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Convite de diálogo para um caminho comum: possibilidades de diálogos e interações entre as Teologias da Libertação e as Ciências da Religião

Convite de diálogo para um caminho comum: possibilidades de diálogos e interações entre as Teologias da Libertação e as Ciências da Religião

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Os parceiros do diálogo

Sandson: Nos posicionar no diálogo é muito importante. Aqui me sinto como um filho diante do pai. Marcelo é um pouco isso para mim. É neste sentido que me coloco nesse diálogo. Falando de minha trajetória, venho do interior de Minas, de um meio de gente simples, mas conservadora. Teologia da Libertação, para mim, já foi coisa do demônio para dividir a Igreja. No meu itinerário acadêmico é que fui me aproximando dessa perspectiva teológica, a ponto de hoje me reconhecer como um teólogo em vias de libertação de sua teologia, como poderão ver no diálogo, mas sou também cientista da religião. Minha aproximação com as Ciências da Religião veio por meio do diálogo, que se transformou em amizade, com o prof. Flávio Senra. A partir daí, esses dois conhecimentos dialogam e, por vezes, se tensionam em mim. Essa possibilidade de dialogar com o Marcelo me fez aprender muito e entender o aspecto do compromisso social que devo ter como cientista. Bem, o resultado de nossa conversa vem a seguir.

Marcelo: Entro neste diálogo como parceiro e com a convicção interior de que minha geração tem muito a aprender com a geração do Sandson. Sou monge beneditino,há 52 anos, e tenho vivido, desde o início deste tempo, como monge itinerante, peregrino, cuja casa principal é o mundo dos empobrecidos, onde tenho o meu coração para aprender que é possível ter o coração fora do corpo. Estudei a Bíblia,me considero teólogo das bases e faço teologia no diálogo com movimentos populares, pastorais sociais e juventudes. Para mim, aos 75, o desafio permanente é o de nunca me acomodar e sempre me abrir ao novo do Espírito no mundo.

Sou discípulo de profetas e profetizas, como Helder Câmara, Tomás Balduíno e Mãe Stella de Oxossi, só para citar três que já partiram. Eram pessoas que, quanto mais envelheciam, mais abertos e mais capazes de renovação se tornavam. Colocar-me nesta aprendizagem e neste diálogo com você, Sandson, é um bom instrumento para isso.

Um chamado para frente: proposição de pés no chão

Marcelo:  Se a situação histórica de mais de dois terços da humanidade, com seus milhões de mortos de fome e desnutrição, não se converte, hoje, em ponto de partida de toda teologia (e podemos dizer das ciências e da educação), esse tipo de conhecimento nunca poderá aplicar seus temas fundamentais à história concreta. As perguntas e pesquisas feitas na Academia continuarão a ter aparência de reais, mas jamais serão verdadeiramente humanas. Por isso, é necessário salvar a pesquisa, e podemos afirmar com mais precisão: é verdadeiramente urgente salvar a Ciência(s) da(s) Religião(ões) e também a Teologia cristã do seu cinismo, porque ninguém pode negar que, diante dos problemas do mundo atual, muitas pesquisas universitárias e muitos livros de ciência e mesmo de Teologia não passam de um exercício cruel de cinismo e de indiferença com a vida”.

Retomo essa afirmação que, de forma mais direta em relação à teologia, Hugo Assman, saudoso pioneiro da Teologia da Libertação, afirmou em um Congresso Teológico em Montevideo, no início dos anos 80 (Cf. Assman e Mo Sung, 2009, p. 12). O que fiz foi apenas ampliar a afirmação e aplica-la às Ciências e à Educação.

Há 40 anos, essa responsabilidade ética já era aguda, agora, se tornou urgente e imprescindível. Além disso, o leque de pobrezas e exclusões atinge não somente os seres humanos de todos os continentes, como também animais, florestas, rios e a própria mãe Terra, privada do seu direito à Vida. Para responder a esse desafio, temos de estimular e aprofundar sempre mais o diálogo e a interação entre as Teologias da Libertação e a Ciências da Religião. Sem dúvida, ao menos na América Latina e no mundo dos pobres, o primeiro ponto do diálogo é sobre a incidência das nossas pesquisas e estudos na transformação real da sociedade e na defesa da Vida.

