Quando a dor nos dobra, quem nos salva? Relendo 1Sm 4,19-22 em perspectiva crítica de gênero

“Darás à luz com dor” (Gn 3,16) é mais do que a referência a um ato biológico e suas consequências. É uma declaração de dominação patriarcal. O mastro sentido de uma bandeira invisível fincada sobre um território de conquista: os corpos que não se moldam ao modelo machista. A Bíblia está cheia de corpos: exaltados e criticados, mencionados e ocultados, corpos com nome e corpos anônimos, corpos desencontrados, corpos em comunhão e corpos que diferentes imaginários de ser povo de Deus corporificado patriarcanormativamente contaram – e nos foram contados, consequentemente – como corpos estranhos.

A passagem de 1Sm 4,19-22 é um corpo textual cheio de corpos que transitam pelo caminho da vida em Deus, o qual é intrínseca e deontologicamente assumido e compreendido como caminho de salvação. Os corpos da passagem marcam os ritmos da vida e seus movimentos: há dois corpos que saem da vida, um que entra nela, outros que estão no centro da mesma, posicionando-se à margem do morrer e do nascer e ao lado da dor, e um corpo estático, dobrado, recolhido em si e quase desaparecendo dentro de si mesmo. Três deles masculinos, o restante corpos de mulheres. Vozes sem corpo e corpos com voz: somente o delas e dela. Há também um murmúrio de choro inaudível e presente em todo o texto. Por tudo isso, emerge uma pergunta que não é imanente (já que não está no texto em si), mas que dele emana: a pergunta sobre o que nos salva da dor. É esta a pergunta que nos motivou a perscrutar criticamente este texto.

O Primeiro Livro de Samuel é o primeiro de dois livros canônicos que levam o nome de um filho desejado por uma mulher: Ana (1Sm 1,9-18). O tabernáculo de Siló (1Sm 1,3.9) é um espaço importante nas narrativas desses livros. A própria história da concepção, dedicação e nascimento de Samuel está vinculada a ele e, de certa forma, a do nosso trecho também, já que o que desencadeia, centraliza e põe em movimento os corpos nesta perícope é a arca: um corpo de outro tipo, corpo ausente, corpo-sombra, energia, cuja existência e destino animam, dinamizam, recolocam e impactam profundamente o que acontece com esses corpos de carne e osso reunidos no texto. A arca, em geral, corporifica o corpus que é o povo diverso da fé e seus movimentos. No contexto desta passagem, também os move. Simbolicamente, é um núcleo, e narrativamente, é central.

Esta passagem é breve e começa sem rodeios. O conflito que aciona a dramaturgia do texto é anunciado rapidamente, desde o primeiro versículo. Como num jogo de xadrez, parece dispor todas as peças: as pretas, corpos que vão desempenhar seu papel como no negativo de uma foto, assim, à sombra. As brancas, corpos que vão se mostrar claramente. E, em dois ou três movimentos que dura o versículo, o poder devora uns e ameaça (coage) outros. Ao final, como em muitas grandes partidas, parece que o peão branco é quem salva o jogo. A analogia com o xadrez é uma maneira de denunciar criticamente a coisificação quase estratégica dos corpos no tabuleiro extenso e ainda preto e branco, bipartido, que é a vida tal como é distribuída por uma cultura também binária, onde os degradês são degradados, pois não há lugar, naturalmente, senão para o heterogêneo.

A partir dessa lógica, convém nos perguntarmos pela distribuição e pelo movimento da passagem, e declarar ambas as categorias como lentes hermenêuticas. Vamos destacar, primeiramente, as ações dessa mulher sem nome, identificada apenas como nora (כַלָּתֹ֣ו) e mulher de Finéias (פִּינְחָס אֵֽשֶׁת־) nos dois primeiros versículos, pois é neles que o texto nos mostra o contraste que queremos evidenciar:

v.19 תִּשְׁמַ֣ע Ouviu, deu ouvidos O sentido é que ela se abriu ao rumor, o acolheu
v.19 תִּכְרַ֣ע Ajoelhou-se Este verbo tem a conotação de afundar-se, prostrar-se, recolher-se em si mesma
v.19 תֵּ֔לֶד Deu à luz, teve um filho O texto deixa claro que ela dá à luz o filho não somente porque estava no tempo biológico, mas como resultado das dores relacionadas àqueles rumores ouvidos
v.20 לֹ֥א עָנְתָ֖ה Não respondeu, não reagiu (Y) O significado do verbo é o de não prestar atenção, aponta para um “não acusar recebimento”, não receber
v.20 לֹא־שָׁ֥תָה

