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A Ciência da Religião sob o signo do comparatismo: Filologia e Mitologia Comparadas como métodos para o estudo científico da religião segundo o pensamento de Max Müller

A Ciência da Religião sob o signo do comparatismo: Filologia e Mitologia Comparadas como métodos para o estudo científico da religião segundo o pensamento de Max Müller

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A Ciência da Religião, no sentido científico propugnado por Max Müller, emerge sob o signo da comparação. Publicada em 1856, a obra Mitologia Comparada (Comparative Mythology) ergue-se como o limiar desse gesto teórico, prolongando-se do romantismo ao positivismo e alcançando o espiritualismo, até esgalhar-se em outras direções da nossa contemporaneidade histórica. De fato, Max Müller compreendia que a ambicionada cientificidade da Ciência da Religião só poderia ser alcançada pelo emprego do método comparativo, o que demonstra a inegável influência recebida de Franz Bopp, seu professor de outrora em Berlim e que em 1833 publicara a primeira gramática comparada das línguas indo-europeias.

Embora o período que se estende de 1880 a 1920 tenha sido considerado a belle époque da aplicação do método comparativista no estudo das religiões, a comparação entre as crenças religiosas remonta a épocas muito mais longínquas, nos conduzindo às culturas grega e romana, bem como às celtas e germânicas. A partir da segunda metade do século XVIII, a prática da comparação sistemática começa a se desdobrar em várias disciplinas. Mas é somente em meados do Oitocentos que esse gesto teórico-metodológico alcança definitivamente o seu auge, sobretudo na área dos estudos filológicos e da gramática comparada.

Com efeito, a revolução de cujo legado Max Müller é herdeiro, enquanto linguista de formação, pode ser devidamente chamada de linguístico indo-europeia. Ela ocorreu ao final do século XIX com a proclamação, no meio acadêmico, do parentesco do sânscrito, do grego e do latim, mas também das línguas persa, gótica e celta. O anúncio feito por William Jones das semelhanças entre as quatro línguas mais antigas conhecidas naquela época – o latim, o grego, o sânscrito e o persa – fora precedido, entretanto, pelas incipientes mas ainda tímidas descobertas do missionário jesuíta Thomas Stephens, do mercador florentino Filippo Sassetti, do linguista e acadêmico holandês Marcus Zueris van Boxhom e, sobretudo, do padre jesuíta Gaston-Laurent Coeurdoux. Já o substantivo adjetivado “indo-europeu” foi usado pela primeira vez, em 1813, por Thomas Yong, tornando-se o termo científico padrão (exceto na Alemanha) mediante as obras de Franz Bopp, cuja comparação sistemática destas e de outras línguas ofereceu suporte teórico para o arraigamento da expressão. Sua Gramática Comparativa – originalmente intitulada Grammatik des Sanskrit, Zend, Griechischen, Lateinischen, Litthauischen, Altslawischen, Gotischen und Deutschen (Gramática comparativa do sânscrito, avesta, grego, latim, lituânio, antigo eslavo, gótico e alemão) –, surgida entre os anos de 1833 e 1852, é geralmente considerada o ponto de partida para os estudos indo-europeus enquanto disciplina acadêmica. Essa revolução indo-europeia iria instaurar, por sua vez, uma outra, a da Filologia Comparada, cujos nomes mais significativos são os de Humboldt, Grimm, Bopp e Bournouf, sendo que Max Müller fora aluno desses dois últimos.

Sabe-se que Max Müller foi partidário do método filológico de interpretação. A Filologia Comparada é o instrumento da Ciência da Linguagem. Beneficiando-se dos contornos que a pesquisa linguística havia adquirido desde Herder e cujo principal aspecto consistia em abandonar os pressupostos de uma teoria racionalista da linguagem e se consagrar ao estudo comparativo das línguas, com o propósito de discernir o seu potencial civilizatório, Müller entende que a Ciência da Linguagem nos permite adentrar nas camadas mais profundas do pensamento humano. Nesta perspectiva, os fatos linguísticos constituem o instrumento que permitirão o remontamento do já conhecido ao desconhecido, isto é, à língua desaparecida dos arianos. Tendo encontrado aí nesse terreno o foco de sua reflexão, o resoluto filólogo se põe a analisar os conceitos radicais (no sentido de raiz, fundamento) donde brotaram, por sua vez, as concepções mais variadas e mais complicadas do espírito humano. Para ele, os mitos indo-europeus não passam de descrições poéticas dos grandes espetáculos da natureza; os deuses, os agentes misteriosos dos principais fenômenos físicos; os nomes dos deuses, os epítetos que designam a esses fenômenos. Por meio da análise etimológica e da comparação dos nomes mitológicos, ele busca a explicação das lendas comuns a diferentes ramos da família ariana. Segundo Max Müller, o sânscrito e o Veda ocupam posições análogas: assim como na Ciência da Linguagem o sânscrito revela-se o mais primitivo e o mais transparente dos dialetos arianos, na Ciência da Mitologia esse locus primordial e cristalino é ocupado pelo Veda e seu sistema religioso. (MÜLLER, Max. Lectures on the Science of Language. Delivered at the Royal Institution of Great Britain in February, March, April, and May, 1863. Second series. New York: Scribner, Armstrong, and Co., 1875. p. 429).