Sandson: Primeiramente, que alegria voltar a escrever conversando contigo. Creio que você traz uma provocação interessante para nós das Ciência(s) da(s) Religião(ões). Em um tempo como o nosso, que precisamos, a todo momento, reafirmar o direito à liberdade de crença, de consciência, à liberdade sexual e direitos básicos como alimento e moradia, nossas áreas têm que sair do âmbito de falar para dentro, falar somente para os pares e encarar a realidade que grita. Talvez as Teologias da Libertação, permita-me aqui falar no plural, em seu diálogo com os movimentos sociais, tem aí algo a nos provocar: uma ciência(s) engajada na promoção da justiça. Vou correr aqui o risco de possíveis críticas de dizer que, talvez, uma ciência militante, não no sentido de fazer qualquer proselitismo religioso, mas comprometida com a afirmação e efetivação dos direitos humanos. O falar para dentro, de alguma forma, é fazer uma ciência alienada ou alienante, uma ciência que não causa impacto social serve apenas para um gozo infantil de ver um artigo publicado em revista A1. Creio que produtos das TdL, como o CEBI, por exemplo, podem nos ajudar a pensar que nossa ciência precisa sair dos gabinetes com ar condicionado e colocar os pés no chão, sujar de barro, de realidade, para além do controle confortável de nossos escritórios. Bem, mas vamos dar um passo, como isso poderia se dar?

 1 – Ciências da religião e teologias a partir da libertação

Marcelo: Todas as pessoas comprometidas com a transformação do mundo, de um modo ou de outro, vivem elementos de uma Espiritualidade humana e centrada na Mística da Vida. É importante reafirmar esse caráter simples, não elitista da Espiritualidade cristã libertadora, que, como teólogo, chamo de crística. Aqui estou falando de que a Espiritualidade, no meu entender, verdadeiramente cristã, não tem nada especificamente religiosa que seja sua ou exclusivamente sua. Em si, penso, é a espiritualidade humana. O que eu não poderia dizer se usasse a expressão Espiritualidade Católica ou Espiritualidade evangélica ou Espiritualidade ortodoxa. Assim, para não deixar dúvida, proponho mudar a palavra “cristã” por “crística”.  Em Teologia podemos afirmar que algo é crístico quando corresponde ao Cristo, portanto, no nosso tema aqui, seria a espiritualidade de Jesus Cristo e das diversas pessoas na história, que podemos afirmar que foram Ungidos (Cristos) de Deus. Espiritualidade crística não é o mesmo que “espiritualidade cristã”, hoje identificada como os vários caminhos ou escolas espirituais das diversas Igrejas.

Sandson: Entendi Marcelo. Confesso que eu ainda tenho alguma dificuldade em adjetivar, mas entendo que essa é uma contribuição importante que a TdL traz. Ela descentra da cultura do sujeito universal europeu. Isso me leva a refletir sobre o quanto, nas Ciências da Religião, produzidas por nós, do sul do mundo, precisamos pensar a partir de epistemologias nossas. Mas, gostaria de continuar esse diálogo sobre essa espiritualidade crística. Essa releitura, um tanto livre do termo cristo, ungido, me pareceu bem interessante.

Marcelo: Então, entendo essa espiritualidade crística como uma abertura antropológica fundamental. Ela já seria, em si mesma, sociopolítica, libertadora e pluralista, no sentido de aberta a outros caminhos espirituais.

A Teologia da Libertação, desde suas origens, tem sempre nos ensinado que não há duas histórias, por isso, devemos superar os dualismos nos quais fomos formados. Do mesmo modo, a espiritualidade não é caminho diferente ou além da caminhada que fazemos cotidianamente para nos converter interiormente e para transformar o mundo. Essa identidade espiritual da caminhada transformadora precisa ser melhor compreendida para ser sempre mais aprofundada e explicitada em todas as suas potencialidades.

