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Epistemologias marginais: os estudos de gênero nas Ciências da Religião

Epistemologias marginais: os estudos de gênero nas Ciências da Religião

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Existir, no sentido mais ontológico de ser, é existir em situação. Isto é, não podemos existir se não dentro de uma área geográfica que apresenta condições sociais, econômicas, culturais e, sobretudo, morais, que nos formam e permitem que nos tornemos sujeitos. Sempre que falamos de existências, falamos, portanto, de lugares e perspectivas diversas que traçam diferentes modos de sermos e de nos expressarmos no mundo, assim como marcá-lo de acordo com as nossas vivências. A filósofa Judith Butler mapeia em sua obra Vida precária, problemáticas não só ontológicas, mas epistemológicas dentro da pergunta central que marca os mais antigos questionamentos filosóficos — o que é a vida? Segundo a autora, nem toda vida é apreendida como vida. Algumas formas de existências não são enquadradas dentro do entendimento de humano, isto é, são desumanizadas, logo, não são vistas como vidas a serem protegidas.

A fragilidade diante do mundo grava no humano o mais próximo que se pode apresentar de uma essência comum. Contudo, se uma vida não é apreendida como humana, não é reconhecida enquanto passível de dor. A marginalização de algumas formas de existências se fixa dentro de diferentes aparatos de poder promovendo uma destituição da fala de sujeitos que, à medida em que perdem suas vozes, perdem cor e corpo. Nas margens se formam, nas margens se expressam, e nas margens vivem a diversidade e constroem novas cosmovisões. A ciência moderna é uma das grandes juízas que determina o estatuto do que é verdadeiro e importante, e de quem é verdadeiro e quem possui uma existência fictícia, que quando fala, soa como um ruído fúnebre de representantes vivos da ameaça a vida que “continuam a viver, teimosamente, nesse estado de morte. ” (BUTLER, 2019, p.54).

Às margens do domínio hegemônico, encontramos estudos sobre epistemologias decoloniais que demarcam uma nova forma de se fazer ciência a partir da diferença e da marginalidade, levantando questões importantes como a autora Spivak aponta na obra Pode o subalterno falar? sobre a possibilidade de fala do subalterno, sobretudo da subalterna. Os estudos de gênero, de um modo geral, tendem a acompanhar essa perspectiva de análise, que tem como sujeitos e objetos — no sentido formal do termo — as vivências, necessidades e modos de expressão de pessoas que transitam pelo inaceitável e indecente lugar da diferença, seja do desejo sexual que foge da heteronormatividade, ou do desinteresse em se adequarem aos pares contrários que marcam o binarismo característico da nossa sociedade.

Nas Ciências da Religião, de modo específico, os estudos de gênero apontam para uma nova epistemologia que trata a identidade de gênero e os estudos feministas como categorias centrais para a análise dos fenômenos religiosos. A organização social e a sexualidade são tratadas não como acidentes da pesquisa, isto é, como características secundárias que não direcionam ou influenciam o entendimento acerca da formação e vivência da espiritualidade, mas como condição que determina a forma com que os sujeitos se dispõem e interpretam o sentimento oceânico de estar no mundo sendo formado pela exterioridade, mas também deixando suas marcas em forma de pegadas, que contornam os diferentes caminhos trilhados pelo humano. Nessa abordagem, percebemos formas de se vivenciar a fé que transita por espaços e corpos diversos. Sendo assim, a diversidade imprime uma vivência de fé que foge dos estereótipos de sagrado a medida em que é representação da realidade de sujeitos que vivem à margem.

Entendemos que toda ciência deve instaurar consigo uma praxeologia, isto é, uma forma de agir diante da sociedade a partir dos dados, métodos e teorias estudadas e apontadas pela área de pesquisa. Sendo assim, os estudos de gênero marcam o campo de estudo das Ciências da Religião com uma nova forma de se observar a agência dos sujeitos, suas hermenêuticas de fé e seus lugares de aparição e exige uma ação dos pesquisadores que refletem sobre a área estruturalmente. Percebemos, por exemplo, na música, o surgimento de artistas populares como Ventura Profana, Linn da Quebrada e Jup do Bairro, que marcam o sagrado em seus corpos que transvestem, uma vivência e construção de um cenário religioso dentro não só do espaço geográfico renegado pelo ideal normativo — as favelas, que são percebidas como representação da marginalidade, portanto alvo da violência contra a vida, que é vista com menor valor — mas também na corporeidade que afirma a fé sem renegar o sexo, a nudez, o gozo e o múltiplo.

