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Psicologia e Religião: qual o sentido da vida?

Psicologia e Religião: qual o sentido da vida?

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A vida é um mistério que nos interpela a todo instante. Ela pulsa em nós e, algumas vezes, nos impacta de forma mais intensa. Tal qual quando somos impactados pelo milagre de ver uma vida sendo gerada através de nós, ou quando contemplamos a natureza e, absortos por sua imensidão, nos damos conta da nossa pequenez, até mesmo quando descobrimos a morte, na dor de perder alguém que amamos, ou quando transcendemos a nós mesmos seja através de uma experiência provocada pela arte ou pelo amor. Fato é que esses acontecimentos, quando nos encontram atentos, têm força para suscitar questionamentos sobre nossa existência. O que é isso que estou sentindo? Porque isso está acontecendo comigo? Qual o sentido da vida?

A capacidade de questionar a própria existência e de se interrogar sobre o sentido da vida diferencia a pessoa humana dos outros seres existentes no mundo. Nós existimos e sabemos que existimos. Essa característica, de ser um ser que interroga e que se interroga, é possível pois somos constituídos – além da nossa dimensão corpórea e psíquica – por uma dimensão espiritual. A espiritualidade é a dimensão humana que busca por sentido e também a que nos impede de ser guiados apenas por nossos instintos e preconceitos, abrindo a possibilidade para questionar toda a nossa existência, inclusive o que sentimos e desejamos.

A consciência da nossa existência e da nossa finitude abre um campo imenso de possibilidades de ser e agir no mundo. Essa experiência de estar diante do mistério pode nos causar a sensação de maravilhamento, mas também pode provocar uma profunda sensação de angústia. Essas sensações, quando vividas em comunidade, podem gerar respostas compartilhadas para as grandes questões existenciais: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?

A religião surge – e permanece ao longo de toda a história da humanidade – como uma possibilidade de dar sentido a acontecimentos como a morte, doenças e fatos inevitáveis. Ao responder às perguntas existenciais que povoam a mente e os corações dos humanos sobre para onde iremos, o sentido da vida e da morte, as religiões se fortalecem dentro do universo humano, “pois oferecem um escudo contra o terror da angústia e do sem sentido”. (BERGER, 1985, p. 40).

Além das religiões nos ajudarem a ordenar o caos próprio da vida, oferecendo, entre outras coisas, recursos objetivos e simbólicos que proporcionam alívio, conforto e segurança, ela tradicionalmente, contribuiu para a integração das sociedades humanas, na medida em que tinha como uma das suas principais funções articular o sentido do que era vivido em seu complexo social. Para os autores Peter Berger e Thomas Luckmann,

Nas sociedades arcaicas e tradicionais havia ritos de passagem que davam sentido a essas mudanças. Podia-se enfrentar mais serenamente a puberdade, a iniciação sexual, a entrada na vida profissional, a velhice e a morte, porque havia modelos de comportamento para lidar com esses cortes biográficos. O apoio social do sentido impedia que as mudanças constituíssem choques profundos ou, até mesmo, ameaça existencial para a pessoa. O enfraquecimento ou a ausência total desses ritos de passagem nas sociedades modernas podem ser considerados sintoma – e também concausa – de uma crise de sentido que vai aumentando aos poucos. (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 66).

A experiência de sentido constitui a dimensão mais profunda da vida. O “sentido nada mais é do que uma forma complexa da consciência: não existe em si, mas sempre possui um objeto de referência. Sentido é a consciência de que existe uma relação entre as experiências” (Berger e Luckman, 2004). Esse sentido pode ser facilitado pelas religiões, mas não se dá apenas através da religião. A compreensão da espiritualidade, como uma dimensão humana que possibilita ao ser humano aprofundar sua própria vida através de questionamentos e reflexões, permite que ela atinja crentes e não crentes. Possibilita ainda que pessoas que pertencem a uma religião possam compreender suas tradições, dogmas, aprofundar e até mesmo questionar a própria fé.

As religiões podem contribuir com a busca de sentido, mas essa não é sua única função. São vários os papéis que a religião pode ocupar em uma sociedade secularizada, plural e pós-moderna.  No contexto do pluralismo religioso, as religiões perderam sua plausibilidade em relação à articulação de um sentido social. Esse declínio começou com a secularização e ganhou contornos próprios à medida que a modernidade foi avançando, sendo imprescindível localizá-la dentro do amplo e complexo quadro de globalização multifacetado que abarca as dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais e religiosas de nossa época.

Antes, as formas de crer estavam restritas à ligação com uma religião específica que, ao organizar objetivamente o social, organizava também a subjetividade humana. Com a secularização e o pluralismo moderno, perderam-se, portanto, a obrigatoriedade de pertencimento a uma instituição religiosa para se afirmar a crença em algo, bem como as referências de sentido único para organizar a nossa subjetividade. Além disso, a forma ou qualidade do relacionamento do ser humano com a religião pode produzir processos de subjetivação distintos, indo desde uma mera repetição de ritos, moral, regras, passando por uma dependência de favores, racionalização, medo, fascinium até uma experiência mística ou de fé transformadora.