A espiritualidade ecumênica, para mim, confirma: a abertura para a alteridade é elemento fundamental da maturidade humana. Nessa perspectiva, a espiritualidade é pessoal e tem uma dimensão interior, mas é essencialmente comunitária. É na comunidade que o indivíduo se torna pessoa e vive a experiência do espírito, ou seja, a capacidade de amar. Veja aí este texto do famoso livro O Espírito Santo e a Libertação, do padre José Comblin, um dos maiores teólogos do mundo no século XX:

“A sociedade latino-americana é uma sociedade desintegrada. A maioria dos habitantes das cidades fica alheia a qualquer associação. O desemprego, as condições de vida difíceis e o ambiente hostil das periferias urbanas dificulta muito qualquer projeto comunitário. O êxodo permanente de pessoas, troca de moradias, tudo isso torna difícil a experiência das comunidades. Por isso, conseguir firmar uma comunidade de vida e de convivência é um verdadeiro milagre. Só mesmo uma ação especial de Deus que acompanha o seu povo pode tornar isso possível. É uma experiência quase extática, ainda que vivida no dia a dia e com serenidade. A comunidade é experiência de partilha. Compartilha a palavra, compartilha bens, compartilha o agir social e político, consegue às vezes até levar adiante uma ação pública em conjunto. É uma manifestação forte do Espírito Santo’.

A fé nos diz que “é graça divina” sermos conduzidos(as) pelo Espírito. Essa afirmação, de modo algum, nega ou diminui a importância da dimensão antropológica humana, mas orienta no sentido de uma especificidade que é a dimensão social e política libertadora da espiritualidade.

Nesse caminho, mesmo no Cristianismo atual, há pessoas que, conforme a tradição antiga, continuam acreditando em Deus, compreendido como alguém com o qual podemos nos relacionar. Essas pessoas crentes podem ser chamadas de teístas. Entretanto, há também, mesmo entre os(as) crentes e dentro do Cristianismo, pessoas que não creem em um Deus pessoal. Como ensinam antigas tradições orientais como o Budismo, essas pessoas são ateístas (não ateus). Creem em Deus mais como uma dimensão divina presente em nós, e não como alguém subsistente em si mesmo. De todo modo, para todos(as), a espiritualidade é caminho de fé e amor.

Sandson: Muito provocativo, Marcelo. Fiquei pensando, mas, e as Ciência(s) da(s) Religião(ões) com isso? Esta é uma questão muito importante a se fazer quando nos propomos a pensar o que as Teologias da Libertação têm a dizer às Ciências da Religião e em que as Ciências da Religião podem contribuir com a teologia.

Talvez uma contribuição importante das Ciências da Religião é o fato de ela não ter (e nem poder ter, como uma ciência) um compromisso com qualquer confissão religiosa que seja, diferentemente da Teologia, que, mesmo em perspectiva libertadora, tem compromisso com uma verdade Revelada.

Dessa forma, com seu olhar científico e seu caráter multidisciplinar, pode contribuir com as Teologias da Libertação oferecendo a elas substrato crítico e científico sobre o papel das religiões na sociedade. Talvez esse substrato possibilite às Teologias da Libertação serem mais libertadoras, a partir da compreensão do senso religioso contemporâneo, ou seja, a maneira com que as pessoas constroem seus sentidos existenciais a partir de referências religiosas.

Em contrapartida, as Teologias da Libertação podem oferecer às ciências da Religião perspectivas de um cristianismo descentralizado da Europa, oferecendo outros campos de análise de o que seja o cristianismo, ou um cristianismo marginal e seu papel na sociedade.

Marcelo: Compreendo o que você diz, mas penso que não me parece obrigatório que as Teologias da Libertação tenham compromisso com uma verdade revelada única. Cada dia mais é a própria Teologia Pluralista da Libertação que, por meio de teólogos e teólogas, como Andres Torres Queiruga, Raimon Panikkar, José Maria Vigil, Ivone Gebara, teólogas indígenas como Nancy Cardoso e outros(as), têm construído uma teologia que parte da pluralidade de revelações e buscam descobrir o que Deus, em sua hierodiversidade (expressão que usei em um artigo para a revista Concilium em 2006) quer nos dizer por meio não da revelação judaico-cristã, e sim pelo Corão, do Bhagavadgita e das tradições xamânicas.

