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Entre o púlpito e o partido – Evangélicos e as eleições municipais

Entre o púlpito e o partido – Evangélicos e as eleições municipais

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Religião e Política

Essa relação, ou a tentativa de relação, não é nova. Não é nova mesmo! Durante o período que ministrava aulas formais nos cursos de teologia, sempre desafiava meus alunos (as) com a seguinte tese: “não há na história nenhuma religião que tenha se estabelecido sem trilhar as estradas pavimentadas de um estado”. Tomem os conceitos “história” e “estado” em sentido amplo. Pois bem. Deixo com vocês, leitores (as), também esse desafio.  Há?

Defendo a tese acima até hoje. Toda religião sempre andou de mãos dadas com o estado. Em qualquer país do mundo. Em qualquer cultura. Em qualquer tempo. Desde que a humanidade começou a se estabelecer em clãs, depois tribos. Depois em pequenas aglomerações e depois em cidades etc., sempre houve um líder político, governante: pai, patriarca, guerreiro, rei etc. E um líder religioso: feiticeiro, pajé, sacerdote etc.

Vou ajudá-los (as) a contestar minha tese. Só há uma exceção. O antigo Israel. Até o momento que resolveram transformar a anfictiônia de Israel numa monarquia absolutista. Nesse caso a religião tornou-se o próprio estado.

A relação sempre foi tensa. Manipulação dos dois lados. Guerras por interesses nem sempre confessados. Agendas ocultas. Assassinatos. Corrupção. O antigo testamento está cheio de histórias sobre essa relação e o novo testamento registra a história da nascente igreja cristã e a própria história de Jesus Cristo entre esses dois pilares: a religião e o estado. A Igreja cristã nasce à sombra do templo de Jerusalém e sob o domínio do Império Romano. A Palestina estava dominada por um império político militar e pela família herodiana que representava, de maneira ilegal, a religião da Israel.

O próprio Jesus Cristo foi muitas vezes questionado sobre essa relação. Morre crucificado sob uma acusação político religiosa inscrita no madeiro que serviu para a sua tortura: JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS. Segundo o texto joanino essa frase estava escrita em hebraico, latim e grego. E o célebre diálogo entre Ele e os fariseus, com a ajuda dos herodianos, sobre o dever de pagar os tributos a ao imperador romano, e a frase que atravessou as fronteiras bíblicas (registrada nos evangelhos sinóticos) e religiosas e hoje pertence ao senso comum: DAI A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR E A DEUS O QUE É DE DEUS.”

O novo testamento também nos autoriza a usarmos a relação religião e política para o nosso próprio bem, sempre e quando estivermos dentro dos nossos direitos, e em especial aqueles garantidos pelo estado. É o caso do apóstolo Paulo. Ameaçado de morte por parte dos seguidores judeus ele apela para a proteção do imperador romano, uma vez que era também cidadão do império, e como tal merecia proteção e direitos especiais de julgamento naquilo em que era acusado. Essa história está registrada no relato bíblico do livro de Atos dos Apóstolos.

Fiz esse pequeno relato para mostrar que hoje no Brasil não estamos fazendo nada além do que já foi feito na história, e, em especial, na história bíblica que tanto prezamos.

Política e Religião

No ano 325 depois da era comum (d.e.C.) houve a realização de um concílio da igreja cristã que ficou conhecido como Concílio de Nicéia (devido ao fato de ter se reunido na cidade de Nicéia). Foi uma reunião importante, por vários motivos que não preciso mencionar aqui, mas alguns outros acho importante mencionar. O Imperador Constantino, também conhecido como Constantino o Grande (nascimento 27/02/271 – morte 22/05/337 e reinado 25/07/306 a 22/05/337) foi quem mandou convocar o concílio (hoje em dia os imperadores também convocam jejuns). Historiadores também afirmam que ele mesmo, o imperador, presidiu várias sessões, porém não votou. Constantino via o seu império se enfraquecer por lutas intestinas, corrupção, enfraquecimento militar, enfraquecimento de liderança, e sentia que o cristianismo poderia ser uma das maiores forças de oposição ao seu projeto de poder. Ele forjou uma ação estratégica que ficou conhecida como a política dos três Is. UM IMPÉRIO, UM IMPERADOR, UMA IGREJA. Ele pagou as viagens dos bispos e seus acompanhantes, fornecendo o transporte imperial, ofereceu as propriedades do império para hospedar o concílio e seus participantes e deu a ordem: APROVEM UM ÚNICO CREDO QUE UNA A IGREJA. A aprovaram o famoso Credo Niceno. Historiadores afirmam que naquela época a Igreja Cristã contava com, aproximadamente, 1800 bispos, juntando o oriente e o ocidente. A participação no concílio não passou de 300 bispos, e com a proeminência dos bispos orientais.

