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Espaço sagrado do candomblé

Espaço sagrado do candomblé

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A história do Candomblé começa no Brasil, embora devemos ter em mente que estamos tratando de uma religião de matriz africana, que tem como marcos a resistência e a vivacidade oriundas do histórico das populações negras. Sem dúvida, suas normas, princípios, proscrições, rituais e práticas tenham sido cunhados entre as populações africanas, muitos modos de operar e agregar pessoas surgiram com a diáspora africana (tráfico de africanos para diferentes partes do mundo). Nesse sentido, podemos encontrar similaridades entre as práticas religiosas do Candomblé no Brasil, que se organizam em nações, e as práticas da Santeria, em Cuba.

Nesse sentido, buscaremos apresentar as similaridades entre as práticas do Candomblé no Brasil para fins didáticos e potencializar diálogos educativos sobre a produção de conhecimentos humanos e visões de mundo. Para tanto, lançamos mão da concepção de constelações de aprendizagens de longa duração, que contextualiza as diferentes aprendizagens em torno de práticas ancestrais para potencializar a ação do axé na harmonização do cosmos (SILVA, 2016). Com efeito, focaremos nos processos educativos provenientes de práticas ancestrais africanas presentes no Candomblé Ketu, primordialmente, e resistentes durante toda a diáspora. Além disso, o ensino de práticas religiosas de matriz africana corrobora a lei 10.639/2003, que alterou a LDB 9394/1996, pela inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileiras.

Em vista da convergência de práticas ancestrais negras, observamos a presença agregante de dinâmicas de circularidade, ritmicidade e o movimento da esquerda para a direita em favor do fluxo do axé ou energia vital entre o orun e o aiyê, ou o mundo dos orixás e da humanidade, respectivamente. Ora a identidade de filho(a)-de-santo ocorre pela afirmação comunitária envolvendo três dimensões, a saber, ritualística, material e da experiência religiosa, que tecem fronteiras de aprendizagens entre um terreiro ou casa de axé e outra. Logo, o vínculo ancestral é legitimado pelos processos iniciáticos de seus respectivos líderes, cujo fluxo de axé, se refere a cadeia simbólica de seus pais-de-santo e mães-de-santo em decorrência de suas aprendizagens religiosas.

Vale ressaltar que as práticas religiosas no interior das três dimensões são sincréticas, enquanto fator criador e criativo da aprendizagem humana, pois as trocas simbólicas acontecem em torno de práticas ancestrais como crenças, ritos, termos, ritmos e línguas de populações africanas, ameríndias e europeias (católicas e espíritas) e, mais atualmente, indianas. Além disso, Roger Bastide (1985) nos lembra a resistência negra diante da intolerância religiosa, já em 1618 quando houve denúncias à Inquisição sobre práticas religiosas africanas na Bahia.

Podemos denominar as experiências religiosas por meio de populações vindas de diferentes regiões africanas ao se organizarem em torno das nações Ketu, Jeje, Nago, Ijexá, Tambor de Mina, Angola e Congo. Contudo, frisamos que há outras nações. A título de ilustração sobre tais distinções de nações, as divindades podem ser denominadas de inquice, vodum ou orixá dependendo da nação. Além disso, de acordo com o histórico do terreiro, podemos observar divindades de nações diferentes, bem como da presença de entidades da Umbanda (como caboclos, guias, anjos, pretos velhos entre outros) em uma casa de Candomblé. Outrossim, cada terreiro é considerado um reino africano.

Sobre o mito fundador da nação Ketu, conduzida liturgicamente em Yorubá, é apontado o ano de 1830 no Bairro do Engelho Velho, pelo terreiro chamado de Ilê Iyá Nassô Oká ou Casa Branca fundada por duas africanas libertas: Iyá Nassô e Obá Tossi. A partir dessa casa surgiram, também na Bahia, o Ilê Iyá Omi Axé Iyá Massê ou Terreiro de Gantois, fundado por Maria Julia Conceição Nazaré em 1849, e o Ilê Axé Opô Afonjá, fundado em 1910 por Mãe Aninha. Com efeito, a difusão de características da nação Ketu para outras nações, bem como, a abertura de novas casas Ketu passou a ser legitimada por meio de vínculos ancestrais relativos à comunidade do Ilê Iyá Nassô Oká e suas subdivisões.

Há algo que podemos apontar a respeito do tamanho espacial e comunitário do terreiro. A grande maioria dos terreiros, no Brasil, são espaços geográficos pequenos, como o quintal e o corredor junto a um pequeno barracão nos fundos da moradia de seus líderes. Já na entrada da casa, podemos encontrar o mariô sobre as portas (folhas de palmeira) e pejis (assentamentos ou altares dos orixás com suas insígnias, pedras fundamentais e oferendas de alimentos). No barracão, podem estar o assentamento da casa, como fundamento do fluxo do axé, o local onde os adeptos e o público se acomodam, a cadeira do(a) líder e demais cargos de prestígio, os três atabaques (rum, rumpi e lê), outros pejis, além de quadros de personalidades do terreiro, orixás e santos nas paredes. Há um espaço restrito aos iniciados para dispor as paramentas (vestimentas dos orixás e contas) e objetos sagrados e uma sala de consulta. Devemos considerar, porém que o universo simbólico do Candomblé extrapola o barracão para a conexão com o sagrado abarcando matas, florestas, fontes, rios, praias e cachoeiras.

