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A demonização como estratégia de poder

A demonização como estratégia de poder

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Caro/a leitor/a,

Durante 4 anos da minha vida, dos 15 aos 19 anos, frequentei uma igreja evangélica, muito conhecida nesse país. Essa igreja possui emissoras de TV e se apresenta como o lugar de culto para alguns parlamentares em destaque no cenário político. Podemos ilustrar essa relação entre essa igreja e o poder, através do atual bispo e prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella.

Me lembro, como se fosse hoje, da forma como eu me sentia induzido a repugnar as religiões de matrizes africanas. Essa indução era forjada constantemente, isto é, na produção do argumento que alocava a “macumba” como a grande responsável por todas as mazelas na vida dos fiéis.

Foto: Karol Salles

Em cultos realizados nas terças e sextas-feiras, conhecidos como o “dia da libertação”, as pessoas — supostamente possuídas por demônios — eram taxadas com respectivos nomes de entidades, dos seres sagrados para os adeptos das religiões afro-brasileiras.  Zé Pilintra, Exu Trancas Ruas,  Pombagira Maria Padilha e outros, todos associados a um tipo de problema específico. Nessa “lógica”, se você é alcóolatra, está sob a influência de Zé Pilintra, se você está desempregado, o Exu Tranca Ruas fechou seus os caminhos, se você foi traída é porque a Maria Padilha está destruindo seu lar.

No best-seller Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios, o autor bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal é enfático ao reforçar a ideia da demonização direcionada às religiões afro-brasileiras. Na descrição em sites de venda, o Bispo declara: “É impossível um praticante do espiritismo ler este livro e continuar na sua prática […] todos os truques e enganos usados pelo diabo e seus anjos para iludir a humanidade são revelados”

Obras como essa facilitam a propagação da desinformação e, de forma desenfreada, alimentam ainda mais a ignorância, num país que é o berço de tantos preconceitos.

Associar seres sagrados da Umbanda e do Candomblé ao diabo cristão é uma falácia, um discurso empobrecido, ou seja, uma comunicação carregada de intolerância e difamação.

A verdade não esclarecida, é de que não existe o Diabo no Candomblé. Nessa dimensão religiosa não existe uma figura, um personagem capaz de influenciar pessoas como se fossem fantoches, responsável por carregar toda a culpa da humanidade. Somos nós mesmos os responsáveis por nossos próprios atos e escolhas. Mas é óbvio que esse tipo de compreensão não vende e não gera nenhum lucro, pois não desperta, alimenta e explora o medo até que se obtenha ganho sobre a fé alheia. Esse é um dos fatores principais, mas quero levá-lo/a ao grande “x” da questão.

Reflita comigo: na cultura indiana existe uma divindade muito cultuada denominada Ganesha, responsável pela abertura de caminhos, detentora da prosperidade e proporcionadora do sucesso. É habitualmente posta em frente de portas de templos hindus e nas casas dos próprios hindus, sendo assim utilizado como símbolo de proteção. Ora, vemos aqui as mesmas características atribuídas à Exu, Divindade Africana, proporcionador do sucesso e detentor da prosperidade, também é responsável por abrir caminhos.

Levando em consideração que ambos apresentam os mesmos significados e arquétipos parecidos. Por que uma crença é mais perseguida, menos aceita, discriminada e tão repudiada do que a outra? Por que não vemos por aí a imagem de Exú sendo propagada como uma divindade também benfazeja, transcendendo a simbologia que lhe foi imposta: a de grande inimigo e precursor de todo mal existente?  A reposta é simples e direta: sua origem é negra!

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Há séculos que a cultura negra é alvo, de forma massiva, dos colonizadores. Esses colonizadores, na tentativa de excluir e subjugar povo negro, intensificaram os estatutos de silenciamento e violação. As religiões de matrizes africanas, em todo esse processo efetuado pelo colonizador, sofreram — e ainda sofrem — com as assimilações em decorrência da religião dominante.

Abdias Nascimento, ativista dos direitos humanos do povo negro, em seu texto O Genocídio do negro brasileiro diz: “Quando mata-se uma cultura, mata-se um povo.” argumentando sobre genocídio não ser apenas sobre a morte física, mas também cultural. Sendo utilizada como estratégia, a demonização das religiões de matrizes africanas serve para que elas sejam rejeitadas, repudiadas, temidas e, consequentemente, exterminadas.

Os detentores do poder, querem continuar no poder e farão isso a todo custo. É um projeto de extermínio, uma ação forjada por aqueles que durante toda a história torturaram e mataram em nome de um deus único, simulando ética e santidade. Se você não se adequa aos costumes e valores dessa crença colonizadora, significa dizer, em certa medida, que você não é digno de existir, impulsionando, assim, as mãos impiedosas daqueles que aniquilaram grande parte dos povos originários.

No Brasil, segundo dados registrados através do disque 100, o número de denúncias em relação à intolerância contra religiões afro-brasileiras só cresce.  O racismo religioso é estrutural. Ele está enraizado na sociedade que reproduz a desinformação a todo tempo. Entre ataques a terreiros e agressões físicas aos seus adeptos, as violências verbais são recorrentes. Expressões como: “Filhos do diabo”, “casa dos encostos”, “Casa do diabo” entre outros, são alguns dos xingamentos utilizados pelos agressores. Esse é “triunfo” daqueles que manipulam a verdade, em favor dos seus próprios interesses.

Não existe inferno e automaticamente não reconhecemos a figura do diabo cristão, no Candomblé. Associar divindades africanas às personagens do cristianismo que, nessa lógica, é produzido para alimentar o medo e o ódio numa sociedade estruturalmente racista é hostil. É necessário e urgente que se construa uma conscientização em prol da valorização das crenças afrocentradas. Uma cosmovisão rica em cultura, valores e ética. Uma religião que persiste e resiste, através dos séculos, merece mais respeito, não pedras arremessadas.