לִבָּֽהּ

Não dispôs (reafirmou, atendeu, colocou, considerou) seu coração (seu ser, vontade e intelecto) amorosamente  

O sentido de rejeição e total desatenção a essa mensagem fica reforçado com esta segunda parte da frase: duas negações totais seguidas, unidas pela conjunção.

Os dois primeiros versículos nos falam de uma mulher sem nome e sem voz. Inserida na vida (e na narrativa) pela existência de dois homens: o sogro e o marido, nessa ordem. O primeiro movimento próprio dela no texto nos mostra que ela se abre a um rumor que não tem sujeito, cuja origem é desconhecida e que, embora vinculado à sua família, não é dirigido a ela. Ou seja, ela não é sujeito explícito, mas objeto implícito em relação a isso. No entanto, ela o toma para si, o acolhe, se abre a ele de forma que seu corpo se ressente. Dobra-se, reduz-se (ao cair de joelhos), e a perícope se encarrega de nos dizer que ela somatiza a tal ponto de chegar ao limite de quase desaparecer totalmente. Assim começa o versículo 20, com uma mulher anônima e silenciosa, encurvada por dores assumidas, físicas e emocionais, internas e externas, que a levaram a uma situação liminar: “Estando à morte…” (NBJ), “…ao tempo que morria” (RV60), “Estando por morrer…” (BP). Mas esta mulher não está sozinha.

Na distribuição da perícope, surgem agora outras presenças e outras vozes: um grupo, um coletivo de mulheres. Elas aparecem no momento exato em que a cadeia vital dessa nora e esposa se rompeu e o cordão de vida que sai dela acaba de desenrolar um filho. Uma mulher-novelo tece um filho homem. Ela se destece e se desfaz para criar outro corpo a partir desse seu cordão vital que, ao se desprender dela, vai conectar-se a um tecido genealógico que não a nomeia.

O texto, onde até agora não havia voz por parte de seus atores e apenas o narrador havia falado, passa do contexto passivo da escuta (de uma) ao ativo da palavra (de muitas), na boca de um coro de mulheres. A quem falam? Àquela que está no chão. De onde falam? Estando de pé, próximas a ela. O que dizem? אַל־תִּֽירְאִ֖י — “Não temas!”. Um imperativo imediato, concreto[1]. No entanto, essa mulher, aprisionada numa cadeia de dores relacionadas aos homens, não as ouve e, como já observamos no versículo 20, nem sequer lhes dá ouvidos.

Diante disso, podemos nos perguntar: qual papel desempenhamos, nós, mulheres, na vida de outras mulheres? Conseguimos ser esse lugar salvífico para a(s) outra(s)? E podemos acrescentar ainda uma pergunta que pode nos ajudar a seguir olhando com suspeita para esta passagem: por que é que ela, literalmente, as ignorou?

Se a narrativa não estivesse amplamente permeada por uma matriz patriarcal, nem vinculada, como mostra seu contexto literário, a um ambiente religioso-genealógico, até caberia suspeitar que ela ignora as mulheres porque estas sustentam o status quo de que um filho pode nos salvar, enquanto ela, ao olhar para esse filho, lhe dá um nome que encerra um grito, uma pergunta: אִֽי־כָבֹוד֙, de אִי (i), “ilha”[2], e כָּבוֹד (kabod), “glória”, “flor”[3]. Mas, precisamente, olhar com lentes de distribuição e movimento nos ajuda a ter uma imagem mais clara da passagem, fazendo-nos notar outro deslocamento interessante: ela (nora e mulher de) só fala para dirigir-se a seu filho homem, que, curiosamente, é mencionado como נַּ֗עַר (na’ar), vocábulo que em hebraico costuma traduzir-se como “rapaz”, pois se refere à idade da infância à adolescência[4], e também como “servo”. Enquanto as mulheres, ao se dirigir a ela, o chamaram de בֵ֣ן (ben), ou seja, “filho”, vocábulo derivado de בָּנָה (banah), que significa “pedreiro” e carrega em si a essência de construir, de colocar fundamentos[5].

