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Os Evangélicos, a Política, o Flerte e o Concubinato

Os Evangélicos, a Política, o Flerte e o Concubinato

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O flerte, quando não o completo comprometimento, de igrejas evangélicas com governantes autoritários no Brasil, remonta há algumas décadas. Seria até possível recuarmos um pouco mais no tempo, mas, acredito, o ponto de inflexão realmente significativo nessa longa história, se dá após o golpe civil-militar de 1964.

O período anterior ao golpe, mais precisamente a primeira metade do século XX até início da década de 60, foi marcado por dois setores dentro dos protestantismos históricos: (1) um protestantismo progressista que vinha articulando uma ética social e política desde os anos de 1910; (2) um protestantismo conservador focado numa ética individualista e que refletia o conservadorismo da classe média brasileira de então.

Fundada em 1934, A Confederação Evangélica do Brasil (CEB) serviu como um manto sob o qual se acomodavam essas tendências que, mesmo conflitantes, conseguiram conviver com algum sucesso nessas décadas. As principais denominações protestantes daquela época produziram importantes documentos que expressavam seus posicionamentos sociais. Esses documentos representavam uma tentativa de superação do individualismo característico do protestantismo de missão rumo a uma teologia social. Assim, metodistas, presbiterianos, batistas e luteranos, nessa ordem, registraram semelhantes preocupações com a situação de pobreza da maioria da população brasileira e reivindicaram ações governamentais que diminuissem esse estado de alienação dos bens mais básicos para uma vida digna; posicionaram-se contra preconceitos de toda sorte; defendiam a liberdade de consciência e de expressão e os princípios democráticos; advogavam a inserção dos membros dessas denominações, e do protestantismo em geral, na vida pública: sindicatos, partidos políticos, fábricas, cátedras e nas instâncias de poder nas esferas executivas, legislativas e judiciárias; reivindicavam a proteção à infância e à juventude contra os males que ameaçavam essa faixa etária da população brasileira; clamavam por melhor distribuição das riquezas nacionais e por reforma agrária; pediam a melhoria do sistema de saúde e ações de combate aos vícios; defendiam a crítica aos governos e o enfrentamento quando estes não agissem em favor do povo; reivindicavam condições de moradia nas áreas urbanas e rurais; defendiam o trabalho das mulheres; exigiam reforma previdenciária visando à aposentadoria digna; advogavam o direito à greve. Por surpeendente que possam parecer, essas reivindicações estão estampadas nesses documentos produzidos de maneira oficial por essas denominações.

Como apontado acima, progressistas e conservadores conviviam em razoável cooperação até então, ancorados na CEB. A situação começou a mudar, notadamente, no início dos anos 60, refletindo o contexto mais amplo da Guerra Fria que, na América Latina, ecoou de forma mais significativa após a Revolução Cubana, em 1959. O contexto evangélico brasileiro acusou o baque ao mimetizar a polarização característica da Guerra Fria. Para alguns, cada vez mais as reflexões sociais e ecumênicas engendradas pelos setores mais progressistas do protestantismo nacional, geravam desconforto e desconfiança. A palavra ecumenismo começou a soar como sinônimo puro e simples de comunismo e, como tal, passou a ser vista como uma ameaça à sanidade doutrinária. Uma tensão instalou-se nos corredores eclesiásticos, antigas amizades e alianças já não funcionavam, denúncias, intrigas e ações autoritárias se avolumavam no seio das denominações. A par disso, em editorial publicado em agosto de 1963 no jornal O Brasil Presbiteriano, o rev. Domício Pereira Mattos escrevia: “A hora é revolucionária. Precisamos ajudar a revolução com o Evangelho e dentro da Democracia, antes que a revolução seja feita sem o Evangelho e sem a Democracia.”

Os expurgos e cassações dentro das denominações evangélicas, a bem da verdade, começaram antes mesmo do golpe de 64. Mas, após a instalação da ditadura militar, as perseguições se intensificaram. As cúpulas de todas essas denominações, sem exceção, apoiaram o golpe e, em certos momentos, contribuiram com sua manutenção. De forma geral, os acontecimentos políticos daqueles dias eram vistos como resposta de Deus às orações dos crentes. Contrastando com o alerta do rev. Domício Matos visto acima, em maio de 1964, o pastor presbiteriano Oscar Chaves, escrevia no mesmo jornal: “Todos os verdadeiros cristãos se regozijaram e estão regozijando com os resultados da gloriosa revolução de março-abril: o expurgo dos comunistas e seus simpatizantes, da administração do nosso querido Brasil. A Providência de Deus se fez sentir na hora certa, quando muitos fiéis, já ansiosos e temerosos, pensavam que a nação teria de ser flagelada pela horda dos anarquistas e materialistas – Deus agiu na hora certa, repetimos usando a coragem e o patriotismo das Forças Armadas e de civis… se quiserem ser comunistas, que o sejam, mas renunciem à jurisdição da Igreja e não contaminem o rebanho […] É preciso o expurgo.”

