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Visões sociais espíritas: conservadores vs progressistas

Visões sociais espíritas: conservadores vs progressistas

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A emergência de um cenário conservador no Brasil nos últimos anos, sobretudo após o golpe de Estado midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições presidenciais de 2018, tem recebido o respaldo e a participação de atores/atrizes e instituições religiosas, colocando em evidência tensões e conflitos internos entre distintas moralidades e visões de mundo nos principais segmentos religiosos cristãos. Mesmo o movimento espírita, que sempre primou pela discrição e apaziguamento das diferenças, evitando particularmente os embates políticos, não conseguiu escapar dessa tendência. Mas se algo de positivo pode ser extraído desse contexto é o fato de convocar os fiéis da fé kardecista ao exercício cívico, tão oportuno quanto necessário em tempos de fortes ataques ao Estado Democrático de Direito.

Embora a aura de união, fraternidade e caridade que paira nas e sobre a visão das casas espíritas no Brasil, sobretudo das entidades federativas, sirva como uma estratégia para evitar os debates políticos entre os/as irmãos/ãs da fé espírita – o que não deixa de ser um gesto político –, ela acaba operando como uma forma de invisibilizar apenas algumas das posições políticas que emergem ou estão presentes no movimento espírita, tanto mais porque é comum no meio qualquer dissidência ser taxada de “assédio espiritual” e “obsessão”, numa atitude política e intimidatória. Contudo, não é de hoje que dentro do movimento residem tensões a respeito de como concebem vivências, práticas e ações de orientação espírita no mundo, especialmente as tensões entre espiritismo, política e engajamento social coletivo.

O espiritismo está longe da unanimidade já desde suas origens. As práticas de orientação religiosa, as direções e os significados da ação no mundo, os mecanismos de legitimação de personagens e concepções, as maneiras de atingir a salvação, tudo isso variou e varia sensivelmente dentro do espectro religioso a que se convencionou chamar de espiritismo kardecista. Delimitar as posições e as divergências tem sido importante nesse sentido, tanto mais porque no espiritismo não há uma cúpula legítima para ditar o que é ou não espiritismo. Aliás, médiuns, oradores/as, trabalhadores/as e lideranças não detêm autoridade inquestionável para falar em

nome do espiritismo, nem mesmo instituições federativas, o que cria uma série de grupos, que não raras vezes conflitam entre si.

Essa mesma pluralidade de visões, instituições e tipos de autoridade também vai estruturar o campo de debates espíritas sobre política. Essas discussões têm se adensado tanto em termos de novas tensões e entendimentos quanto de novos/as atores/atrizes, que vêm sendo desafiados/as a (re)elaborar o discurso religioso, tornando explícitas posições políticas diante da crise que esgarça nosso tecido social. Esses debates têm colocado em evidência as controvérsias entre, de um lado, e por meio da linguagem dos Direitos Humanos, os/as “espíritas progressistas”, e de outro, os/as “espíritas conservadores/as” – embora estes raramente se auto-identifiquem enquanto tais –, em sua maioria partidários/as da manutenção das instituições sociais e políticas tradicionais.

Temas como gênero, sexualidade, direitos sexuais e reprodutivos, direito penal, Estado laico, tolerância, diversidade, inclusão e demais temas ligados aos Direitos Humanos passaram a ser cada vez mais frequentes nos espaços de encontros virtuais entre espíritas progressistas, que organizaram um abaixo-assinado tornando públicas as suas divergências em relação aos conservadores. Muitos/as deles/as também assinaram o “Manifesto por um espiritismo kardecista livre” e o “Manifesto de espíritas progressistas por justiça, paz e democracia”, marcando sua posição política diante da recente onda conservadora após o golpe de 2016. Expressaram também suas decepções com as posturas que consideraram incoerentes de irmãos/ãs de fé, que falam de caridade, fraternidade e amor ao mesmo tempo em que fazem gestos de “arminhas” com as mãos, demonstrando apoio, na época das eleições de 2018, ao então candidato à presidência e hoje presidente Jair Bolsonaro.

Fanpages e grupos públicos do Facebook como “Espiritismo e Direitos Humanos”, “Feminismo, Diversidade e Espiritismo”, “Espiritismo de Direita é Assédio”, “Fronteiras do Pensamento Espírita”, “Espiritismo à Esquerda”, “Socialismo e Espiritismo” e “Espiritismo e Política”, entre outros, discutem de maneira articulada as várias dimensões da vida social – política, economia, de gênero e sexualidade etc. – do ponto de vista espírita progressista, fomentando o diálogo entre espiritismo e política.