Com efeito, desde a primeira série de cursos que ele profere em Londres, no ano de 1870, Müller esposa a tese segundo a qual apenas uma classificação linguística das religiões é capaz de assegurar um sólido fundamento para a análise científica desses objetos de estudo. Julgando encontrar, portanto, na Filologia Comparada, extremamente fecunda a seus olhos, um instrumento igualmente profícuo para a investigação e o estudo das religiões, ele se concentrará sobre o aspecto linguístico das religiões, a fim de através dele encontrar elementos da sua história primitiva. Nessa perspectiva é que Max Müller principia a constituir os elementos iniciais de um estudo comparado das religiões, limitadamente confinado a uma investigação do grupo linguístico indo-europeu. Interrogando-se sobre o lugar e o estatuto dos mitos entre linguagem e religião, Max Müller postula a ideia fundamental de seu sistema teórico, a de que há uma estreita relação de causa e efeito entre a decadência natural e inevitável da linguagem e os mitos e, por conseguinte, o florescimento das religiões. Para ele, os mitos arianos surgiram da linguagem primitiva, em uma época pré-histórica, ou melhor, de uma doença da linguagem e da confusão resultante dela. É, pois, na antiga língua ariana, entrevista com o auxílio das mais antigas literaturas, sobretudo a da Índia, que aos olhos desse autor devemos procurar a gênese e a significação do processo que deu origem às religiões. Daí Max Müller usar a expressão “doença infantil”, para se referir a esse acontecimento ocorrido na “infância” da humanidade, momento esse em que o pensamento sofrera o poder sobrepujante da linguagem. A Filologia Comparada de Max Müller postula, pois, na origem das religiões, uma espécie de “doença da linguagem”, isto é, um deslocamento semântico que teria desembocado, por sua vez, na personificação das forças naturais. É tarefa, pois, da Ciência da Religião trazer à luz essa espécie de “cripta comum das religiões”, segundo a terminologia adotada ao final de Lectures on the Science of Religion.

Ora, a Mitologia Comparada, no sentido aventado por Müller, não é senão a transposição, para o âmbito de investigação dos mitos, dos métodos da Filologia Comparada. Desta sorte, de modo análogo ao gesto de comparação linguística, que havia encontrado no sânscrito a sua chave hermenêutica, a Mitologia Comparada descobrirá na mitologia dos Vedas, a um só tempo mais antiga e mais transparente em suas raízes do que as mitologias grega e latina, a gazua para adentrar na compreensão da floração das narrativas míticas e revelar o segredo de sua urdidura. Nos mitos védicos, Müller julga encontrar, pois, não mitos acabados como os da poesia de Homero, mas narrativas em vias de formação; não ainda numina, mas nomina. A análise filológica ergue-se, assim, como não apenas como um instrumento utilizado para revelar a natureza de certos seres míticos, sobretudo no âmbito da cultura védica, mas também como o ponto de partida da teoria mülleriana acerca da estreita relação entre a linguagem e o mito. Nesta perspectiva, duas podem ser consideradas as ideias fundamentais da teoria de Max Müller: a origem exclusivamente verbal dos mitos e a identidade primitiva das lendas, a saber, a ideia de que todas devem ser consideradas como formas diversas de expressão de um só e único mito solar.

