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Prazer, Rap nacional! Um jeito marginal de fazer política e religião

Prazer, Rap nacional! Um jeito marginal de fazer política e religião

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Falar de política certamente é falar daquilo que compõe a nossa identidade e tudo o que nos cerca, dá significado ou molda ideologicamente nossas comunidades. A cultura é indissociável a esse processo, pois ela é responsável pela junção desses desdobramentos sociais e assim como a religião/crença, modela os interesses econômicos, a estética e o acesso histórico que se tem a realidade. Nas palavras do antropólogo americano Clifford Geertz, “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” e, “o que sucede a uma comunidade geralmente sucede também à sua fé e aos símbolos que a formam e a sustentam”.

A inquietação por significados faz com que cada grupo humano seja uma espécie de intérprete de si mesmo (um ser-hermenêutico) e dos demais arranjos sociais e, a religião com seus mitos, torna-se um lugar de construção de sentido que traduz e interpela a experiência cotidiana. No Brasil, pelo seu histórico forçosamente híbrido, onde as muitas comunidades diaspóricas e originais (indígenas) coexistem – não sem tensões – com seus colonizadores, obtém-se como resultado a formação desse “sujeito brasileiro” que cria, compõe, interage e se relaciona a partir de um rastro simbólico e ancestral. Assim, originalmente, a cultura popular brasileira é essa teia sincrética em que os conceitos cotidianos de política, arte e religião, desenvolvem-se às margens do dito “progresso” colonial, seus feitos religiosos e sua arte clássica.

Dentre as múltiplas abordagens que se podem fazer sobre política e religião, a música brasileira, tão presente no imaginário popular, pode ser um lugar de acesso à experiência social e cultural que se desenvolve no país, seja pelo caráter histórico, religioso ou econômico de sua influência. Como exemplo, recentemente, o colunista da Folha de São Paulo, Anderson França, publicou um texto que gerou inúmeras repercussões, intitulado “Silêncio sobre Roberto Alvim reinou entre o pessoal do axé, do sertanejo e do pagode”. Com severas críticas aos artistas mais bem pagos da cultura popular do Brasil, França cobra um posicionamento crítico dos cantores sobre a alusão nazista do ex-ministro da cultura, Roberto Alvim. O colunista diz que, ao contrário de James Brown (artista popular norte-americano) que, com a morte do pastor e ativista Martin Luther King Jr. fez um show aberto em protesto à estrutura racista do Estado americano, muitos artistas brasileiros formados pela cultura popular não se preocupam em se posicionar contra falas e ações conservadoras direcionadas à cultura nacional, com medo de perderem seus contratos ou mesmo na intenção política de reafirmar o imaginário de “um Brasil que não existe”: sem pobreza, desigualdades e com uma cultura homogenia-apolítica.

A questão revela uma crise na identidade cultural de um país que não se reconhece e não entende – no seu fazer cultural – as tensões históricas e políticas envolvidas na formação do povo brasileiro, que através de cada gênero musical regional (forró, axé, frevo, samba, sertanejo etc) revela os conflitos ideológicos, os costumes e a história, por exemplo, do homem e da mulher campo (sertanejo e forró); do processo de favelização e modernidade dos centros urbanos (frevo e samba) ou do sincretismo inter-cultural advindo da diáspora africana (landu e axé). Certo é que, a música popular, é o resultado e a resposta da formação cultural de um povo, sua linguagem, seus símbolos e sua religiosidade, e esses, sempre como produções alternativas e dissonantes frente à ordem instituída.

Diante dos diversos gêneros musicais presentes no Brasil, certamente o rap, enquanto parte da cultura popular periférica brasileira – influenciado por um movimento urbano que na sua gênese reuniu latinos, jamaicanos e caribenhos na periferia de Nova Iorque – se tornou uma nova postura político-sonora. Com sua letra, performance e musicalidade, engendrou entre as camadas sociais mais baixas novas experiências culturais, mobilização e ocupação do espaço público. Esse movimento celebrou a formação de um país internamente em trânsito (imigrante) e a liberdade de expressar artisticamente os dilemas dos corpos periféricos que, vítimas de uma política neoliberal (a partir dos anos 1990), experimenta os danos de uma sociedade adequada aos imperativos do mercado/privatização. Assim, a partir desse ajuntamento urbano despretensioso (dança, grafite, dj e Mc) evoca uma atitude política, isto é, um engajamento social através da cultura (conhecimento, o quinto elemento do movimento Hip-hop).

