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Teologia queer: O necessário indecentamento da teologia

Teologia queer: O necessário indecentamento da teologia

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A Teologia da Libertação nasceu da vida cotidiana das pessoas e comunidades em luta pela sobrevivência e enfrentamento de sistemas de morte. E não há nada mais atual do que isso. Enquanto discurso eclesial e acadêmico, foi combatida tanto quanto os movimentos sociais dos quais emergiu e os quais inspirou durante décadas. Uma de suas definições clássicas afirma que é a própria “teologia em movimento”. Por isso mesmo, ao longo do tempo, foi se sofisticando e se diversificando. Tornou-se parte do cânon clássico dos estudos teológicos e, não poucas vezes, se deixou seduzir pelos encantamentos do reconhecimento público, ainda que fosse por ser considerada quase folclórica e exótica. Mas também animou os sonhos mais loucos de outro mundo possível tanto nos grupos e movimentos de base quanto no campo político e no campo da reflexão teológica (na academia ou na igreja) – muitas vezes, inclusive, contra os desejos mais reprimidos daqueles tidos como os grandes Pais dessa perspectiva teológica.

As teologias queer, de caráter indecente, possivelmente sejam as que levaram mais longe esses sonhos vistos por muitos como apenas delírios de uma juventude transviada fora de lugar. As Grandes Pau-tas consideradas Sérias e Urgentes continuam dominando o efetivamente pensável nos altos círculos da Teologia Global, fechando um olho para o quarto ao lado, onde as p(a)utas menores oferecem alguma diversão sempre que não perturbem a ordem decente do salão principal. Afinal, é só na canção que não há pecado do lado de baixo do equador. A antropologia negativa ou o ufanismo glorioso seguem se sobrepondo à realidade concreta das pessoas e comunidades. A promessa da transversalização e da intersexyonalidade estão longe de se cumprir.

Na América Latina, essas teologias não necessariamente levam esse nome. É inegável que um tanto daquilo que poderíamos chamar de uma teologia indecente (ou queer) foi produzida no âmbito das teologias feministas e ecofeministas, das teologias negras, indígenas, campesinas e de outras adjetivações – muitas vezes usadas para não se dizer Teologia da Libertação. Uma das minhas obras preferidas continua sendo [Re]leituras de Frida Kahlo – Por uma ética estética da diversidade machucada, que reúne textos de um grupo amplo e diverso de teólogas e teólogos fazendo teologia sem vergonha. É uma obra virtualmente desconhecida no campo teológico latino-americano (e global), mas que apresenta alguns desses loucos sonhos construídos em diálogo com o que chamariam de “surrealismo”, na tentativa de rotular o estilo da artista mexicana e de nossas teologias. Mas, mesmo as teologias feministas e ecofeministas, as teologias negras, indígenas e campesinas apenas passaram no crivo da Teologia da Libertação na medida em que se adequaram às normas da ordem e da decência – acadêmica, religiosa, política e moral de modo geral.

A emergência do conceito de colonialidade/decolonialidade e dos estudos decoloniais (e o diálogo com os estudos pós-coloniais) representaram, recentemente, uma nova janela para articular as questões pendentes da Teologia da Libertação. Especialmente o feminismo decolonial (Rita Segato) conseguiu articular capitalismo, racismo e patriarcado de maneira a evidenciar como esses sistemas se retroalimentam na produção e sustentação dos impérios no passado e na contemporaneidade. Mas pouco se vê discussões sobre branquitude (e raça e etnia continuam sendo responsabilidade de povos, culturas e religiões marcadas como Outro nos estudos eurocêntricos sobre alteridade) e o patriarcado continua sendo o problema de algumas mulheres insistentes, sendo que nenhum teólogo sério seria capaz de discuti-lo teórica e conceitualmente para além de afirmar a necessária igualdade entre homens e mulheres (respeitando suas diferenças ). Apesar disso, os próprios conceitos de colonialidade/decolonialidade só podem ser pensados na luta travada pelos movimentos dos quais emergem essas reflexões. E há quem reconheça.

Falar em teologia queer, então, é falar desse constante desnudamento necessário no interior da própria Teologia da Libertação. É evidenciar constantemente de que forma as questões econômicas, políticas e religiosas se materializam nos corpos sexuados e generificados. É perceber (utilizando os elementos identificados por Joan Scott na categoria de gênero) como esse processo se dá por meio da linguagem e dos símbolos, de determinados conceitos normativos que fundamentam as instituições que ordenam nossas vidas e impregnam nossas subjetividades ao ponto de ser difícil – às vezes impossível – descolar esses elementos subjetivos e de uma racionalidade própria das estruturas materiais que sustentam diversas formas de discriminação, violência e injustiça praticadas contra nós mesmas.

Assim como em todas as teologias que pretendem dar voz a quem foi subalternizada, a suspeita é um elemento fundamental dessa perspectiva. Assim como um cachorro que, picado por uma cobra, tem medo de linguiça, essas teologias têm motivos reais para suspeitar de tudo que rasteja e se assemelha àquilo que ameaça a existência. Há razões para temer a própria sorte e é esse temor que tanto pode servir de proteção quanto de força produtiva. Na teologia queer fala-se de uma suspeita sexual, como aquela sensação física e corporal que reflete os traumas do passado, mas serve de alerta para as violências presentes e ousa imaginar um mundo em que a diversidade sexual e de gênero não sejam apenas formas de dissidência, mas o horizonte utópico de relações recriadas. E é aí que também reside o seu potencial de construção, seguindo o movimento criativo do tesão que impulsiona para fora de si mesma e se aventura no desconhecido – por prazer ou por necessidade.