A equação: Dyaus pitar = Zeus pater = Júpiter (Jus pater) constitui o ponto de partida da Mitologia Comparada, e Müller não se cansa de no-lo dizer em todos os seus escritos. Ora, Dyaus é a forma nominativa de dyu, que designa o dia, mas originalmente significa o que brilha. Esta transparência etimológica presente na mitologia védica oferece a Müller a chave hermenêutica de toda a mitologia indo-europeia, de modo que a divindade (numen) é reconduzida à sua significação radicalmente natural (nomen). E é irrecusável não encontrar aí a tácita transposição de uma das noções-chave em torno das quais orbita A Filosofia da Mitologia, de Schelling, o conceito de tautegoria, segundo o qual as figuras mitológicas significam aquilo que elas são, e são aquilo que elas significam. De fato, para Müller, todo o processo, natural e inevitável, de emergência das narrativas míticas não se constitui senão na evocação figurada (simbólica, poética) daquilo que ele nomeia de mito solar. Todo mito deita raízes, pois, nessa origem solar. E é exatamente neste aspecto que a teoria de Müller, enquanto interpretação solar, revela uma direção diametralmente oposta àquela do linguista e filólogo alemão Franz Felix Adalberth Kühn, na qual os mitos são reportados aos fenômenos violentos da natureza, tais como tempestades, relâmpagos, etc., embora ambos os pensamentos se ergam sob o signo de uma compreensão naturalista das mitologias. Mas, para Müller, não basta haver deslocamento semântico para os mitos surgirem; só quando as ousadas metáforas das poesias primevas são esquecidas, apenas quando a linguagem – e, por conseguinte, o próprio pensamento – se perde no próprio gesto e leva os primitivos a tomarem “a Palavra pela Coisa, a Qualidade pela Substância, o Nomen pelo Numen”, é que os mitos afloram na história humana (MÜLLER, Max. Lectures on the Science of Language. Delivered at the Royal Institution of Great Britain in February, March, April, and May, 1863. Second series. New York: Scribner, Armstrong, and Co., 1875. p. 600). Desta sorte, foi preciso que os povos indo-europeus, dos quais não estaríamos muito distantes, segundo Müller, tivessem perdido progressivamente o sentido da própria evocação figurada e, em decorrência, a qualidade se corporificasse em substância, para que as mitologias viessem à luz e fizessem morada nas línguas dos homens.

Esse pensamento, em sua dupla face, acarretou o severo juízo de um Lévi-Strauss, tanto na sua feição enaltecedora quanto no seu cariz crítico: “Max Müller e sua escola tiveram o grande mérito de descobrir e de decifrar, em parte, o código astronômico que os mitos frequentemente utilizam. Seu erro, assim como o de todos os mitólogos desta época e de outras mais recentes, foi o de querer compreender os mitos por meio de um código único e exclusivo, ao passo que há vários operando simultaneamente.” (LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques: l’homme nu. Paris: Plon, 1971. v. 4, p. 38).

Se a comparação das línguas revela ao especialista da Mitologia Comparada o gesto etimológico-naturalista originário dos deuses míticos, a transmutação de nomina em numina (do latim: nūmen, nūminis; deidade, divindade), o que ela há de mostrar ao cientista da religião é aquilo que Müller nomeia como a “faculdade do Infinito”, que o autor vê operar em três formas sucessivas de religião – o henoteísmo védico, o politeísmo grego e o monoteísmo cristão – e, desde então, supõe ser o elemento fundamental que dá origem a todas as religiões. Daí que, para Max Müller, a religião não seja apenas um “corpo de doutrinas”, mas também uma “faculdade de fé”, sinonímia daquela outra forma de nomeação dessa mesma capacidade natural que permite ao ser humano o reconhecimento do Infinito sob nomes e roupagens culturais e linguísticas diversas (MÜLLER, F. Max. Introduction to the Science of Religion: four lectures delivered at the Royal Institution in February and May, 1870. London: Longmans, Green, and Co., 1899. p. 12-13). Essa faculdade, a seus olhos, independe de toda expressão ou forma histórica que as religiões venham a assumir, mas é o que possibilita o vir a ser das religiões na sua diversidade. Postulada como a terceira faculdade humana, após o sentido e a razão, ela constitui a dimensão na qual, contra Darwin, Max Müller situa o polo de distinção entre o homem e o animal. Não é por acaso, pois, que o venerado filólogo alemão insere como epígrafe de sua Introdução à Ciência da Religião, logo na contracapa, uma célebre sentença latina de Vincente de Lérins – “Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus”, ou seja, aquilo que foi admitido em toda parte, sempre e por todos –, usada aí nessa obra, certamente, com uma significação que transpõe os limites do cristianismo e alcança uma espécie de denominador comum de todas as religiões. Daí também o fato de Müller ter nomeado de Teologia (Comparada e Teórica) as duas partes constitutivas da Ciência da Religião, haja vista a concepção antropológica que subjaz à sua teoria científica.

Deste modo, assim como se deu no percurso intelectual de Max Müller, a tradução dos textos sagrados frequentemente conduziu a uma travessia ou passagem de cariz metodológico: da gramática comparada ao estudo igualmente comparativo das religiões. Foi o caso, por exemplo, de Thomas Rhys Davids, a quem se proclamou o “Max Müller do Budismo” e que fundou a Pali Text Society em 1881, a qual se destinava a promover a tradução, para a língua inglesa, e a edição dos manuscritos theravadin em língua pali, a fim de se viabilizar o acesso aos cânones do protobudismo.