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O caso de Evo Morales e as igrejas na Bolívia: Da identidade nacional

O caso de Evo Morales e as igrejas na Bolívia: Da identidade nacional

© Gatol Fotografia

Em dezembro de 2017, Evo Morales, presidente da Bolívia desde 2006, propôs uma série de mudanças na legislação do país. O artigo 88, 12º parágrafo, é o que mais gerou desconforto em grupos de direita, conservadores e fundamentalistas, inclusive no Brasil. O artigo caracteriza crime o “recrutamento de pessoas para participação em organizações religiosas ou de culto” prevendo pena de 7 a 12 anos de reclusão. No dia 21 de janeiro de 2018, segundo El Deber [1], Morales informou que enviará carta à Assembleia Legislativa revogando as mudanças no Novo Código de Sistema Penal “para evitar confusões e que a direita deixe de conspirar e não tenha argumentos para gerar desestabilização no país, com desinformação e mentiras” [2]. Mesmo diante de sua decisão, o assunto não perdeu sua relevância/complexidade e ganha, por isso, reflexões mais amplas.

Em primeiro plano, precisa-se perguntar acerca da identidade nacional da Bolívia. Katryn Woodward disse que “uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos” [3]. Em 2014, a ONU relatou número crescente de indígenas na América Latina. São 45 milhões de índios em 826 comunidades, representando 8,3% da população. Os países com maior proporção de indígenas são: Bolívia (62,2%), Guatemala (41%), Peru (24%) e México (15,1%). [4] O Brasil possui 900 mil indígenas e tem o maior número de comunidades (305). A Bolívia tem 39. Segundo o estudo realizado, muitas destas comunidades correm o risco de desaparecimento. No Brasil são 70 povos em risco, 35 na Colômbia e 13 na Bolívia. A que se deve este risco? A ONU indica a demarcação e titulação de terras, incluindo os recursos naturais. Só entre 2010 e 2013, foram mais 200 conflitos “em territórios indígenas ligados a atividades extrativas de petróleo, gás e mineração” [5].

A Bolívia, que no séc. XV tornou-se parte do império inca, é, hoje, multiétnica (ameríndios, asiáticos, africanos, europeus, mestiços) e, devido à essa diversidade, responsável por riqueza artística, literária, musical, culinária. O país é rico em minerais (estanho) e tem larga escala de produção em tecidos, metais e petróleo refinados. É sempre ameaçado por economias outras, sobretudo os EUA que não conseguem entrar no país com seu modelo econômico capitalista. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), o índice de pobreza na Bolívia caiu de 36,7% (2005) para 16,8% (2015). [6]

A título de curiosidade, em 2015, na cerimônia de seu terceiro mandato, seguindo todos os ritos da cultura andina, Morales disse “Aqui não mandam os gringos, mas os índios. Esse é o orgulho que temos”. Em fala política, atribuiu a queda do preço do petróleo a um complô entre os EUA e a Arábia Saudita. [7]

Além deste fator cultural e econômico, há também outro caso: o religioso, que se mistura com os demais temas aqui brevemente discutidos. Morales pertence à etnia uru-aimará. Segundo o Jornal Capital Cultura, sua decisão previa estancar o avanço de líderes religiosos fundamentalistas, assim como acontece em tribos no Amazonas, no lado brasileiro, onde não há restrição para a “evangelização” e que estão perdendo suas identidades culturais e religiosas.[8]

O último Censo do IBGE (2010) divulgou que a Amazônia, à época, contava com 306 mil indígenas. A maioria em zona rural. A FUNAI registrou cerca de 100 grupos que viviam de maneira isolada apenas na parte do Brasil. Uma pesquisa realizada em 2015 por grupos de antropólogos apontou que, de 35 mil comunidades, 25 mil já possuem presença missionária cristã. Em agosto de 2017, uma imagem foi publicada na internet onde o pastor evangélico Isac Santos, com a presença da vereadora Aninha Carvalho (SD), batiza um cacique xavante e mais 37 integrantes da mesma tribo em Água Boa, no Mato Grosso. Este caso reacendeu a discussão do envolvimento missionário em terras indígenas fazendo com que o antropólogo brasileiro Roque Laraia de Barros, que estuda a cultura indígena, reagisse da seguinte maneira: “A Constituição brasileira garante aos indígenas o direito de continuar com suas crenças e religiões. Como antropólogo, há muito tempo tenho me manifestado contra missões. É um absurdo que uma pessoa que venha de fora, que não fala a língua do grupo, queira mudar a cabeça deles e as crenças de centenas de anos.” [9] [10]

É óbvio que nem o Brasil e nem Bolívia possuem uma identidade fixa, como dito acima sobre a diversidade desta última. O que está em jogo (nesta hipótese), em primeiro plano e numa breve análise desse sistema macro-econômico e cultural, é a ameaça da tradição e a luta constante contra o sistema de mercado adotado por igrejas que são influenciadas diretamente pela globalização e pela visão de economia capitalista controlada pelos EUA, onde o foco recai sobre as terras e outras riquezas. A Bolívia não aceita isso, ainda que revogue as mudanças na legislação. Trata-se de uma identidade nacional. Perder isso seria o mesmo que perder a dignidade e o chão de uma história cultural de sentidos… ainda que cheia de mitos.


Referências

 VEJA TAMBÉM
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[1] www.eldeber.com.bo
[2] Evo Morales Ayma (@evoespueblo), 21 de enero de 2018.
[3] SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15ªed. São Paulo: Vozes, 2014.
[4] www.agenciabrasil.ebc.com.br
[5] Idem.
[6] www.ine.gob.bo
[7] www.ihu.unisinos.br
[8] www.frentao.com.br
[9] www.bbc.com
[10] O Decreto-Lei nº 8.072, de 20 de junho de 1910, teve como objetivo colocar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) como órgão do Governo Federal para execução da política indigenista, protegendo os índios e assegurando a implementação de ocupação territorial. Com isso, a igreja deixou de ter hegemonia no trabalho de assistência. O trabalho de catequese coexistiria com a política de proteção do Estado. A permissão dada aos missionários pelos órgãos competentes para a aproximação nas tribos se deve aos seguintes pontos: ajudar a defender seus territórios contra invasores, impedir seu extermínio, cuidar de suas doenças. Infelizmente, o que ocorre ainda é a especulação de terras – hoje, tanto por parte da religião quanto do Estado (em relação à demarcação de terras). (Para mais informações sobre a política indigenista: www.funai.gov.br)