Por outro lado, a questão subjacente na forma de nomeá-lo tem a ver com a preocupação por um corpus que não é o seu corpo, mas aquele no qual ela se encontra de forma desfavorável e anonimamente diluída pelo fato de ser mulher: o povo de Israel em geral. O versículo 24, final desta porção, igualmente não deixa dúvidas sobre esse movimento de despersonalização dela ao colocar em sua boca uma referência à arca, ao sogro e ao marido — nessa ordem.

Olhando a partir das categorias hermenêuticas de distribuição e movimento, previamente escolhidas para observar criticamente esta passagem, podemos constatar que a perícope nos mostra uma mulher engrampada numa cadeia de homens, enfraquecida e esmagada por aquilo que tem a ver com eles e com seu âmbito, incapaz de mover-se de forma libertadora, seja no corpo, seja no pensamento. Deslocada em relação ao essencial (ela mesma), ao real (seu filho pequeno) e ao mais próximo (as mulheres que estão de pé ao lado dela), incapaz de perceber in situ e de comover-se a partir do chamado desses outros corpos.

“Darás à luz com dor…” — a perícope de 2Sm 4,19-24 parece reafirmar e reforçar essa precondição com sobras. No entanto, as vozes de mulheres se elevam imperativamente com uma imprecação antissistema. Não estão em outro lugar, estão ali mesmo, nesse mesmo lugar do ser mulher, ao lado dela. Só que conseguem situar-se de maneira diferente e se posicionam no momento exato da morte, sendo a única voz a favor de incorporá-la. Tornam-se, sim, vozes estranhas num trecho onde, por sinal, Deus não fala.

Notas:

[1] O verbo está no jussivo e a negação está usando אַל (’al). O contraste entre אַל (’al) e לֹא (lo’) também serve de subsídio ao olhar com as lentes de distribuição e movimento.

[2] LOGOS KLOGOS. Strong Hebrew 336. Disponível em: https://www.logosklogos.com/strong_hebrew/336

[3] LOGOS KLOGOS. Strong Hebrew 3519. Disponível em: https://www.logosklogos.com/strong_hebrew/3519

[4] LOGOS KLOGOS. Strong Hebrew 5288. Disponível em: https://www.logosklogos.com/strong_hebrew/5288

[5] Cf.: LOGOS KLOGOS. Strong Hebrew 1129. Disponível em: https://www.logosklogos.com/strong_hebrew/1129

Daylíns Rufín Pardo

Es Biblista y Teóloga. Profesora del Seminario Evangélico de Teología de Matanzas, Cuba y del Instituto Superior de Ciencias de la Religión de la Habana. Trabaja como especialista en temas de Género, Fundamentalismo y Diálogo Interreligioso en el Centro "Oscar Arnulfo Romero" de Cuba, donde coordina junto a un equipo ecuménico la Red Nacional de Mujeres de Fe x la No Violencia y la Equidad. Sirve como Pastora ordenada para la Fraternidad de Iglesias Bautistas de Cuba. Su labor ampliamente ecuménica se hace presente también en diversos espacios académicos y pastorales de la región como REBILAC, RIBLA, SICSAL, Mujeres SICSAL, Convida20 y otros.

EXPEDIENTE

A Senso é uma revista bimestral voltada à temática do senso religioso contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como referencia os Estudos Religião.

ISSN 2526-589X

EDITOR CORPORATIVO

Jonathan Félix de Souza
Rua Aquiles Lobo, 567/704
Floresta – Belo Horizonte/MG
CEP: 30150-160

CONSELHO EDITORIAL

Dr. Flávio Senra
Dr. Jonathan Félix de Souza
Dr. Sandson Rotterdan

Idioma: Português