Devir-viado: a resistência espiritual de indígenas do povo Puri LGBTQIAP+

Quem são os indígenas do povo Puri? O povo Puri é um povo originário dos quatro estados do sudeste brasileiro que, durante a colonização, sofreu com a escravidão, com a violência e com a perda de elementos culturais, como sua língua nativa e sua espiritualidade, chegando a ser declarado como extinto pelo Estado brasileiro. No entanto, nós, que somos descendentes dos antigos puris, contestamos a narrativa de extinção, e no último censo do IBGE de 2010, 675 pessoas se autoidentificaram como Puri, iniciando um movimento de retomada de nossa ancestralidade. Por meio das redes sociais e de eventos como a “Troca de Saberes” da Universidade Federal de Viçosa (UFV), nós que nos reconhecemos como Puri começamos a nos reunir, formando um movimento coletivo de resistência e re-existência étnica. Hoje, compomos diversos grupos e coletivos e, além da ancestralidade puri, há muitos de nós que também nos identificamos como dissidentes das normas sexuais e de gênero hegemônicas. Além de puris, somos membros da comunidade LGBTQIAP+.

Apesar do duplo preconceito que muitas pessoas indígenas LGBTQIAP+ sofrem, tanto por serem indígenas quanto por serem dissidentes sexuais e de gênero, novas mobilizações indígenas LGBTQIAP+ têm surgido no Brasil nos últimos anos, como o Coletivo Tybyra (composto por diversas etnias de diferentes regiões). Muitos membros desses coletivos já estavam envolvidos no movimento indígena e nas lutas de seus povos, mas enfrentavam preconceito em suas comunidades devido à sua identidade de gênero ou sexualidade, principalmente por conta do avanço das igrejas evangélicas em terras indígenas. Entretanto, também não encontravam espaço no movimento LGBTQIAP+ mais amplo, que muitas vezes não reconhecia as particularidades dos povos indígenas, levando-os a criar seus próprios coletivos. Por conta disso, a pesquisa de Estevão Fernandes, especialmente seu livro “Existe índio gay?: a colonização das sexualidades indígenas no Brasil” (2019), foi fundamental, fornecendo bases e dados para combater a ideia de que a diversidade sexual e de gênero entre indígenas seria uma “perda de cultura” ou resultado do contato com o colonizador. Pelo contrário, o que o antropólogo mostrou com a sua pesquisa é que a LGBTfobia sim foi trazida pela colonização, uma vez que os povos indígenas eram abertos à diversidade de corpos, afetos e formas de expressão.

E assim como no movimento indígena mais amplo, nos movimentos de retomada puri, como foi dito, também há pessoas LGBTQIAP+. Esse é o meu caso, uma pessoa puri, não-binária e gay. Assim, na minha pesquisa de mestrado, eu estudei, a partir da minha própria vivência e de outras pessoas puris LGBTQIAP+, as experiências de dissidência sexual e de gênero na cultura puri. Na pesquisa, foi percebido que assim como eu, todos os entrevistados cresceram em alguma forma de Cristianismo (evangélica, católica ou kardecista), vivendo experiências semelhantes de opressão que atravessavam gerações: desde nossas avós cristãs que não falavam de outras tradições de fé, negando a ancestralidade indígena ligada a uma religiosidade pré-cristã e tabus rígidos sobre festas, álcool, sexo e proibições de gênero. Quando olhamos para a história do Brasil e a imposição do cristianismo pela colonização, entendemos que nossas ancestrais – e inclusive nossas avós e bisavós que estão vivas até hoje – negaram suas tradições (ou as esconderam) como forma de sobrevivência, e que mesmo hoje ainda há um medo e uma vergonha muito fortes associadas a identidade indígena por conta de todo o preconceito que essas pessoas viveram.