Esse diálogo, propriamente falando, não é novo no meio espírita, mas a tendência no Brasil seguiu sempre no sentido de escamoteá-lo, segundo o argumento de que Kardec teria instruído os/as espíritas para que não se envolvessem em disputas político-partidárias em nome do espiritismo. Ocorre que Kardec não rejeitou completamente a ideia, uma vez que entendia que a concepção de partido nem sempre está relacionada com luta e divisão, e, para ele, o espiritismo teria condições e capacidade de emitir pontos de vista quanto aos fatos que interferem na vida humana, sobretudo na vida pública. Mesmo que não faça parte do horizonte de discussões espíritas a criação de um partido político – e isso já foi uma realidade nos idos de 1930 –, posicionar-se diante do e agir neste mundo, carregado de desigualdades, injustiças e intolerância, não deixa de ser um dever da fé espírita.

Política e doutrina espírita já eram pensadas em suas relações desde o nascimento do espiritismo. Socialismo e Espiritismo, por exemplo, é o título de uma das obras, publicada na década de 1920, pelo espírita francês Léon Denis (1846-1927), tido como o sucessor de Allan Kardec. A correlação que propunha entre socialismo e espiritismo estava em plena sintonia com a história das ideias francesas oitocentistas. Não por acaso, quando o espiritismo aportou em solo brasileiro na década de 1860, foi recebido pela colônia de imigrantes franceses no Rio de Janeiro que mesclavam às leituras de Kardec leituras dos socialistas utópicos, como Saint-Simon e Charles Fourier. Socialismo, justiça social, progresso, igualdade e reencarnação se entrecruzavam nas reflexões francesas, embora fossem um tanto inusitadas para a sociedade brasileira da época.

A proposição de um socialismo cristão, por parte dos/as espíritas brasileiros/as, vai ser pensada apenas nas décadas de 1960 e 1970, quando emerge, em meio às fortes tensões sociais e políticas do regime ditatorial, um espiritismo crítico e politizado entre a juventude espírita. O “Movimento Universitário Espírita” articulava um conjunto de renovações teóricas e práticas, iniciando um processo de construção de sínteses em torno de religião e política, revelando o potencial de um espiritismo de esquerda, o que provocou fortes reações de oposição dos principais dirigentes espíritas à época, levando, assim, à sua extinção.

Portanto, não é de agora as discussões entre espiritismo e política, mas certamente o que podemos notar hoje é uma espécie de reconfiguração e adensamento dos debates. Enquanto agentes sociais, produtos e (re)produtores de processos de socialização, os/as espíritas leem a realidade social por meio das lentes que adquirem ao longo desses processos, ao mesmo tempo em que buscam articular suas leituras com o que compreendem ser o espiritismo. Certamente esses diálogos foram intensificados e cada vez mais publicizados na medida em que trazem em seu bojo a própria leitura que nutrem do que seja o espiritismo e de como os/as espíritas devem agir no mundo. Direitos Humanos, democracia, Estado laico, desigualdades sociais, econômicas, de gênero e de sexualidade estão no centro dos debates políticos contemporâneos e também no centro dos debates espíritas. É por meio dessa centralidade que podemos assistir ao processo de reestruturação do campo espírita em termos de um espiritismo progressista e de um espiritismo conservador.

E uma das iniciativas emblemáticas para compreender esse novo momento foi o I Encontro Nacional de Espíritas à Esquerda, realizado em outubro de 2019, em Salvador. Com o título de “Espiritismo e Sociedade: reflexões sobre política e conjuntura brasileiras”, o encontro promoveu debates sobre desigualdade, mundo do trabalho, autoritarismo e violência. Organizado pelo grupo “Espiritismo à esquerda”, o evento contou com a participação de sociólogos/as, economistas, psicólogos/as, filósofos/as, educadores/as e médicos/as – em sua maioria espíritas –, além de ex-integrantes dos governos petistas.

Outro bom exemplo para se pensar as novas configurações dos debates políticos espíritas vem do Fórum de Pesquisa Filosófica e Social sobre o Espiritismo, realizado na Universidade Federal de Goiás, em junho de 2019, organizado pela Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Sociais e Humanas (Aephus) e pela Associação Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura da Paz (Abrepaz). O Fórum reuniu espíritas progressistas, que compreendem a necessidade de promover a inclusão e a justiça social, a liberdade, o respeito, a igualdade e a diversidade. Foram apresentados trabalhos de pesquisadores/as e professores/as, em boa parte, mestres e doutores/as, com temas sobre educação, democracia, mudanças sociais, desigualdades, entre outros.