A teoria Queer, que levanta debates dentro das academias criticando, principalmente, a natureza da estrutura dos binarismos sociais, que não conseguem abarcar todas as possibilidades de existências, ganha espaço nos estudos de gênero dentro das Ciências da Religião à medida em que se constrói sobre a perspectiva histórica do surgimento e modificação dos conceitos, e do caráter fictício das instituições e da moral. Os problemas de gênero fazem parte do plano estrutural da disciplina, e podemos percebê-los por duas vias. A primeira diz respeito à própria composição dos programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil em relação ao número de homens e mulheres no quadro de docentes e discentes. A segunda se refere aos trabalhos sobre gênero e feminismo na área. Um estudo feito pela revista Mandrágora em 2018 mostra que “produziram-se, nestes 40 anos de existência de Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião, por volta de 2.519 (90,25%) dissertações e teses, sendo que 245 (9,75%) dessas pesquisas são referentes aos estudos da mulher, feminista e/ou de gênero no Brasil”.

Foi percebido, também, um maior interesse de mulheres pelos estudos de gênero e feminismo, o que nos faz pensar que a falta de mulheres nas Ciências da Religião vem a ser motivo de falta de estudos sobre perspectivas que tratam a mulher como sujeito de fala e sujeito de produção tanto em estudos meta-disciplinares, isto é, estudos de análise da própria disciplina que toma majoritariamente como cenário o público masculino, quanto em estudos que tratam o feminino como ponto de partida para o estudo do fenômeno religioso e não suprima a subjetividade das pesquisadoras. O entendimento de sujeito foi, por tempos, atravessado pelo masculino, seja na linguagem ou nos meios sociais. Homem e sujeito aproximavam-se no discurso e na gestão do controle sobre as relações públicas e privadas, mesmo que nessa última a gestão de tarefas domésticas fosse atribuída majoritariamente às mulheres.

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A partir dos debates feministas que questionavam a autoridade masculina e a natureza da mulher produzida, como aponta Simone de Beauvoir, como o outro do homem, pôde-se ver surgir uma nova demanda de pesquisas e uma modificação — lenta — na configuração das áreas de saberes. Contudo, como vimos, nas Ciências da Religião a diferença de gênero e interesse de estudos ainda é característica da estrutura patriarcal sobre a qual se ergueu a disciplina. Mas o germe da mudança apontou no asfalto, como nos alegra com o espírito de mudança o poema “A flor e a Náusea” de Carlos Drummond de Andrade, “Uma flor nasceu na rua! […] É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Os estudos sobre identidade de gênero, feminismos, teoria Queer em suas várias formas e variados seguimentos surgiram nas Ciências da Religião como uma flor que quebra o asfalto, mas quebraram o padrão disciplinar e a tendência de objetos que merecem ser estudados. As raízes da nossa flor, que apontou no cimento, trouxeram aos olhos do mundo ideal as diferentes vivências da fé e do fenômeno religioso no mundo real, assim como as diferentes subjetividades que cresceram e foram posicionadas à margem da sociedade, mas que tomaram espaço nas instituições, nas bibliotecas, nas Igrejas e fora delas. É feia, é mulher, é trans, é travesti, é deusa, é preta, é crente, é descrente, é favelada, mas não é só uma flor, é uma flor marginal, que furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 27. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
ECCO, Clóvis; MARINHO, Thaís Alves; ARAÚJO, Claudete Ribeiro de. Religião e gênero: uma investigação do estado da arte dos estudos de gênero nos programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil. Mandrágora: história, gênero e religião, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 5-37, 2018.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.