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A relação explosiva entre libertação e pluralismo

A relação explosiva entre libertação e pluralismo

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As reflexões que tenho feito sobre a Teologia da Libertação, especialmente tendo em vista o quadro de pluralismo religioso, cultural e antropológico, têm sido construídas ao longo de vários anos e ganharam nos últimos um sabor especial para mim na medida em que me aproximo do marco dos cinquenta e oito anos de vida, já antevendo a famosa “terceira idade”. Contextos assim, em geral, são marcados por um sentimento de revisão de vida, balanços existenciais e memória. De minha parte, cresce uma enorme preocupação com as futuras gerações no tocante à comunicação da riqueza que a experiência teológica latino-americana me proporcionou e nos proporciona na vida. A vocação ecumênica da libertação me acompanhou desde a adolescência, aprendi ainda bem jovem que Deus está presente além dos nossos muros e fronteiras e que ele “é maior”. Nesse mesmo mar de descobertas, pude viver comunitariamente diversas aventuras espirituais que fizeram florescer, nos anos de 1980, maior sensibilidade com a realidade da vida, especialmente das pessoas e grupos empobrecidos, e maior abertura ecumênica para responder aos desafios que o Evangelho nos apresentava.

Desde então, aprendi que a teologia precisa se sentir constantemente desafiada pelas novas visões sociais, políticas e científicas e pelas demandas, antigas e novas que a sociedade apresenta. Ela não pode se confinar aos dogmatismos eclesiásticos que somente empoeiram nossa visão nem às análises que não levam em conta as mudanças culturais e científicas na forma de compreender o mundo. Assim, a teologia, embora esteja longe de ser comparada com “a” Palavra de Deus, é também cortante, como faca de dois gumes, que fala para fora e para dentro, que alumia a alma, que despedaça a existência humana, mas que pode cooperar para reconstruí-la em sua integralidade.

Na véspera da Páscoa, o Padre Júlio Lancellotti, da Arquidiocese de São Paulo, beija os pés de Sheila, uma transexual que acompanhava a Via Sacra do Povo da Rua, organizada por uma Pastoral da cidade. (Texto da legenda e foto do razoesparaacreditar.com)

Ao olhar para trás é possível ver a densa e a variada riqueza do legado teológico latino-americano que está oferecida para as novas gerações. Dele, emergem especialmente a dimensão comunitária e ecumênica da fé cristã, as bases sociais e políticas do compromisso cristão com a defesa da vida, com a solidariedade humana, com a sustentabilidade do mundo, com as formas de inclusão em seus diferentes níveis, com o aprofundamento da democracia e a busca da cidadania, com a valorização do pluralismo, com o exercício dos direitos humanos e com a integridade da criação. Este patrimônio histórico-teológico precisar ser recriado permanentemente.

Desafios para a Teologia da Libertação

Diante dos esforços em forjar e garantir o referido legado teológico latino-americano, há desafios enormes que marcam o contexto atual. Não obstante a muitas e diversificadas análises, reconhecemos que não é tarefa simples indicar tais desafios. Há, no entanto, três aspectos que têm mobilizado a atenção de teólogos e de teólogas e que a mim tocam de forma bem intensa. O primeiro deles é a tarefa de alargamento metodológico e de atualização nas formas de compreensão da realidade, pressuposto sempre presente nas teologias de caráter social e político. No caso latino-americano, trata-se de avaliar o peso dos esquemas reducionistas que utilizaram em demasia a bipolaridade “dominantes x dominados” devido à influência de certas formas de marxismo nas análises sociais, ocultando por vezes a complexidade social. Nesse sentido, seguindo as teorias de complexidade, defendemos uma lógica plural para o conhecimento das situações em que vivemos.

Um segundo desafio está em torno das questões relativas à emergência das subjetividades na atualidade. Esta dimensão se conecta com a espiritualidade. Não foram poucas as vezes em que a Teologia da Libertação foi acusada de não ter espiritualidade. É fato que as dimensões racionais presentes no método teológico latino-americano, como as mediações socio-analíticas para a compreensão da realidade, o rigor nas exegeses bíblicas e nas avaliações históricas e as formas articuladas de ação eclesial e política marcam uma ambientação de racionalidade que talvez possam inibir formas mais subjetivas de espiritualidade. No entanto, a mística evangélica é parte constitutiva da participação cristã nos processos de libertação social. Daí a emergência de grandes desafios teológicos e pastorais, em geral requerendo uma abertura a visões que valorizem a subjetividade e formas mais autênticas e plurais de espiritualidade.

Um terceiro desafio reside em torno dos encontros e desencontros da teologia com a pluralidade. A teologia latino-americana priorizou o dado político para suas interpretações e nem sempre esteve atenta às diferenças culturais, que, no caso de nosso continente, são fortemente híbridas e entrelaçadas com a diversidade das expressões religiosas. Também pouco esteve atenta para as demandas da vida que surgem com as dimensões do cotidiano e com os aspectos fundamentais da vida humana como a corporeidade e a sexualidade. Portanto, diante da teologia latino-americana está a tarefa de aprofundar os seus esforços, mesmo com as suas limitações e ambiguidades, e, guiada pelo princípio pluralista, refletir sobre as demandas que a sociedade apresenta e que recaem sobre o quadro de pluralismo, seja o que está em torno das questões do método teológico, do quadro religioso ou de questões de natureza antropológica. Essas últimas podem ser exemplificadas na capacidade de alteridade ecumênica, nas formas autênticas de espiritualidades integradoras, inclusivas e ecológicas, e no valor da corporeidade, da sexualidade e da dimensão lúdica tanto na reflexão teológica quanto nas ações concretas de afirmação da vida.