Os/as espíritas progressistas, por meio da compreensão de que a transformação social implica uma ação individual e coletiva que tem em seu bojo a valorização da dignidade humana e a eliminação das várias violências e discriminações – racial, de gênero, de sexualidade, etária, de classe, de religião etc. –, aliam esse conjunto de princípios baseados nos Direitos Humanos com a ética espírita cristã, essa mesma ética que está em disputa no espiritismo contemporâneo. Nessa disputa também são colocadas explicitamente em questão as autoridades mediúnicas, intelectuais e institucionais, que arrogam para si o direito de falar em nome do espiritismo.

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Segundo a visão progressista, o espiritismo, por seus princípios, é entendido como protagonista indispensável na promoção da igualdade, da fraternidade e da justiça social. Uma sociedade mais justa e fraternal, sem dúvida nenhuma, é uma visão compartilhada por praticamente todos/as os/as espíritas. As divergências, no entanto, estão nas explicações sobre as desigualdades e, principalmente, nos meios de alcançar essa sociedade. Um bom atalho para compreender essas divergências são as distintas compreensões do imperativo ético da caridade, sintetizado no lema espírita “fora da caridade não há salvação”.

De modo geral, os/as espíritas detêm uma cartela ampla de capitais, requisito adquirido pela situação social e econômica privilegiada, com acesso a uma formação escolar e erudita que é, ao mesmo tempo, uma condição de origem social, um fator importante de pertencimento à religião e um valor intrínseco à doutrina. Contudo, a semelhança da situação social que caracteriza o segmento espírita não se traduz em uma forma única de posicionamento político. Cada forma de apreensão do espiritismo implica uma leitura social e política do mundo e implica também em direcionamentos da ação no mundo, sobretudo no que tange à caridade. De modo muito amplo – embora a tentativa aqui seja sintetizar, em curto espaço, um conjunto muito complexo de pensamento, sem querer criar um divisionismo insuperável – seria muito simplista afirmar que o peso da origem socialmente privilegiada dos espíritas – classe média branca, escolarizada, cisgênera e heterossexual – condiciona unicamente a sua visão de mundo e do futuro do mundo. No entanto, ela pode contribuir para uma leitura espírita confortável e conformista da vida social na medida em que abraça uma explicação reencarnacionista da meritocracia e das desigualdades sociais. Se o que caracteriza o pensamento conservador é a tendência à manutenção de valores, tradições e estruturas sociais, uma vez que qualquer desigualdade é consequência inevitável das diferenças “naturais” entre os indivíduos, de seus esforços e de suas decisões, o espiritismo conservador terá mais propensão a pensar o/a necessitado/a enquanto um sujeito que está pagando por suas escolhas (na chave do karma), e não uma vítima das estruturas sociais desiguais. Nesse sentido, auxiliá-lo/a pode aliviar pontualmente suas aflições, sem eliminar propriamente as desigualdades de condições e de existência. A caridade assistencialista aparece, então, como uma boa obra para a salvação de foro íntimo e individual de quem a pratica do que o caminho para a transformação estrutural da sociedade. Se o que caracteriza o pensamento progressista é a tendência à ruptura de padrões sociais tradicionais responsáveis pelas várias desigualdades, o espiritismo progressista terá mais propensão em pensar a caridade como o caminho para alcançar as transformações estruturais. Construir uma sociedade mais justa requer agir coletivamente no mundo, eliminando as desigualdades de toda ordem. Nesse sentido, para os/as espíritas progressistas, se Allan Kardec estivesse vivo hoje, teria cunhado a expressão “fora da justiça social não há salvação”, muito mais ampla e mais próxima da noção cristã de equidade. Porque entendem que se a caridade é necessária, a justiça social é urgente.

As controvérsias espíritas entre progressistas e conservadores nos mostram, portanto, que o que está em jogo nessas disputas é a própria definição do que seja o espiritismo e de como devem ser, pensar e agir os/as que se dizem espíritas. Em outras palavras, estão em jogo moralidades espíritas distintas, que se constroem a partir de determinadas matrizes de leitura e de experiência do social. Resta saber qual será a leitura hegemônica no espiritismo.


Referências

jornalggn.com.br/noticia/
www.brasil247.com/brasil/
www.cartacapital.com.br/blogs/

Discussões a esse respeito podem ser lidas na Revista Espírita, fundada em 1858 e dirigida durante mais de dez anos por Allan Kardec. Em sua edição de julho/agosto de 1868, foram publicados antigos que tratam de justiça social, desigualdade e política.