É a partir da relação do Imperador Constantino com a Igreja Cristã que se forjou o conceito de cristandade. Explicando de maneira bem simples, seria a união da igreja com o Estado. Mas com o compromisso da igreja com as elites governantes que dominam o povo através da detenção de riquezas e meios de produção, meios de comunicação etc. Começou no século IV da era comum e se mantém até hoje, em certo sentido.

A relação citada acima foi o fundamento para o estabelecimento das nações que se firmaram no que hoje chamamos de Europa, e isso se deu através da aliança entre o trono e o altar, de igual forma na configuração dos estados absolutos do século XVI. Todo esse grande projeto serviu como base teológica, social, política e econômica na expansão colonial europeia nos séculos XIV, XV e XVI. Países como Portugal e Espanha (católicos) e Inglaterra, Alemanha e Holanda (protestantes) enriqueceram-se saqueando e roubando os países colonizados da Ásia, África e América Latina. E o fizeram em nome de Deus e da fé cristã. Esse foi o grande projeto de cristandade colonial.

Essa relação trono e altar vai ser questionada no século XVIII com advento do Iluminismo, cujo epicentro será a França, mas que se espalhou por toda a Europa, e cujo ápice político será a Revolução Francesa (1789-1799). É clássico o lema iluminista: DERRUBAR OS TRONOS E ABALAR OS ALTARES.

É de inspiração iluminista a famosa separação ente a Igreja e o Estado, dito de outra forma entre a Religião e a Política. Essa separação deveria ser garantida através de pactos sociais, nos quais as novas nações, agora iluminadas pela razão, deveriam se estabelecer não mais através de reis soberanos escolhidos por Deus, mas através de cartas magnas que seriam as constituições dessas novas nações. Países dirigidos pelo equilíbrio dos três poderes: LELIGISLATIVO – EXECUTIVO – JUDICIÁRIO. Receberam a salutar influência de filósofos e contratualistas cujas teses faziam valer desde o século XVI.  O que contaria era o espírito das leis. A equivalência entre os poderes. A razão sóbria, lúcida, formal, faria justiça e o governo seria algo triunfal. Estavam lançadas as bases para as novas repúblicas democráticas dos tempos modernos.

Lamentavelmente nem tudo foi assim como pensavam os iluministas. Em nosso continente até o século passado países tinham religiões oficiais. Países da Ásia, Oriente Médio, e quejandos nunca passaram pela onda iluminista e até hoje sequer possuem uma constituição secularizada, a constituição de muitos países ainda é hoje o manual religioso que serve para orientar seus fiéis.

O fato é que a tão propalada tese defendida pelo Iluminismo encontrou chão em muitas nações, mas não em todas. O Brasil da era Bolsonaro encarna o que de pior pode existir nessa relação. Políticos sem escrúpulos, corruptos, ladrões, fascistas, interesseiros, chefes de bandos de milicianos, com ódio aos pobres e aos trabalhadores, desejando que a maioria da população continue vivendo à margem da sociedade, sem inclusão e direito no que tange a questões como educação, saúde, moradia, trabalho, etc. Encontraram o lastro religioso para legitimar suas propostas através de segmentos evangélicos, católicos, espíritas, judeus, etc. que nutrem os mesmos desejos, porque no fundo o que aspiram são as mesmas coisas: em síntese um país para os mais ricos, legitimado por uma moral religiosa e práticas de uma espiritualidade alienante e maléfica (vide o dia nacional de jejum) que aplaque a consciência culpada.

Política partidária e Religião

Os evangélicos descobriram a sua força político partidária no Brasil quando da convocação da assembleia constituinte em 1988. Eles superaram a máxima:  CRENTE NÃO SE EVOLVE EM POLÍTICA pelo novo lema: IRMÃO VOTA EM IRMÃO.

Sociólogos da religião afirmam que todos os presidentes eleitos no Brasil no período da democratização, o foram, com a ajuda dos votos de evangélicos.  E em alguns casos o voto evangélico foi decisivo para a eleição. E no último pleito que elegeu o atual presidente isso não só ficou claro, como foi bandeira de campanha.