O princípio pluralista

Como linha condutora das reflexões que tenho feito sobre uma teologia pluralista da libertação, está o que eu tenho denominado como o princípio pluralista. Não se trata de ordenação moral, embora uma visão pluralista seja importante para o fortalecimento dos processos democráticos e de justa convivência das pessoas e grupos. Nossa compreensão é que o princípio pluralista é um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos que são gerados nos “entrelugares”, bordas e fronteiras das culturas e das esferas de institucionalidades. Ele possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade. São diversos os autores e as autoras que contribuem para a formulação desse princípio e a contribuição deles eu tenho apresentado em vários trabalhos.

A noção de pluralidade poderia ser vista, em primeira análise, como algo em contradição com a ideia de um “princípio”. Este, em geral, mais constante, buscaria semelhanças e similares, em variações da realidade que podem ser medidas em amostragens ou metodologias afins. Ao menos, é o que se faz em algumas áreas do conhecimento. No entanto, em nosso campo, consideramos que a constância é a diversidade. Esta se encontra, em boa parte das vezes, ocultada ou invisibilizada nas pesquisas e análises da realidade social e religiosa.

Nossa pressuposição é que o princípio pluralista, formulado a partir de lógicas ecumênicas e de alteridade, possibilita melhor compreensão da diversidade do quadro religioso e também das ações humanas. Não se trata apenas de uma indicação ética ou “catequética”. Com ele, as análises tornam-se mais consistentes, uma vez que possibilitam melhor identificação do “outro”, não idealizado, mas concretamente identificado, especialmente as pessoas e grupos que são invisibilizados dentro da visão sociológica que Boaventura de Souza Santos (2010) chamou de “sociologia das ausências”. A sensibilidade com as distintas expressões culturais ou religiosas, majoritárias ou minoritárias, fronteiriças ou não, contribui para uma “sociologia das emergências” de novos rostos, variados perfis religiosos, multiplicidades de olhares, perspectivas e formas plurais de atuação. Com essa perspectiva “policromática”, os esforços de análise do presente ou os de identificar os futuros das religiões poderiam encontrar maior êxito.

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Seguimos a concepção de entrelugar, como trabalho fronteiriço da cultura, conforme nos indica Homi Bhabha, em sua obra O local da cultura (2001), que requer um encontro com “o novo” que não seja mera reprodução ou continuidade de passado e presente. Para as nossas reflexões, especialmente no que comumente nos referimos à necessidade de alargamento de horizontes metodológicos para o estudo da religião, consideramos que o “local da cultura” [para usar o sugestivo título da obra] é fundamental no processo que advogamos de estabelecer mediações socio-analíticas para as interpretações teológicas e, também, para as análises científicas da religião em geral. O conceito entrelugar está relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e como realizam estratégias de empoderamento. Tais posicionamentos geram entrelugares, especialmente experimentados nas malhas do cotidiano, em que aparecem com maior nitidez questões de âmbito comunitário, social e político. A posição de fronteira permite maior visibilidade das estruturas de poder e de saber, o que pode ajudar na apreensão das subjetividades de povos subalternos.

Com este princípio, destacamos a perspectiva teológica que procura superar as clássicas visões exclusivistas, inclusivistas e relativistas de compreensão mútua entre as religiões. A perspectiva pluralista nem anula as identidades religiosas e culturais, por um lado,  nem as absolutiza, por outro. Ao contrário, interpreta as religiões e as vivências humanas em geral em plano dialógico e diatópico, considerando cada contexto, especialmente os diferenciais de poder que neles estão presentes. No caso dos diálogos e cooperações inter-religiosas, não se trata de igualdade de religiões, mas de se buscar relações justas, dialógicas e propositivas entre elas.

Com as visões acerca da noção de entrelugares e de fronteiras, reforçamos a perspectiva dos estudos culturais, que, em solo latino-americano, ganhou, a partir das análises, sobretudo do peruano Anibal Quijano e dos argentinos Enrique Dusssel e Walter Mignollo, um novo conteúdo crítico. Trata-se da perspectiva ou giro decolonial, o qual possui um sentido estratégico que revela interpelações políticas e epistemológicas de reconstrução de culturas, instituições e relações sociais, tendo em perspectiva o empoderamento de grupos subalternos e construções críticas alternativas e plurais. As proposições conceituais dos estudos culturais decoloniais visam, como indica Walter Mignollo, realçar a decolonialidade do poder, do saber e do ser. Com isso, as aproximações religiosas e a valorização do pluralismo podem ser não somente percebidas e terem suas tendências identificadas nas análises, mas podem ser sobretudo construídas. É obvio que isto se trata de tarefa dos próprios grupos religiosos e da interação deles na sociedade, mas os estudos de religião podem cooperar oferecendo análises cujas bases sejam sólidas e, ao mesmo tempo, criativas e indicadoras de novos caminhos.


Referências

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: literatura, língua e identidade, Niterói, nº 34, 2008, p. 287-324.
SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010.