Ora, não foi diferente na denominação batista. Em editorial escrito pelo conhecido pastor José dos Reis Pereira, redator do Jornal Batista, e publicado em 12 de abril de 1964, lemos: “Os acontecimentos políticos militares de 31 de março e 1º de abril que culminaram com o afastamento do presidente da República vieram, inegavelmente, desafogar a nação. Porque estávamos vivendo num clima pesado de provocações, de ameaças, de agitações que nos roubavam o mínimo de tranquilidade necessária para poder trabalhar e progredir. Necessária inclusive para a pregação do Evangelho… Agora as coisas mudaram. Era tempo. (…) Esse clima artificial, (…) estava sendo mantido por uma desabusada minoria (…). Referimo-nos à minoria comunista. (…) O presidente que estava fazendo um jogo extremamente perigoso foi afastado. A democracia já não está mais ameaçada. (…) É lamentável assinalar que até mesmo em algumas igrejas houve infiltração. Moços cheios de ideal e com a impaciência natural da mocidade julgaram que apoiando os totalitários vermelhos conseguiriam reformas salutares para o Brasil… (…) Estamos certos, por exemplo, de que Deus atendeu às orações incessantes de seu povo pela pátria. (…) Um milagre de Deus, atendendo as orações de seu povo. (…) Os crentes têm que viver à altura dos acontecimentos atuais. (…) Não será agora que se vai estabelecer censura e limitação da liberdade no Brasil. Mas que tal hora nunca chegue.”

Os metodistas (IMB) se destacam por um total silêncio sobre o golpe em seu jornal oficial, o Expositor Cristão. Nessa denominação, os ânimos se acirraram a partir de conflitos gerados no seio da Faculdade de Teologia de Rudge Ramos. O movimento estudantil que se espalhava por todo o mundo, influenciou também os estudantes desta instituição em 1968. Uma profunda crise se instalou envolvendo os alunos, docentes, corpo diretivo da escola e direção nacional da igreja. O resultado foi o fechamento da Faculdade neste ano e a expulsão de vários estudantes. Como consequência da virada conservadora, antigas lideranças engajadas numa proposta de ética social e política afastaram-se do movimento ecumênico e se adequaram aos novos tempos. Este também é o momento em que o autoritarismo eclesiástico nos arraiais protestantes se mostra mais vigoroso. Na IMB, este autoritarismo foi encarnado, simbolicamente nas figuras do Bispo Isaías Fernandes Sucasas e de seu irmão o Rev. José Sucasas Júnior. O caso desses dois ministros metodistas é bastante surpreendente dada a documentação que comprova a evolução dos dois na relação com o regime militar que vai do apoio à participação concreta no mesmo. Em seu diário, o Bispo Sucasas anotou em 25 de março de 1969: “Então eu e o Rev. Sucasas fomos até o quartel do DOPS. Lá estivemos das 3:30 às 4:30 da tarde. Conseguimos o que queríamos, de maneira que recebemos o documento que nos habilita aos serviços secretos desta organização nacional da alta polícia do Brasil.”

Cabe ressaltar que, paralelamente a este retrocesso em curso no seio dessas denominações, a Confederação Evangélica do Brasil enfrentava impasses semelhantes. Em 19 de maio de 1964, a Diretoria da CEB despediu o Rev. Francisco de Paula Pereira de Souza, secretário do Departamento de Mocidade; O Rev. Domício Pereira de Mattos, secretário do Departamento de Educação Religiosa; o Dr. Jeter Pereira Ramalho, secretário do Departamento de Ação Social; e o Sr. Waldo Lenz Cesar, secretário do Setor de Responsabilidade Social da Igreja. Os motivos alegados foram, dentre outros, “esquerdismo”, “rebeldia” e “fonte de embaraço diante do governo”.

A fragmentação do protestantismo brasileiro no pós-64 decorreu por via de vários fatores: a reação conservadora da sociedade brasileira às reformas de base do governo Goulart, sendo essa reação acompanhada por boa parte dos evangélicos; o recrudescimento do conservadorismo intrínseco ao próprio ethos protestante de origem norte-americana; a crescente influência das denominações pentecostais, notoriamente proselitistas e conservadoras; o desembarque no país da controvérsia fundamentalista que agitava as igrejas estadunidenses desde o início do século XX. Concomitantemente a esses movimentos, ou em consequência deles, aportaram no país organizações paraeclesiásticas vindas dos Estados Unidos, focadas principalmente na educação cristã, no ensino teológico e na produção de literatura de viés conservador/fundamentalista, que exerceriam profunda influência sobre as igrejas nas décadas seguintes. Paralelamente a essas organizações, chegou também ao Brasil o fenômeno da Igreja Eletrônica americana, outro canal de influência fundamentalista que inspirou, especialmente, mas não somente, líderes pentecostais brasileiros a erguerem seus próprios impérios midiáticos. Ainda na década de 1960, uma das primeiras consequências dessas influências foi o cisma observado em todas as denominações históricas do protestantismo brasileiro, no influxo do movimento de renovação carismática.