Os temas que rondam o imaginário desse gênero são diversos: a violência policial, dilemas sobre trabalho e sobrevivência, o contexto das relações sociais e culturais localizados à margem, a religiosidade popular e a própria política partidária, enfrentada com a mesma agressividade em que o Estado opressor e seletivo administra as zonas periféricas. Esse sentimento de revolta implícito nos rappers, se mistura entre símbolos religiosos que compõem a experiência cultural de sua comunidade, tornando-se força motriz de enfrentamento às desigualdades promovidas pelo Estado capitalista. Como declara Mano Brown no começo do álbum “Sobrevivendo no inferno” (1997): “Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu?! Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno”. Sobre esse trecho, Walter Garcia, pesquisador e crítico (USP) da canção popular, diz que: “ao sustentar uma ideia de Bem que não se concretiza na realidade da periferia urbana [sobreviver no inferno]”, o Deus de Brown, “tão antigo quanto humilde (“bíblia velha”) se alia ao armamento moderno (“pistola automática”) e ao inconformismo do sujeito”.

Essa relação entre discurso político e discurso religioso é tradição no rap. Desde suas origens no Bronx (NY), o rap se dá entre diversas culturas africanas/latinas e se encontra com a música religiosa dos negros americanos (spirituals, soul, funk) em sua tradição oral, revelando uma identidade híbrida e sincrética. Já no Brasil, os primeiros discos de rap produzidos (“Hip-hop: cultura de rua”, 1988 e “Consciência Black Vol. I”, 1988) já se encontra o jogo mítico-simbólico da linguagem popular: “Tenho em minhas mãos um manifesto/Que me salva de afundar em um mundo que eu detesto/Nisso tudo eu piso e não tropeço/Meu manifesto é a força do Criador” (O credo, “Hip-hop: cultura de rua”), e “O fim está próximo, esta é a versão/Redimir-se todos, esta é a vocação/Disse Jesus Cristo que na terra irá voltar/Vocês irão rezar, pro céu também olhar” (Absoluto, “Consciência Black Vol. I”). Os dois trechos descritos fazem alusões e comparações a elementos da religião cristã. Ter nas mãos um “manifesto”, por exemplo, é a dualidade que a figura de linguagem pode significar: enquanto um livro sagrado em mãos, que assume o caráter religioso e crítico da proposta bíblica de salvação, ou mesmo o rap escrito em uma folha ou na palma da mão, como sendo um documento que pudesse garantir uma consciência crítica diante da vida.

Todos os elementos que compõem essa “escrita da voz”1BÉTHUNE, Christian. Le Rap. Une esthétique hors la loi. Paris: Autrement, 2003, p. 52. e “imaginação radical negra”2KELLEY, Robin. Freedom Dreams. The Black Radical Imagination. Boston: Beacon Press, 2002, p. 9., alicerçada na ideia de uma “poética da luta e da experiência vivida”, faz do rap não só em seu começo, mas como na sua fase contemporânea, mesclar “simultaneamente a voz de uma específica subjetividade”3Ibiden, p. 9. de sobrevivência  afro-brasileira com a capacidade estética das metáforas religiosas em meio aos relatos: “E a profecia se fez como previsto/1997 depois de Cristo/A fúria negra ressuscita outra vez/Racionais Capítulo 4, Versículo 3” (Racionais Mc’s); “Olhei no espelho e encontrei Jesus, preto/Tipo Auto Da Compadecida” (Djonga); “Brooklyn, o que será de ti?/ Regar a paz, eu vim/Jesus já foi assim” (Sabotage); “Enquanto servirmos o faraó, nunca sairemos do Egito” (Síntese), “Só quem driblou a morte pela Norte saca/Que nunca foi sorte sempre foi Exú” (Emicida); “Pela Deusa Travesti/A Deusa dos corpos que querem Resistir/Deus é Travesti/A Deusa dor corpos que querem Existir” (Alice Guél). Como observado, há uma vasta produção de sentidos religiosos no rap, diversificados em suas abordagens: questões raciais, de gênero e classe. O crítico literário, Otávio Paz, classifica: “O poema se alimenta da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, sonhos e suas paixões, ou seja, de suas tendências mais secretas e poderosas”.

