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Arte e Religião: seria a arte livre?

Arte e Religião: seria a arte livre?

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Será possível para os artistas permanecerem imunes aos interesses e contextos das épocas em que viveram? Poderíamos, então, pensar e supor uma manifestação artística mais “livre” de modo objetivo, identificando um momento da história passada em que tal situação tenha de fato ocorrido? Em outras palavras, conseguimos apontar um caso concreto de manifestação artística livre ao longo da história ou estaremos condenados à idealização do que quer que venha a ser liberdade na arte? O que é concretamente liberdade da arte?

Estas perguntas não são exatamente retóricas, mas sim elaboradas com espírito cético, ou seja, temos dúvidas quanto ao lugar em que depositaremos a nossa certeza uma vez que não conseguimos sair da equipolência, a saber, o quadro argumentativo em que um juízo se encontra neutralizado por um outro, somente restando então a suspensão dele próprio. Convido então os leitores a recuperarem comigo esse percurso rumo à verdade, mas que tem dificuldade de abandonar a dúvida.

As manifestações artísticas não podem ser vistas como apartadas do contexto de uma época. Do contrário, corremos o risco de idealizarmos a arte em si e, à moda hegeliana, começarmos a tomá-la como uma entidade que tem vida própria e que caminha celeremente acima, inclusive, dos artistas que são quase que só instrumentos ou entes que fazem manifestar o espírito.

Parece-nos mais crível que a arte venha a ser tomada como um dos meios de expressão de um momento histórico. Assim, através dessas manifestações – pictóricas, escultóricas, literárias, poéticas, fotográficas, cinematográficas, musicais, teatrais, etc. – podemos, então, nos aproximar, mesmo que de uma maneira específica, dos sistemas de governo, dos hábitos e costumes, da sociedade em si, dos modos de amar ou de se reconhecer a si próprio. A chamada autonomia da arte – deixando de lado aqui os aspectos filosóficos que se remetem ao aparecimento da Estética no século XVIII e seu aprimoramento por Emmanuel Kant – se desenvolveria com o tempo, na medida em que os elementos técnicos e poéticos viessem a ganhar mais atenção do que a própria inspiração nos moldes do figurativismo mimético.

Mas, de uma maneira ou de outra e de modo inconteste, sendo a arte o produto do engenho dos artistas e sendo estes agentes sociais concretos e reais, não conseguimos supor um momento em que as expectativas de uma época não se remetam ao fazer artístico específico. Como supor então que tenha havido – ou que possa haver – um momento histórico em que a comunidade dos artistas agiu de modo independente dos anseios sociais de que privavam? Uma rápida visada na história nos sinaliza que na maior parte do tempo, a arte manifestou-se a partir de imperativos religiosos. Podemos compreender tais ocorrências na medida em que as religiões logo perceberam o poder da imagem no itinerário de sua organização. Assim, dentre as civilizações antigas do mundo como um todo, as relações entre o fazer artístico – a pintura, o desenho, a escultura, etc. – e as crenças religiosas foram sempre íntimas. Diga-se então, que os detentores desse fazer eram acionados pelo Estado ou pelos sacerdotes. Como supor então que tivessem liberdade para virem a realizar algo que não criasse identificação com a religião? Talvez uma liberdade possível: a do estilo e da maneira em realizar tal ou tal imagem. Isto pode ser pensado na medida em que não estamos na era de reprodutibilidade técnica e a obra possuía, de acordo com Walter Benjamin, uma aura.

© Frederick Fenyvessy
© Frederick Fenyvessy

Talvez entre gregos e romanos, tenhamos tido um breve hiato, uma vez que a arte se torna mais mundana, representando cenas frugais. Mas mesmo assim, nos Retratos romanos – os Portraits, esculturas super realistas de patrícios e patrícias – sabemos que retoques eram feitos na direção de se valorizar aspectos que ficariam para a posteridade, tais como coragem, bravura e tenacidade. Esses escultores então eram de fato livres?  E como pensar a liberdade nesse contexto histórico preciso?

Na Idade Média ou no Renascimento e Barroco, o predomínio da Igreja Católica como a principal entidade – e quase, a única –  a encomendar as obras de arte é bem conhecido. O artista em questão oferece seus dotes para a realização das obras que adornariam catedrais e mosteiros. Dentro do possível, sem que corramos o risco da idealização sonhando com uma liberdade que não é a deste mundo, alguns artistas irão forçar os limites havidos entre a expectativa do que foi encomendado e o que será de fato realizado. O artista tem, então, um gênio, bem entendido aqui como um temperamento.

Michelangelo Buonarroti (1475-1564), ao conceber e realizar os afrescos no teto da Capela Sistina em Roma entre os anos de 1508 e 1512, parece ter se desentendido com o seu patrono, o Papa Julio II, vindo então a agregar a sua interpretação às histórias que deveriam ser ali representadas. Poderíamos dizer que Michelangelo agiu com liberdade e independência? Caravaggio (1571-1610), teria enfrentado problemas por conta dos personagens bíblicos de suas telas, tais como Jesus, Maria e os apóstolos serem realizados tendo por inspiração os mais comuns dos mortais com quem o artista privava da intimidade. Teria então Caravaggio sido livre em sua criação artística?