Qualquer pessoa percebe que se eu digo que mesmo uma Teologia cristã pode se abrir em uma perspectiva a-teísta, é claro que isso  muitas consequências para as Ciências da Religião, porque facilita um diálogo que vai além da fé em um Deus pessoal justamente. As Teologias da Libertação, para serem teologias, assumem uma perspectiva de fé, mas não necessariamente presas a uma expressão da revelação. Daí se fala em Teologias Pluralistas da Libertação, que são teologias, mas não presas à revelação judaico-cristã ou às escrituras do Hinduísmo ou do Islã.

Sandson: Não havia pensado nessa perspectiva, Marcelo. Talvez eu ainda esteja preso em uma perspectiva teológica que precisa se libertar dessa compreensão de uma verdade revelada única! De toda forma, essa discordância me faz refletir, também, sobre a necessidade de pensar a minha experiência de fé e de desaprender aspectos da teologia que aprendi na universidade, que, me parece, permanece introjetada. Preciso libertar minha teologia! Bem, continuando nosso diálogo, quais são, então, os caminhos de encontro dessas duas dimensões, na sua perspectiva?

2 – Contornos, fronteiras e espaços comuns

Marcelo: Veja, Sandson. Na tradição das Igrejas, se convencionou distinguir a fé, a catequese e a teologia. A fé é a revelação divina, expressa em determinada cultura. A catequese é a explicação dessa fé, e a teologia é a sua justificação racional e em termos sistemáticos. Comumente, a catequese tem como objetivo iniciar alguém nos sacramentos e na prática eclesial, enquanto o objetivo da teologia é aprofundar, com meios ligados às ciências humanas, a racionalidade da fé.

As Ciências da Religião buscam, a partir da Antropologia e da Sociologia, assim como de outras ciências, compreender as expressões organizadas da fé nas religiões e a sua interação no mundo. Como não existe ciência neutra ou totalmente objetiva e desinteressada, as Ciências da Religião precisam do diálogo e da inserção, seja na prática cristã, xamânica,do Candomblé ou de outras expressões religiosas, para que as suas conceituações não sejam artificiais e mesmo, de alguma forma, colonialistas.

Sandson: Concordo muito contigo, Marcelo. Não basta falar a partir do gabinete, mas ir ao encontro, de mãos vazias, para procurar entender e ajudar os outros a compreender a multiplicidade de experiências disso que chamamos de religião. Temos pensado e tentado fazer isso: ir ao encontro das diversas práticas, mas a tentação intelectualista é grande.

Marcelo: Para isso, penso que esse diálogo é interdisciplinar no sentido de dois conhecimentos que se encontram, mas é também o diálogo entre teoria e prática. E, para que seja fecundo, cada parceiro(a) do diálogo deve se sentir livre e, ao mesmo tempo, solidário(a). Não foi assim no decorrer dos séculos. Na história, a teologia cristã se apoiou na Filosofia clássica. No século IV, Agostinho desenvolveu sua explicação da fé a partir da Filosofia de Platão. No século XIII, Tomás de Aquino se serviu de Aristóteles para desenvolver sua Summa Teológica. A escolástica, desenvolvida em seminários e institutos teológicos católicos, chamava a Filosofia (greco-romana clássica) de theologiae ancila (serva da teologia). No regime de Cristandade, não era só a Filosofia que era serva da teologia e, de certa forma, dependente da Igreja, era toda a ciência. Ainda hoje, há pessoas que, para confirmarem que a Bíblia tem razão, defendem que a terra é plana e quadrada. Em universidades norte-americanas ainda se ensina o Criacionismo, segundo o qual Deus criou o universo em seis dias e no sétimo descansou.

Esse tipo de fundamentalismo tem vários níveis. Quando, em uma universidade católica, padres e professores de teologia marginalizam ou tratam com suspeita o setor de Ciências da Religião, de certa forma, estão expressando esse mesmo caminho fundamentalista e ligado à cultura da Cristandade medieval. Atualmente, ao contrário, deveria ser a Teologia a se sentir devedora das Ciências da Religião. Essas oferecem à teologia a visão mais ampla da alteridade (das outras tradições e culturas) que a teologia precisa até para aprofundar os seus próprios conceitos e compreender melhor sua própria caminhada. Para dar um exemplo, será que se pode compreender bem a teologia cristã da eucaristia sem procurar entender o que eram os ritos de banquete nas antigas religiões de mistério e qual o papel da comensalidade até hoje nos cultos dos povos originários?