Bem como em sua religiosidade, raramente o rap e seus agentes, se alinham a uma instituição, um partido político. Revela-se certo desinteresse ou descrença na transformação social pelos meios hegemônicos da democracia burguesa brasileira. Na proposição de serem o “Raio-X do Brasil”, a própria cultura Hip-hop é evocada como resistência popular de organização autônoma. Faz-se agente das disputas simbólicas da produção cultural e religiosa carregada de uma atitude política engajada. Partidos e políticos profissionais, independente de sua ideologia, estão no alvo de suas palavras. Como Foucault afirma: “a análise tradicional dos aparelhos de Estado sem dúvida não esgota[m] o campo de exercício e funcionamento do poder”. Assim os rappers, como uma classe representativa dos “desapossados de instrumentos materiais e culturais necessários à participação ativa na política” (Bourdieu) hegemônica, mostram em suas letras e shows uma postura de ordenamento político pelo social, a partir da periferia. Como afirmou Mano Brown (integrante dos Racionais Mc’s):

Eu já tô na política há vinte anos. Eu faço política, tudo que eu faço, de uma forma direta ou indireta, outras vezes agressiva outras vezes disfarçada, é política. Certo? Faço política. Faço política do meu jeito. Do meu escritório, meu escritório é a rua, é a esquina, entendeu? E eu sei o que tá pegando. Antes dos verdadeiros políticos profissionais descobrir, eu já descobri.

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Para concluir, o rap é uma agência cultural de produção de sentidos onde, a política e a religiosidade do povo, vão se adaptando e se contextualizando em novos arranjos estéticos e discursivos. Diante de um cenário político partidário difuso, antes mesmo das eleições presidenciais de 2018, seus agentes vêm se comprometendo em denunciar os abusos e violências contra as classes baixas: “De um lado um público jovem, maldita massa despolitizada/Às vezes uns tão radical, mas base teórica nada/Nunca invejei ninguém, na verdade ataquei a estrutura/Uma grande manobra arriscada como Bukowski em literatura/ Chinaski, o aprendiz, filho de Lula, não de Ustra” (Expurgo, 2016).  Além de contradizer uma experiência religiosa autoritária, onde “Deus”, como parte de uma linguagem cultural, reconhecido como autoridade sobrenatural que valoriza a vida, é evocado como parte da experiência periférica de sobrevivência. É ele, esse ser divino, que “não deixa o mano aqui desandar” além de “vigiar os ricos, mas ama[r] os que vem do gueto”:

Deus acima de tudo, Deus acima de todos
Deus acima de tudo, Deus acima de todos
Acima de todos mesmo, pisando na cabeça
Esmagando, vai, vai
Deus pra mim é Djonga, não me leve a mal
Militar boçal, devia soltar o anel
Vai ser até mais fácil de entrar no céu
Meu precioso, Jesus era anarquista
Num era racista, jogado na pista
Bebia vinho e chupava Madalena
Respeitava as mina e fudia o sistema
Cê tá enganado falando de família
Tá parecendo o Dória, rodeado de puta
Broxa, doido de pedra
Vou te jogar no mosh pra assistir a sua queda
Essa aqui eu fiz incorporado no ancestral
O índio e o negro, espírito imortal
Suba no seu palanque, carregue seu tanque
Tamo fazendo um feitiço pra adiantar seu funeral
(Eu vou, 2019)

Os desafios continuam e o rap, se faz radical em seu compromisso com a periferia, incomodando os ouvidos conservadores e progressistas. A cultura popular em que o gênero é gestado, forja entre disputas e tensões o imaginário político e religioso da nação. Mano Brown, “profeta das ruas”, representante de uma realidade que se encontra à margem, alertou no evento político (“Vira-voto”) em 2018, que o clima não era de festa:

Se em algum momento a comunicação do pessoal daqui [políticos e militantes de esquerda] falhou, vai pagar o preço. (…) Se não tá conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo. Falar bem do PT pra torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não tá aqui que precisa ser conquistado, ou a gente vai cair no precipício. E eu tinha jurado pra mim mesmo nunca mais subir no palanque de ninguém, entendeu? Porque política não rima, não tem suingue, não tem balanço, não tem nada que me interessa. Eu gosto de música. (…) [em meio às vaias] Deixou de entender o povão já era. Se nós somos o partido dos trabalhadores, partido do povo, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber.


Notas

  • 1
    BÉTHUNE, Christian. Le Rap. Une esthétique hors la loi. Paris: Autrement, 2003, p. 52.
  • 2
    KELLEY, Robin. Freedom Dreams. The Black Radical Imagination. Boston: Beacon Press, 2002, p. 9.
  • 3
    Ibiden, p. 9.