (o penetrado inaugural) abrem o ciclo de uma teologia libertadora – aquela que nomeia a volúpia, e ri do medo dos bem-comportados. Se o mundo nasceu na indecência, não é de admirar que Marcella Althaus-Reid insista: só há esperança para quem rompe com a decência. No fim, o Éden era só o primeiro armário. E a Bíblia, lida sem bombacha, é conto de libertação e prazer.