Sandson: Mais uma vez, concordo com você. Eu, de alguma maneira, estou dos dois lados da moeda, o da Teologia, em vista da graduação, e das Ciências da Religião, de outro, por causa da pós-graduação. Confesso que minha teologia ainda é pouco libertadora, precisa aprofundar a sua metanoia, precisa passar por uma mudança de mentalidade. São saberes distintos, visões distintas sobre um mesmo objeto, mas que podem contribuir para uma reflexão mais aprofundada, com matizes mais amplos. As TdLs têm essa capacidade de desconstrução, de inserção, dos pés no chão. Penso que essa provocação é importante para os cientistas da religião. Este nosso diálogo me leva a refletir sobre a necessidade de fazer dialogar em minhas reflexões, o que construí como teólogo e o que venho construindo como cientista da religião. Bom, estou muito interessado nisso. No seu entender, o que essas áreas de conhecimento podem dizer umas às outras?

3 – O que as Teologias da Libertação e as Ciências da Religião podem se dizer umas às outras

Marcelo: Bom, Sandson. Vamos aos inícios da Teologia da Libertação, ela teve origens plurais, como um rio que se forma a partir de vários afluentes. Sem se conversarem nem se conhecerem nos anos finais da década de 1960, Rubem Alves fazia sua tese de doutorado nos Estados Unidos e dava o título de “Teologia da Libertação”; no Peru, Gustavo Gutierrez escrevia o livro que se tornou ícone do início desta teologia. No entanto, no Recife, em 1969, José Comblin tinha prontos dois volumes de sua teologia da libertação que, por causa da ditadura militar e no momento mais duro da repressão, não pode ser publicado no Brasil. Foi publicado na França e ali eles deram o título de Théologie de la Révolution, volume I e II (Paris, Ed. Universitaires, 1970).

Desde o início, houve pastorais próprias que supunham uma teologia índia. No Brasil, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) começou como organismo oficial da CNBB em 1972. Ele propunha não mais evangelizar como trabalho de catequese católica, e sim fazer pastoral de acompanhamento e serviço em função da vida e da autonomia das comunidades indígenas. Os missionários passaram a ser orientados a não simplesmente batizar índios. Você acha isso possível sem uma teologia própria e nova subjacente a esta pastoral? Claro que oficialmente estas teologias (negras, índias, feministas e outras surgem mais tarde). Agora essa diversidade toma fisionomias novas: teologias ecológicas, feministas, negras, indígenas, LGBTI, Queer e outras. Esses caminhos de libertação têm natureza autônoma e laical. Isso já era assim antes. O que é novo atualmente é que as teologias que decorrem dessas experiências também precisam ser cuidadosas em respeitar essa laicidade. Elas precisam ser reflexão a partir da fé e do projeto divino, mas sem precisar de batizar religiosamente o processo social nem o valorizar porque é cristão, católico ou evangélico. Como essas lutas são laicais, elas têm também um caráter transreligioso, isso é, têm uma dimensão espiritual, se abrem a diversas expressões de fé, mas sem ficar presas a nenhuma.

Sandson: Penso que esse olhar laical que você propõe é algo muito importante, sobretudo por esse compromisso com os pés no chão.

Marcelo: No caso das religiões, cada uma vem ao diálogo com sua linguagem própria e com sua carga cultural. Ora, para que haja diálogo entre uma pessoa que fala francês e alguém que só fala alemão, é necessário alguém que traduza e seja mediador(a) do diálogo. Nesse caso, seria papel das Ciências da Religião exercer esse papel de tradução e mediação do diálogo e mesmo superação do mundo fechado de cada uma. Quem vai dizer aos profetas da teologia negra norte-americana que ainda há em seus escritos certo teor patriarcal? A teologia feminista? Sim porque percebe a lacuna. Por outro lado, ao fazer isso, corre o risco de ser mal compreendida e pode ser acusada de lutar em causa própria. As Ciências da Religião podem cumprir esse papel crítico de mediadoras do diálogo.