Sendo assim, quais são os cuidados que devemos ter ao considerar a nossa necessidade (ontológica) de sentido e o papel das religiões nesse processo? Ao falarmos de ser humano, precisamos considerá-lo sempre em seus aspectos tanto individuais quanto sociais. A construção de sentido é central no ser humano, mas nossa subjetividade não é construída no vácuo, ela emerge em um contexto social de seres relacionais e abarca toda a nossa existência.  Chegamos em um mundo que já existe, no qual as crenças, religiosidades, ideologias e respostas às grandes questões da vida já estão postas e se confundem com a cultura e suas regras sociais. Esse dinamismo humano, de ser ao mesmo tempo agente passivo e ativo em relação ao social, evidencia o fato de que somos seres em constante vir-a-ser e também a nossa responsabilidade nesse processo.

Nesse contexto, penso ser oportuno fazer algumas considerações sobre a questão do sentido e para isso, vou separar em duas grandes perguntas: 1) qual o sentido da vida e 2) qual o sentido da minha vida. A pergunta sobre qual o sentido da vida, é uma pergunta mais abrangente. Ela pode ser respondida de maneira abstrata, compartilhada e pode até mesmo nem ser explicitada.  Ainda assim, precisamos estar atentos a alguns pontos importantes e destacarei alguns: o risco do fundamentalismo e o de não considerarmos aspectos econômicos e sociais na compreensão do papel da religião.

O fundamentalismo oferece uma resposta segura e certa em um mundo de incertezas e isso, de imediato, pode ser um alívio para a construção da subjetividade, mas se revela como violenta tanto para a formação do eu,  quanto para o convívio social pacífico, na medida em que anula as alteridades. Na pós-modernidade, o fundamentalismo oferece um sentido, porém, ele impede que o ser humano pense por si mesmo, pois anula o sujeito em sua totalidade, simplificando realidades complexas. Se analisamos o cenário religioso brasileiro atual pelo viés da busca de sentido, perceberemos que algumas religiões em crescimento no país, possuem um  discurso e um método de persuasão que  responde a um desejo de pertencimento de uma população que está marginalizada em uma sociedade capitalista e que não tem acesso nem mesmo ao básico, e a igreja funciona não só como esperança de uma melhoria de vida, mas oferece uma rede de apoio com suporte concreto para as necessidades cotidianas.

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A nossa dimensão espiritual diz da nossa busca de sentido e também da nossa capacidade de refletir. Aceitar uma verdade sem questionar ou impor uma verdade sem respeitar a liberdade do outro é negar nossa humanidade, é permitir que nossos medos e instintos de sobrevivência nos dominem. Somos seres relacionais e espirituais. Se a resposta oferecida pela religião que eu sigo, nega as alteridades e nega a minha necessidade / capacidade de questionar / compreender tudo que me acontece, ela não me ajuda a encontrar um sentido. O fundamentalismo religioso pode até nos oferecer uma segurança, mas o vazio existencial permanecerá, pois, por negar a nossa estrutura transcendental de abertura, ela não é capaz de oferecer um sentido que se sustente.

Agora, em relação à pergunta sobre qual o sentido da sua vida, mesmo quando a religião nos ajuda –  oferecendo um arcabouço simbólico e uma comunidade, que podem funcionar como um horizonte de sentido que oferece às pessoas critérios para julgar a realidade e decidir o que fazer – ainda assim, a pergunta pelo sentido da sua vida precisa ser respondida individualmente e a cada momento. Ao contrário da pergunta sobre qual o sentido da vida, que pode ser respondida de maneira abstrata, compartilhada e até mesmo imposta, a pergunta sobre qual o sentido da sua vida é singular e só pode ser respondida livremente e encontrada na vida concreta de cada pessoa (FRANKL, 1991). Ela não é uma pergunta que você faz à vida, mas uma pergunta que a vida te faz e que você responde através das suas escolhas e ações.

Cada pessoa, nos limites oferecidos pelo seu próprio contexto, busca encontrar elementos que dão razão de ser à sua existência. Trata-se de uma liberdade limitada, mas ainda sim, uma possibilidade de responder ao que foi proposto por uma situação concreta da vida com liberdade. Essa busca caracteriza-se como um processo que implica uma consciência de si como uma totalidade que pode abarcar, inclusive, um sentimento de dor. Ela possibilita um posicionamento da pessoa diante de cada situação vivida, podendo se tornar um hábito dinamizador da própria experiência de ser quem somos.


Referências

BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. Organização: Luiz Roberto Benedetti. Tradução: José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulus, 1985.
BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. Tradução: Edgar Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline; revisão técnica de Helga H. Reinhold. São Leopoldo, Editora Sinodal; Petrópolis, Editora Vozes, 1991.