Esse cenário abortou, em certo sentido, a construção do protestantismo nacional comprometido com uma visão integral da fé cristã. A elaboração de uma teologia social e política estava em curso desde que o reverendo presbiteriano Erasmo Braga retornara do Congresso do Panamá, em 1916, unindo esforços com outros pastores e missionários, sobretudo presbiterianos e metodistas. O decênio de 1950 foi especialmente prolífico na elaboração de um pensamento político protestante, notadamente em função da influência exercida pelo missionário presbiteriano estadunidense Richard Shaull e pela atuação de líderes protestantes ligados à Confederação Evangélica do Brasil. O desmonte dessa teologia política que estava em curso coincide, portanto, com o golpe civil-militar e com a atuação do governo norte-americano nos bastidores do mundo social-político do país, refletindo, como vimos, o contexto da Guerra Fria. Seguiram-se os expurgos, as perseguições, as prisões, as torturas, a morte e o exílio desses protestantes progressistas de outrora.

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O professor José Bittencourt Filho afirmou que “a década de 1970 pode ser considerada aquela na qual foram dispendidos grandes esforços no sentido de apagar a memória de quase duas décadas de experiência na linha da ‘contextualização’. O Protestantismo Histórico nesse período sofreu uma ‘cirurgia plástica’ que o tornaria irreconhecível, quando comparado com as vivências e projetos desenvolvidos desde sua implantação, em meados do século XIX, até meados do século XX.”

Não, o que você leu acima não está com as datas trocadas. Sim, as acusações de esquerdismo e comunismo como justificação para perseguições denominacionais e apoio incondicional a um governo visto como resposta de Deus às orações dos fiéis se refere a acontecimentos em curso na década de 1960. Do flerte, as denominações evangélicas em geral, passaram para o concubinato. Esse concubinato se consumou, em definitivo, por ocasião da Assembleia Constituinte de 1988. Aqueles que outrora pregavam que os crentes não deveriam se envolver com as questões políticas do país, embarcavam agora alegremente no trem da política nacional. Conforme atestou Paul Freston, entre 1987 e 1992, 49 evangélicos foram eleitos para a câmera federal e, pela primeira vez, os representantes pentecostais se tornaram maioria (55%). A ideia agora era, irmão vota em irmão. O resto é história. Os escândalos se avolumaram. Troca de votos por concessão de canais de rádio e TV, foi a traquinagem predileta. Além disso, a Confederação Evangélica do Brasil foi ressuscitada por deputados pentecostais com o objetivo de auferir verbas federais. Os milhões recebidos na época tiveram destino incerto. Uma pérola da postura política desses deputados que marcaria o perfil da maioria dos políticos evangélicos daí por diante, com algumas honrosas exceções, foi a declaração do então deputado assembleiano João de Deus Antunes em resposta às denúncias d’O Jornal do Brasil acerca das verbas auferidas por esta nova CEB: “Eu sou mesmo fisiologista. Mas quem não é? Todo mundo que vai para o Congresso Nacional já sabe que é para fazer fisiologismo. Só que eu faço com o moral elevado”.

Políticos evangélicos estiveram envolvidos em praticamente todos os grandes escândalos políticos ocorridos nos últimos 30 anos: a era Collor, os anões do orçamento, o escândalo dos sanguessugas (ou máfia das ambulâncias), o mensalão, o mensalinho, o petrolão etc, isso sem contar as balbúrdias regionais. Daí, evoluímos para um projeto de poder. Um projeto de construção de uma nação evangélica, fundamentada nos valores dos evangélicos tradicionais. A criação de uma espécie de cristandade gospel. A considerar os eventos pregressos, certamente, estamos diante da crônica de uma morte anunciada. A questão é, morte de quem?


Referências

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SCHIMDT, Daniel Augusto. Protestantismo e Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: Editora Reflexão, 2014.
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SOUZA, Silas Luiz de. Pensamento Social e Político no Protestantismo Brasileiro. São Paulo: Mackenzie, 2005.
SYLVESTRE, Josué. Irmão Vota em Irmão: os evangélicos, a constituinte e a Bíblia. Brasília: Editora Pergaminho, 1986.