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Entre o governo do Messias e a justiça do Judas… eu fico com o carpinteiro

Entre o governo do Messias e a justiça do Judas… eu fico com o carpinteiro

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Na leitura pragmática estética (devocional) da Bíblia, o(a) leitor(a) busca relacionar os textos consigo mesmo, enxergar-se nas histórias e tomar os dizeres sagrados – tais como promessas – para si (EU-EU). Nesse tipo de interpretação, não se leva em consideração o que o texto, por sua construção política (EU-TU), quis trabalhar, ao menos probabilisticamente.

Isso não ocorre apenas com os textos sagrados, mas em tudo que perpassa pelos quadros passionais da vida. Essa esteticidade alcança alguns níveis de contentamento em tempos de crise. É comum alguém ler o salmo 23 e dizer para si mesmo: “É verdade, o Senhor é o meu pastor e nada me faltará”, e desconsiderar que se trata de um dizer do rei, onde já há teses que defendem a interpretação: “O Senhor é o meu pastor, não faltarei (não morrerei)”.

A maioria das pessoas que toma a bíblia para leitura, o faz sem a pretensão de vasculhar as entrelinhas. Suas letras vivem para servir o fiel diante de determinados cenários. Por isso, é quase impossível que se espere honestidade e responsabilidade de um crente que literaliza cada linha, não querendo perceber as metáforas e as tantas outras figuras de linguagem nela existentes. Ensinar isso é, por outro lado, desmascarar o projeto de poder das instituições e desnudar a alienação tornada doutrina nos espaços sagrados e que invadem a esfera pública sem pedir licença. Não há o mínimo de civilidade.

Curiosamente, no cenário político atual, esse tomar para si a leitura da bíblia tem tido uma outra perspectiva: a de associação de personagens sagrados com atores políticos. Já é desnecessário apresentar o Messias do executivo. O Messias que diz não fazer milagres em tempos de pandemia e, ainda assim, incentivar aglomerações. O Messias que diz “E daí?” para os números de mortos que aumentam no Brasil.

Esse Messias foi o mesmo que, em uma mesa de café da manhã, disse aos seus ministros no dia da saída (24 de abril) de Sérgio Moro do Ministério da Justiça: “Hoje vocês saberão quem não me quer na cadeira de presidente”. Ora, Jesus, que estava à mesa, dirigiu-se aos seus discípulos: “Hoje, um de vocês vai me trair”. Todos sabemos o nome do discípulo que traiu Jesus: Judas Iscariotes, um personagem que carrega a alicantina como identidade. Uma cicatriz eterna. As narrativas evangélicas dizem que o diabo se apossou de Judas. A tradição cristã o condenou ao inferno. Só há um detalhe nas distintas mesas: nem um dos ministros do Messias perguntou: “Por acaso serei eu?”.

No sábado, dia 2 de maio, dia do depoimento sobre as acusações contra o presidente (de tentar interferir na autonomia da PF) feitas por Sérgio Moro à Polícia Federal (PF), em Curitiba, o mesmo, o Messias, postou em suas redes um comentário diante de um vídeo em que se analisa a facada de Adélio Bispo:

Os mandantes estão em Brasília?

– O Judas, que hoje deporá, interferiu para que não se investigasse?

– Nada farei que não esteja de acordo com a Constituição.

– Mas também NÃO ADMITIREI que façam contra MIM e ao nosso Brasil passando por cima da mesma Constituição. (O negrito é meu)

Estabelecer a relação entre os nomes bíblicos com os atores políticos garante uma legitimação não apenas de definições de lados, mas de atos que podem ser profundamente violentos e antidemocráticos. Note que o que está em caixa alta em sua postagem são expressões equivalentes a um ato que rompa com a Constituição, ainda que em seu discurso tente defendê-la. Vale lembrar que o Messias mesmo já disse: “Eu sou a Constituição”. O “MIM” também é significativo, pois é-lhe dado uma importância maior que o “nosso Brasil”. Um Messias que se coloca em caixa alta.