Do mesmo modo, as teologias feministas, índias e negras foram pensadas como teologias cristãs e a preocupação central era como traduzir a fé em categorias adequadas às culturas feministas, negras e indígenas dentro do Cristianismo. Sem dúvida, essas teologias têm se aberto e sabido dialogar com as religiões ancestrais (seja as tradições indígenas, seja as religiões afrodescendentes). No entanto, ainda é incipiente e quase inexistente um diálogo fecundo e inserção dessas teologias especificamente cristãs com setores e pessoas que tentam uma leitura libertadora das tradições do Candomblé, da Umbanda ou do Xamanismo. E essa inserção não pode ser apenas no que diz respeito às lutas sociais pela terra, pelo direito à diversidade cultural e religiosa. Tem de ser também diálogo científico e interdisciplinar que as Ciências da Religião podem mediar. E esse diálogo que tem como base a dimensão espiritual e teológica, porque toca nos pontos essenciais da própria fé, vai até a concretização política da racionalidade ao ser colocado a serviço da caminhada dos movimentos sociais.

Sandson: Muito importante isso, Marcelo. Pensar uma função social desse trabalho que fazemos na(s) Ciência(s) da Religião(ões). Penso que cabe a nós, cientistas da religião, esse papel educativo na sociedade, sobretudo quando há a necessidade de se reafirmar a laicidade do Estado e a liberdade de crença e consciência como direito fundamental. Penso, também, que as Teologias da Libertação nos ajudam, como cientistas, a perceber a pluralidade presente dentro das tradições religiosas e que, como você faz, uma reflexão teológica capaz de desconstruir cânones e ampliar medidas. Você veria outra contribuição das Teologias da Libertação para a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)?

Marcelo: Penso que as Teologias da Libertação podem ajudar às Ciências da Religião a cada vez mais se darem conta de que não existem ciências neutras ou simplesmente acadêmicas. Assim como as teologias precisam ser situadas e inseridas (contextuais), as Ciências da Religião, se querem cumprir sua função de servir à humanidade, têm de se perguntar: que humanidade? A dos círculos fechados e misóginos da academia? A das elites brancas, europeias e que consomem as produções acadêmicas que lhes dão sustento? Ou a dos povos indígenas, comunidades negras e todos os sem vez e sem voz nesse mundo de exclusão? Assim como na teologia, também as pessoas que fazem Ciências da Religião têm de se perguntar: para que serve a minha pesquisa?  A quem serve?

As Teologias da Libertação podem ajudar as Ciências da Religião a serem mais e mais críticas em relação ao para que e ao por que do conhecimento gerado em uma sociedade excludente, principalmente no mundo capitalista. Podem ajudar a não pensar o fenômeno religioso e a espiritualidade sempre na perspectiva individual que é a proposta da sociedade dominante. Podem ajudar a serem mais humildes como ciência e compreenderem que as classificações podem ser válidas enquanto instrumentos auxiliares de análise, mas nunca dão conta de explicar o amor que é mistério.

Será que podemos concluir essa reflexão propondo que o diálogo entre Teologias da Libertação e Ciências da religião devem ir no sentido de fazer com que ambas as disciplinas se desnudem de suas capas de objetividade científicas e aceitem a nudez da pobreza interior e da relação amorosa a partir do aqui e agora corporal e negro. Em um de seus livros, Adélia Prado encerra com o poema “Nigredo”, que diz:

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Nem a terra toda cobre esta nudez,

Nem o mar,

nem Deus que me trata como se eu fora divina.

Ele não é o que dizem,

grita, convoca à loucura,

furta de mim as delícias que nos sonhos concede:

os peixes dentro da rocha,

primeiro de vidro,

depois vivos, frementes,

da mãe cristal, pendentes,

da mãe ametista.

A boca está seca, é sede.

Ele quer água, eu bebo,

Quer urinar, levanto-me,

Sem roupa, ando na casa,

Tem piedade de mim.

A humilhação me prostra,

Meia noite, meio da vida a pino,

a cova, a mãe, o grande escuro é Deus

e forceja por nascer na minha carne”.

Monge Marcelo Barros e Pastora Lusmarina no Desfile da Mangueiras 2020