Assim, também, como na opção preferencial pelas pessoas empobrecidas na teologia da libertação clássica, assume-se o ponto de partida da dissidência sexual como lugar de encontro da ordem hetero-patriarcal-capitalista-racista em sua face mais cruel. Aí não são só as experiências de gays e lésbicas e outras expressões e identidades sexuais e de gênero mais ou menos assimiladas pela sigla LGBTI+ (afinal, muitos grupos pretensamente representados nessa sigla seguem demandando visibilidade e participação efetiva na construção de conhecimentos e tomada de decisões) que contam, mas também são importantes as vendedoras de limões sem calcinha (Marcella Althaus-Reid) e as práticas e experiências de quem vive às margens do sistema político e econômico e suas histórias sexuais indecentes. Aquelas experiências englobadas na sigla LGBTI+ talvez sejam a parte mais visível dessa indecência e, por isso, a mais combatida nos currículos, doutrinas e leis. Mas a indecência está na experiência de todas as pessoas que não se curvam aos ditames do “sexo correto” e produzem conhecimentos que escapam (e, por isso, ameaçam) a ordem decente dos sistemas injustos e violentos.

Marcella Althaus-Reid possivelmente seja a teóloga da nossa geração que melhor tenha articulado todas essas questões e é dela que se empresta a perspectiva do indecentamento. Também, ela buscou desnudar os pressupostos heterossexuais da Teologia da Libertação e as fixações heterossexuais de algumas teologias feministas, aproximando essas perspectivas dos estudos pós-coloniais e dos estudos queer. Além disso, ela segue sendo desconhecida nos círculos teológicos latino-americanos – a não ser no quartinho, aquele do lado debaixo do equador. Não apenas a sua crítica cortante, mas também as suas proposições para uma teologia sexualmente honesta são, quando muito, consideradas “avançadas demais” para “o povo” e para “a igreja”. Mal sabem eles que, dessa teologia indecente, o povo está cheio, perdoando os pudores teológicos mais liberacionistas em troca de um prato de comida, de um smartphone ou de uma vaga no hospital, com uma troca de olhares sacana e um meio sorriso no lábio. E quem poderia recriminá-lo.

A escrita das teologias queer, muitas vezes, subverte a lógica da gramática e da literatura e se volve poesia. Suas fontes e suas inspirações não respeitam os cânones clássicos e, ao mesmo tempo, remetem ao mais original na teologia, tornando-se prosa, pintura, dança e performance. Também, muitas vezes, gasta muita energia tentando explicar para olhos arregalados e bocas entreabertas o óbvio que tanto se quer negar e esconder nos armários e cristaleiras. E não são permanentes. Se reinventam no movimento da vida e das lutas por libertação.

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Nos tempos atuais, em que há um recrudescimento dos movimentos políticos, religiosos e econômicos conservadores e fundamentalistas, não deveria surpreender ninguém que uma campanha, como aquela, que se vale da expressão “ideologia de gênero” (usurpada e expropriada dos movimentos e estudos feministas e da diversidade sexual e de gênero), é a principal expressão da tentativa de reordenamento social nos padrões capitalistas, racistas e heteropatriarcais. A Teologia da Libertação, vivida nas comunidades de base ou articulada nos círculos acadêmicos, não conseguiu articular, entre muitas outras coisas, a necessária indecência que daria corpo a um projeto efetivo de libertação. Ou, então, como prefere Marcella Althaus-Reid, perdeu os seus resquícios de indecência inicial.

Qualquer teologia da libertação e a teologia queer ou indecente em particular precisa dialogar, por exemplo, com os movimentos de juventude contemporâneos reunidos em coletivos e ocupações e sua subversão das normas de amar, que misturam a discussão sobre gênero e sexualidade com pautas pendentes, como o aborto, o genocídio da juventude negra, a exploração do capitalismo neoliberal e a instrumentalização da política pela religião – ou da religião pela política. Precisa, também, ser capaz de articular todas essas questões com a exploração da terra, o uso indiscriminado de agrotóxicos, o extermínio de povos originários, comunidades quilombolas, povos ribeirinhos e das florestas, e tantas outras questões, como expressão de um ato sexual violento e dominador justificado pela ordem decente do mercado que impõe o crescimento e o aumento de riquezas (concentradas e não distribuídas) como ideal civilizador – apesar de todos os gritos e denúncias – branco, heterossexual e burguês. A indecência última é fazer tudo isso junto e misturado em meio aos conflitos históricos e a luta pela sobrevivência num mundo que já não dá mais conta do abuso. E conseguir gozar no meio disso tudo.


Referências

ALTHAUS-REID, Marcella. Indecent Theology. London: Routledge, 2001.
EGGERT, Edla (org.). [Re]leituras de Frida Kahlo. Por uma ética estética da diversidade machucada. Santa Cruz: EDUNISC, 2008.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, v. 16, n. 2 (5-22), jul/dez 1990. Disponível em: seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
SEGATO, Rita. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013.