O Messias tem o apoio de muitas instituições evangélicas. As mesmas que cultivam uma leitura performática, estética. Em rede social, um pastor presbiteriano declarou: “[…] Jair Bolsonaro não é um cara qualquer, é sim um governante escolhido pelas esferas superiores da vida, só está lá porque Deus permitiu e o quer como governante do nosso povo” (grifos meus). Em outra postagem, o mesmo pastor critica a Folha, o Estadão, a Veja, a Rede Globo, e as chama de Golias, personagem gigante que ameaçou o povo de Israel e lutou contra Davi, que seria o segundo rei daquela nação (cf. livro bíblico de 1 Samuel).

Conseguem perceber as estratégias de associação para legitimação política?

Por outro lado é importante enfatizar: essa não é apenas uma leitura estética. É política (EU-TU). A leitura política tem dois lados:

  1. quando o texto bíblico é utilizado para influenciar a justiça social e afins, e;
  2. quando narrativas, atos e personagens são utilizados para reprodução de opressão.

Ambas as propostas têm sido utilizadas nesta conjuntura.

Patrick Charaudeu, em seu livro “Discurso Político”, disserta acerca do dispositivo de interação. Dispositivo é, em suas palavras:

Aquilo que garante uma parte da significação do discurso político ao fazer com que todo enunciado produzido em seu interior seja interpretado e a ele relacionado. Ele desempenha o papel de fiador do contrato de comunicação ao registrar como é organizado e regulado o campo de enunciação de acordo com normas de comportamento e com um conjunto de discursos potencialmente disponíveis aos quais os parceiros poderão se referir.

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E quem são os parceiros desse contrato?

Não são pessoas, mas entidades humanas, “cada qual sendo o lugar de uma intencionalidade, e categorizadas em função dos papéis que lhe são destinados”.  Portanto, em cada dispositivo, “as instâncias se definem de acordo com seus atributos identitários, os quais, por sua vez, definem sua finalidade comunicacional”.

Dos três lugares onde nascem o discurso político (governança, opinião, mediação), a governança abriga as seguintes instâncias: política e seu duplo antagonista; a opinião, a instância cidadã; a mediação, a instância midiática. Vejamos como isso funciona:

Esquema preparado pelo autor

Na instância política, o lugar da governança, alguém que queira permanecer no poder precisa utilizar “estratégias de persuasão e sedução”. A instância adversária pode utilizar ferramentas semelhantes, mas com motivações diferentes (ou não). A instância midiática também é antagonista (poderíamos complexificar esta categoria, uma vez que há emissoras, como Record e SBT que mais parecem editorias do governo). E nesse desenho todo, temos a instância cidadã, foco de todas essas informações.

Na esfera da instância cidadã, há um grande número que ainda pensa em reeleger o Messias, mesmo com as informações, diálogos, debates promovidos pelas instâncias que se opõem ao governo. Neste 2 de maio, o Instituto Paraná divulgou que 60% dos brasileiros consideram o governo do Messias pior do que se esperava, contudo, ainda lidera as eleições de 2022. A pesquisa foi realizada entre os dias 26 a 29 de abril, com 2.006 eleitores de 182 municípios de todos os estados do país. Em possível cenário eleitoral, o Messias surge com 27% das intenções de voto, enquanto Judas Iscariotes, digo, Sérgio Moro, com 18,1%.

Até aqui, o Messias parece fazer milagre em um lugar: na escolha ilógica de parte da sociedade. Todavia, levando em consideração que milagre é uma espécie de “maravilhar-se”, de fato, esse é um Messias que está longe de associações com o Cristo. Não há beleza, não há maravilhamento neste tipo de ignorância.

Caso sejamos forçados a escolher entre o governo do Messias, que despreza qualquer leitura política que preze pela vida, e a justiça do santo justiceiro Judas, atraído pelo brilho das moedas do poder e que ajudou a parir esse Messias, eu fico com o carpinteiro.

Vale lembrar que o tipo de carpintaria da época se assemelhava à construção civil. Jesus era uma espécie de pedreiro ou mestre de obras. Neste caso, ao menos, ele sabia como construir abrigos seguros. E se as associações neste tempo são importantes, não fiquemos de fora: que nos associemos a esse Jesus, construindo lugares de acolhimento, lugares de comunhão, lugares de gente que só quer uma coisa: viver e pregar a vida.