As cerimônias ou xirê são cadenciadas pelos atabaques tocados com a mão e com varetas (atori ou ixan), por ex. de goiabeira, que como todos os outros objetos sagrados são preparados e sacralizados para esse fim. Além disso, os atabaques possuem uma posição de destaque na casa, são saudados no barracão como entidades vivas, adornados e lhes servidos oferendas.  Outro conjunto de objetos rítmicos do axé são pequenas campanas metálicas: adjá e agogô. O primeiro possui badalos internos e tocado pelo movimento da mão para anunciar o início da cerimônia e invocar o orixá, conduzindo-o pelo barracão durante seus cânticos até sua despedida (LODY, 2003). Já o agogô ou gã, pertencente ao orixá Ogum, contém uma ou duas campanas sem badalo e o alabê toca com uma vareta de ferro para marcar o ritmo de cada cântico.

O neófito desde o início aprenderá a reconhecer os orixás, suas saudações em decorrência do xirê, isto é, desde a saudação, invocação, incorporação e despedida do orixá que é acompanhado de cânticos, ritmos, danças e paramentas para a ocorrência do fluxo do axé no mundo por sua presença. Além disso, as narrativas mitológicas, itans, proporcionam sentidos ancestrais para a compreensão da comunidade das proscrições e prescrições da casa.

As cerimônias referem-se a um momento litúrgico específico, casamentos, a saída de santo (iniciação do adepto) ou rito fúnebre, axexe. Estas se iniciam com o padê de Exu, como oferenda para abrir a comunicação entre a humanidade e os orixás e reestabelecer o bem-estar no mundo, como tem ocorrido desde tempos imemoriais em África. Com possíveis variações na quantidade e ênfases da própria cerimônia, os cânticos começam a saudação aos orixás com Exu, passando por Ogun, Oxóssi, Omolu, Ossanhe, Oxumarê, Nanã, Oxum, Obá, Euá, Oiá, Logun Edé, Airá, Iemanjá, Xangô até ser encerrarado com Oxalá. Embora Irocó, tenha um papel crucial no panteão como orixá-árvore, ele não faz parte do xirê, mas é cultuado no espaço do terreiro (PRANDI, 2001).

Outrossim, aprendizagens iniciáticas instituem-se como reconhecimento do adepto na família espiritual ou ebi, inicialmente pela lavagem de contas do fiel, que passará ser chamado de abiã. Outra forma é o bori, em que o adepto confirma seu orixá de cabeça e reestabelece suas obrigações. No entanto, a iniciação acontece com o recolhimento do adepto no barracão. É um período de aprendizagem intensiva com a raspagem da cabeça para a feitura do orixá. Após a cerimônia de sua apresentação – saída de santo – passará a ser chamado de iaô. Depois de percorrido os 7 anos de obrigações com seu orixá, o iaô se tornará ebome, podendo inclusive fundar um terreiro próprio ou ocupar cargos na casa. Há alguns cargos que dependem estritamente do gênero, como acontece pela iniciação de homens como o de ogã que pode tocar os atabaques, alabê que canta e coordenada os tocadores de atabaque ou o axogum que é filho de Ogum, responsável pelos sacrifícios. Dentre os femininos podemos citar a ekedi que conduzem o adjá com o objetivo de auxiliar os iniciados na incorporação e na despedida do orixá, a adagã serve o padê de Exu e a abassê, filha de Oxum, realiza o preparo dos alimentos. Tanto os ogãs e as ekedis não incorporam os orixás, mas são detentores de prestígio na casa. Os cargos de liderança como babalorixá e ialorixá, bem como seus auxiliares diretos, babakekerê e iakekerê, pai e mãe pequena, são ocupados por homens e mulheres, respectivamente.

A manutenção e perpetuação das práticas religiosas e da comunidade candomblecista dependeram do desenvolvimento de processos educativos para revitalizar o sentido ancestral ora por categorias emocionais e cognitivas oriundas de tradições africanas e ameríndias ora pela resistência às normas e intolerâncias sociais. Podemos observar que a vivacidade do Candomblé estrutura suas dimensões religiosas, respondendo por aprendizagens conforme as demandas sociais e da rede de apoio do Movimento Negro. Logo, à medida que aprendemos a dialogar com os adeptos do Candomblé poderemos estar em contato com visões de mundo distintas e enriquecedoras do conhecimento e da produção humana.


Referências

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil – contribuições a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1985.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.
LODY, Raul Giovanni da Motta. Dicionário de arte sacra e técnicas afro-brasileiras. SP: Pallas: 2003.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
SILVA, Jefferson Olivatto da. Aprendizagens comunitárias africanas de longa duração e em larga escala segundo a expansão banta. Relegens Thréskia, 84-107, v. 5(1), 2016.