Essa tendência, que é a do artista como um gênio, ganha mais destaque, ainda que de forma prematura, no Renascimento. Assim, os artistas com nome próprio e assinatura serão chamados para a realização de telas que viessem a exaltar as qualidades de outros personagens, que não somente os religiosos. Os retratos de príncipes, princesas, reis ou rainhas, bem como dos novos financiadores das artes, os burgueses, começam a aparecer com  mais destaque. Mas, mesmo assim, os artistas ainda estarão submetidos às encomendas e a liberdade que terão somente poderá guardar proximidade com o estilo que detêm ou dominam. Mas, não poderão receber a encomenda e ridicularizar o mecenas sob o risco de não mais receberem propostas de trabalho.

É somente com o Romantismo que esses aspectos serão totalmente alterados e não é por acaso que o momento contemporâneo guarda identificação com esse período da história da arte e da literatura.  Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) veio a realizar um retrato da família real de quem era artista contratado que costumeiramente vem sendo visto como resultado de sua visão ácida e de seu desprezo pelos nobres (“Carlos IV e sua família”, cerca de 1800). Enfim, como poderíamos supor a obra de Willian Turner (1775-1851) fora de seu contexto romântico?

Os chamados “ismos” do final do século XIX e de grande parte do século XX, vieram a demarcar esse ideal de independência notadamente moderna. Os artistas chocavam parte da opinião pública, mas também granjeavam conseguir novos adeptos e seguidores. A liberdade do artista ou da própria arte sendo sempre motivo de discussão. Dentre os artistas que se colocavam ao lado das causas ideológicas de esquerda, se estivessem em países do ocidente capitalista, seriam banidos, deixados de lado, exilados ou presos. E com os artistas que estivessem nos países comunistas que de alguma maneira, ambicionassem expressar as mazelas do autoritarismo ocorreria o mesmo. Mas, se esses artistas trocassem de lado, teriam muitas chances de serem aceitos. Mas eles seriam livres?

Pode ser que tenhamos todos nos acostumado com a dinâmica das artes a partir da modernidade: a arte sempre na expectativa de oferecer algo de genuinamente novo e em confronto com normas, instituições ou regras. E a partir daí, julgamos as manifestações como mais livres ou menos livres. Contudo, é importante que se perceba que as manifestações artísticas inevitavelmente contam com alguma organicidade em relação às expectativas do período em que elas ocorrem.

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A arte, especialmente quando formal e abstrata parece mais se aproximar de um ideal de liberdade e autonomia, uma vez que passa a circular num meio em que unicamente importam as regras que foram criadas para si mesma: a linha, o traço, as cores, as matérias, etc. Paradoxalmente, quanto mais a arte se alista em algum movimento e se engaja, mais ela corre o risco de se submeter aos ditames e orientações que são extrínsecos – mas que também podem estabelecer identidades –  ao fazer artístico.

Assim, retomando nosso início cético, a independência da arte e dos artistas parece não guardar ligações expressas com os movimentos religiosos ou políticos, mas com uma quase introspecção do próprio artista. No contexto contemporâneo, essa liberdade corresponderia a nada desejar, nada esperar e não criar qualquer tipo de expectativa em relação à aceitação do mercado, ou qualquer outro grupo que sendo uma minoria, se pretenda hegemônico.

Para finalizar, sempre é bom recuperar os ensinamentos do pensador francês, Alexis de Tocqueville (1805-1859), na sua obra capital, A Democracia na América, de 1832. Como sabemos, interessado pela América como um laboratório em que a Democracia tinha sido colocada em prática desde a independência, em 1776, Tocqueville para lá viaja tendo em mente então uma comparação com o regime oligárquico e absolutista contra o qual lutaram os revolucionários franceses de 1789.

Para o autor, do ponto de vista paradoxal, não haveria sistema que mais colocasse em risco a liberdade do que o democrático. E isso por conta do que ele chamou de a “tirania da maioria”: o risco iminente de que todos, numa democracia, venham a aceitar os ditames morais e estéticos professados pela maioria. Tocqueville vaticinava então que se a democracia tem meios para questionar com cada vez mais firmeza a perda da igualdade e o surgimento de privilégios, o mesmo não ocorre em relação à liberdade, uma vez que essa é volátil e sequer sabemos ou percebemos quando estamos a perdê-la.

Em relação à arte, era com certa surpresa que o autor se voltava para o período absolutista francês sob o governo do Roi Soleil, Luís XIV (1638-1715) percebendo que na sua corte, os artistas poderiam até vir a ridicularizar o monarca, sendo que isso poderia ser percebido a partir do espírito, da sagacidade e do humor pertencentes ao artista em questão. Para Tocqueville, na democracia, isso não poderia ocorrer se por um acaso viesse a desagradar a maioria.

Pode ser que essas reflexões venham a trazer alguma espécie de luz para as tensões teóricas existentes e que opõe no contemporâneo, as práticas religiosas, político-ideológicas e partidárias às expectativas em relação ao fazer artístico, bem como ao papel da arte em nosso mundo.