Essa é a grande questão: Como os evangélicos participam da política partidária? Não é uma resposta fácil. Talvez seja impossível. Porque num primeiro momento os evangélicos refletem a sociedade brasileira na relação com os partidos políticos e em segundo porque o “mundo evangélico” é extremamente multifacetado. Alia-se aos fatores acima o fato de que nunca a igreja evangélica se preocupou em formar cristãos cidadãos, com responsabilidade e padrões fundamentados numa ética social. A mentalidade média dos evangélicos é proselitista, sectária, corporativa, alienante e moralista.

Constata-se então que os religiosos, e os evangélicos de maneira particular, participam da vida política do país, visando não a transformação social e a busca de uma sociedade realmente justa e igualitária. Eles desejam, bem no fundo do coração e de suas orações, é a eclesiastização do país. Desejam que a sociedade brasileira se transforme numa grande igreja. O presidente seria o pastor ou padre ou bispo, os ministros seriam os diáconos, presbíteros ou ministros da eucaristia, etc. Estamos quase chegando lá.

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Religião sem Política e Política sem Religião

Analisar a participação dos evangélicos na política brasileira é fazer uma triste constatação. Com raras exceções os evangélicos nunca se prepararam para participar da vida política do Brasil. Ou seja, a igreja evangélica nunca se preocupou em formar seus fiéis para o exercício de uma cidadania plena, cujo objetivo maior seria servir ao país e não aos interesses particulares de grupelhos que só pesam em si mesmos. Constatamos isso pelo fato de que os eleitos, ou que se aventuram na vida pública, quase todos, são pastores, e não políticos preparados para exercer o cargo. O Rio de Janeiro tem um prefeito que é bispo e não prefeito. Essa postura enseja o fato de que você tem religiosos que participam da vida política de um país, mas de fato eles não tem política, ou seja, religiosos sem política. E o contrário também é verdade. Temos projetos políticos nefastos, que servem a interesses de corporações, muito nacionais, empresários, capitalismo, etc. E no meu entender os valores religiosos, tais como, amor ao próximo, ética social, etc. ensejaria a possibilidade de uma administração pública voltada para os menos favorecidos. Melhor e mais efetiva distribuição de renda. Atenção de fato para com os grandes problemas sociais do Brasil como moradia, trabalho, saúde, educação, para citar alguns. E talvez poderíamos ter políticos que com uma verdadeira formação cristã, não essa que vemos hoje, seriam menos corruptos. Hoje não há diferença entre os políticos evangélicos e quem não e evangélico nesse quesito da corrupção (com rara exceção). Os evangélicos hoje estão mais preocupados com pinturas de pessoas nuas no saguão do congresso que com os desvios financeiros que assolam nosso país. A frente de evangélicos no congresso está mais preocupada com a cura gay, são machistas, misóginos (em sua maioria). Preocupam-se com aspectos de uma chamada “moralidade evangélica” que não passa de hipocrisia e falsa moral, mas aceitam que as pessoas tenham porte de arma, fazem sinal de arma com as mãos. Apoiam descaradamente os projetos de um governo fascista, cuja bandeira principal é defender a tortura. É isso que chamo de política sem religião. Porque essa política é um projeto que não considera os valores mínimos verdadeiros do que poderíamos chamar de uma ética social evangélica.

Eleições municipais e a missão da Igreja Evangélica Brasileira

A eleição de Jair Bolsonaro para presidente é um fenômeno que merece análises dos mais variados matizes. Tratou-se e trata-se de algo muito especial. Mas eu quero, sem fazer análise exaustiva, apenas mencionar a relação do presidente eleito com os evangélicos. Pensando, de maneira especial, nos pressupostos estabelecidos durante a vida passada de Jair Bolsonaro, na história de participação político partidária do grupo de evangélicos, majoritário, e sua atuação no Congresso Nacional, nas bandeiras de campanha, nas ações de líderes evangélicos de igrejas neopentecostais, dentro outros. Bolsonaro não possuía qualidade alguma para ser apoiado por evangélicos. Há não ser que os evangélicos também não possuíssem qualidade alguma para participar da política partidária (pelo menos esse grupo que o apoiou). É essa a lógica que não tem equação!

O fato acima descrito acabou por convencer os partidos políticos que eles devem sim ter uma relação com as igrejas evangélicas. Partidos de todas as ideologias. De todos os programas. De todas as propostas. Até mesmo aqueles partidos que são mais religiosos ou eclesiais do que acham que são, e que deveriam assumir de maneira transparente perante a sociedade, penso especificamente no PT.