Ainda assim, hoje a espiritualidade também se tornou uma estratégia de resistência para nós. Setores dissidentes do próprio Cristianismo foram um ponto de partida para mim e outras pessoas puris LGBTQIAP+ que entrevistei, como a Teologia da Libertação e a Teologia Queer. Porém, nossa resistência foi fortalecida em outras tradições religiosas como o Taoísmo, o Candomblé ou a Umbanda, ou através da recuperação da própria espiritualidade nativa Puri. Minha pesquisa constatou que nem eu, nem nenhuma das pessoas entrevistadas permanece na igreja evangélica, buscando outras espiritualidades como forma de resistência.

A experiência religiosa do povo Puri, navegando entre diferentes tradições de fé, chamou a minha atenção. Eu me considero umbandista e busco reviver a espiritualidade tradicional de meu povo, mas também consulto leitores de tarô, já participei até de rituais druídicos e tenho interesse em astrologia. Nas conversas e entrevistas para o mestrado, percebi que é comum aos puris transitarem entre o Cristianismo (muitas vezes por imposição), Candomblé, Umbanda, Quimbanda, magia europeia e Taoísmo, apropriando-se de conhecimentos e práticas espirituais de diversas tradições. Essa característica parece ser mais frequente entre os puris do que em outras comunidades indígenas.

Assim, acredito que essa espiritualidade revela um modo de pensar Puri que permeia o processo de re-existência. Isso me remete ao “nomadismo por excelência” com que os puris foram descritos em documentos coloniais. Nas cartas e documentos dos colonizadores, os padres reclamavam que os puris não ficavam nos aldeamentos católicos – eles até migravam pacificamente, mas depois iam embora, voltando para a vida nas matas. Isso se dava porque, para eles, os puri eram “nômades por excelência”.

Porém, o nomadismo Puri e o sedentarismo europeu não eram apenas formas de organização social e econômica, mas também reflexos de formas de pensar e viver distintas. Os portugueses buscavam fixar os indígenas em um único território, em uma única fé, em um único gênero e em um casamento com uma única pessoa – “até que a morte os separe”. Já o pensamento indígena, por outro lado, era nômade: assim como se moviam entre lugares, podiam buscar diferentes espíritos, seres encantados ou ancestrais. Papéis sociais e casamentos eram assumidos e dissolvidos com facilidade. Mitos contam sobre transformações em seres de outras espécies e, porque não, em outros corpos, de diferentes sexos, como documentado por Betty Mindlin no seu livro “Moqueca de Maridos”. Mitos de gravidez masculina e de relações homoafetivas povoam as cosmologias indígenas.

A diáspora forçada do povo Puri resultou no surgimento de cidades e vilas com populações que ainda carregam a memória de sua ancestralidade Puri. Assim, percebo no nomadismo uma forma de interpretar a re-existência do povo Puri na contemporaneidade, incluindo a diversidade de identidades de gênero, orientações sexuais e experiências espirituais. Surpreendentemente, todas as pessoas puris entrevistadas afirmaram nunca ter sofrido preconceito relacionado à sua identidade de gênero ou orientação sexual dentro da comunidade Puri, embora pudessem ter sofrido outras formas de violência. Isso resultou na Plenária Indígena que fizemos na Troca de Saberes de 2023, um evento promovido pela Universidade Federal de Viçosa que foi uma verdadeira Assembleia do Povo Puri, onde os diversos coletivos puris reafirmaram a presença e até o protagonismo LGBTQIAP+ no nosso povo, como poder ser visto no documento resultante da Plenária que está disponível no anexo da minha dissertação. Nosso povo, apesar das mazelas coloniais que ainda permeiam nosso imaginário, tem se mostrado acolhedor com a diversidade sexual e de gênero e reafirmado coletivamente nosso compromisso com a luta LGBTQIAP+.

Você pode acessar minha pesquisa na íntegra, com todas as referências, aqui.

Kigéw Puri (André da Silva Muniz) Puri

É teóloga, mestra em Ciências Humanas e Sociais e doutoranda em Economia Política Mundial na UFABC. Indígena do povo Puri, seus interesses de pesquisa atuais são o pensamento indígena contemporâneo, epistemologias e metodologias indígenas e as diversidades de gênero e sexualidade entre povos indígenas.

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