Nas eleições para presidente do ano de 2002, quando Lula foi eleito, espalhou-se pelo Brasil os comitês evangélicos Pro-Lula. O PT é um partido que nunca negou, mas nunca assumiu, como uma das vertentes de sua fundação, a vertente religiosa. O PT sempre teve influência das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica Romana e sua consequente elaboração teológica encontrada nos pressupostos teológicos e pastorais da Teologia da Libertação. O que não estava muito claro nessa trajetória era a participação do evangélicos.

Durante a campanha, na eleição e no período pós eleição de Bolsonaro, parece, que os evangélicos receberam uma iluminação especial: agora vale tudo. E os partidos políticos também. Todos eles estão em busca da formação do seu comitê evangélico do partido tal. Tenho informação de pelo menos três: PT, PSOL e PDT.

Faz-necessário ressaltar que não há como estabelecer apoio monolítico e esse ou aquele político, ou a apoio a esse ou aquele partido. A igreja evangélica brasileira é multifacetada, em todos os sentidos, e fica mais claro e aparente o apoio de grupos que detém mais poder nos meios de comunicação, que é o caso dos segmentos do neopentecostalismo, mas não só. É preciso deixar claro que setores das igrejas evangélicas históricas, e também do catolicismo apoiaram Jair Bolsonaro, fizeram campanha e votaram nele.

Não sei se esse é um bom caminho para que os evangélicos construam a sua missão e participação político partidária, falando de outra maneira não sei se os evangélicos conseguirão mostrar a sua face cidadã através de uma salutar teologia pública, atrelando-se a esses programas partidários e no caso específico, eleitoreiros. Mas é o que temos para enfrentar. O fenômeno está posto. Creio que posso nomear alguns desafios.

Desafios para a participação político partidária dos evangélicos:

  1. Diálogo interno com os partidos. Como estabelecer essa prática evangélica de acordo com os estatutos do partido? Como trabalhar internamente com os partidos e com suas idiossincrasias?
  2. Diálogo com outros grupos religiosos. Os evangélicos, em sua maioria, são sectários no que tange a possuir a verdade de (sobre) Deus. São também proselitistas. Como superar essa prática e admitir que precisam trabalhar juntos?
  3.  O diálogo inter-religioso. A colocação do item 2 nos leva a outra consideração. E se de repente os partidos resolvem criar grupos religiosos de articulação político partidária? Comitês espíritas, judaicos, islâmicos, religiões de matriz africana. Como será? Esse é outro desafio porque os evangélicos, em linha geral, não participam do diálogo inter-religioso. Aliás a maioria nem sabe o que é isso.
  4. Ação ecumênica. Os itens acima 2 e 3 nos levam necessariamente à necessidade de entender que essa prática político religiosa partidária terá que ser uma prática ecumênica. E aqui temos um outro grande entrave. O ecumenismo é algo demoníaco para a maioria das igrejas evangélicas.
  5. Ação com as igrejas. Esse desafio é sério e complicado. As igrejas de maneira geral, são oficialmente, avessas à participação política partidária. Digo oficialmente porque extra oficialmente fazem as maiores barbaridades, conchavos, alianças espúrias etc. Prevejo que essa ação será, como sempre, de grupos marginais em suas igrejas ou denominações.
  6. Entendimento de que o partido político não é igreja e que a igreja não é partido político. Nesse caso não se trata de articular pensamentos maniqueístas, mas respeitar as diferenças e as diferentes áreas de ação.
  7. A construção de um projeto permanente de formação cujo tema seja a relação entre a fé e a ação política dos evangélicos.

Finalizando

Esse meu artigo não deve servir de desânimo e nem sou contrário à participação política, também partidária de evangélicos ou religiosos de maneira geral. Não. Sou a favor e eu mesmo sou militante nessa área. O que desejo é que façamos uma reflexão séria sobre essa nossa ação. Que tentemos encarar esses desafios e outros que virão com um forte compromisso de luta em favor da imensa maioria da população brasileira que padece e sofre com gigantescas carências sociais. A minha militância política se dá porque antes de tudo sou pastor em igrejas que ficam em bairros periféricos do Rio de Janeiro (e periferia aqui não é geográfica e sim social) há 25 anos. Creio que essa nossa participação na política do Brasil precisa se dar através dos partidos políticos e que, se assim o fizermos, de maneira consequente, comprometida com os valores do Reino de Deus, faremos um bom trabalho e estaremos cumprindo a nossa missão como fiéis cristãos que seguimos as orientações do mestre.