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Racismo Religioso, entrevista com Professor João Carlos Lino Gomes

Racismo Religioso, entrevista com Professor João Carlos Lino Gomes

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Foto: Arquivo Pessoal

Senso: Professor João Carlos Lino Gomes, nós da Revista Senso agradecemos a sua disponibilidade. É um prazer ter você nesse número sobre o Racismo Religioso.

Antes de adentrarmos na questão do Racismo Religioso, gostaríamos que você pudesse explicar aos nossos leitores e leitoras, de modo breve, o que é racismo e como ele afeta a vida da população negra no Brasil?

Professor João Carlos: O racismo é, em linhas gerais e sem entrar no aspecto jurídico que distingue o racismo da injúria racial, é a ideia de que, a partir das diferenças biológicas e culturais existentes entre grupos humanos, podemos concluir que existem grupos humanos inferiores e outros superiores.

Esta convicção pode gerar tanto um sentimento de piedade com relação aos supostamente naturalmente inferiores quanto à ideia de que estes grupos, por atrapalharem a vida e o desenvolvimento dos que estariam no ponto alto da evolução, devem ser restritos a certos espaços ou até mesmo eliminados. Estas duas posições são, do meu ponto de vista, condenáveis e podemos percebê-las no Brasil, com relação aos negros, em frases como O PRETO DE ALMA BRANCA (o coitado é preto mais tem alguma coisa boa nele. Vai se salvar) ou PRETO PARADO É SUSPEITO E CORRENDO É LADRÃO (a suspeição constante sobre os naturalmente perigosos). Como querer que a população negra, a não ser lutando muito por seus direitos, possa desenvolver suas potencialidades diante deste cerco?

Senso: Ao perceber que as religiões de matrizes africanas são reiteradamente vilipendiadas no Estado brasileiro, é possível dizer que há um Racismo Religioso?

Professor João Carlos: Sim, e este racismo e a demonstração efetiva de como não se excluem somente os indivíduos, mas tudo o que eles produzem não pode ser considerado legítimo. Isto não impede que um racista possa se valer destas religiões em situações em que se vê em desespero. Mas ele o faz justamente porque acredita que certas práticas condenadas pela sua religião (considerada legitima) podem, afinal, ajudá-lo. Vemos isto claramente nas relações entre homens e mulheres negras na frase racista BRANCA PARA CASAR, MULATA PARA FORNICAR, NEGRA PARA TRABALHAR. Algum uso você faz do negro sem reconhecer a sua dignidade.

Senso: Você considera que o debate sobre a intolerância Religiosa, no Brasil, contempla, com honestidade, a Umbanda e o Candomblé?

Professor João Carlos: Não. A maioria das pessoas (incluindo negros) não conhece as origens destas religiões, a estrutura da sua mitologia e o significado dos seus símbolos. Isto é terrível. É ingênuo acreditar que, depois de mais de 300 anos de escravidão no Brasil, a religiosidade de matriz africana não ocupa um lugar importante no nosso imaginário (mesmo que de forma inconsciente)

Senso: Você é filósofo com imersões nas discussões políticas. Na sua percepção, é possível considerar que a construção de uma “cultura do ódio” no Brasil tem como um dos principais mecanismos o componente racial?

Professor João Carlos:  O que chamamos de CULTURA DO ÓDIO, no Brasil, tem componentes políticos e sociais complexos que não posso discutir no espaço restrito de uma entrevista. Não acredito que esta cultura tenha nascido da experiência do racismo mas, agora que ela está instalada, e muitos procuram um culpado para os problemas que os afligem. Com certeza os negros passam, dado ao seu grande número na sociedade brasileira e a sua condição de fragilidade social (nos lugares que frequento, como um professor negro de classe média, encontro poucos negros e em algumas vezes sou o único negro frequentador), a se tornar objeto de desconfiança. É a velha história do segurança da loja (muitas vezes negro) que é orientado a ficar de olho nos clientes negros. Um ex-chefe de segurança de um Shopping de Belo Horizonte me contou que tinha ordens de dar esta orientação para os seus comandados e um dia dois rapazes brancos roubaram um aparelho de ginástica e andaram com ele no prédio inteiro antes de acessarem a saída. O SHOPPING só descobriu como foi o roubo pelas câmeras.

Senso: A lei 10.639/2003 reforça a construção de uma nova narrativa sobre a cultura, o conhecimento e a experiência religiosa ancestral dos povos negros, como você avalia a importância e a aplicabilidade dessa normativa, no Brasil atual?

Professor João Carlos: Acho importante que as leis contemplem situações e realidades que, sem elas, poderiam levar muito tempo, para que fossem percebidas pelas pessoas. Mas, acima de tudo, o debate franco sobre o tema no dia a dia, o questionamento que fazemos com as pessoas diante da manifestação de sentimentos racistas e não mais empurrar a questão para debaixo do tapete, devem fazer parte do nosso cotidiano e tenho visto uma reação muito maior hoje, por parte de brasileiros brancos e negros, diante do racismo. Na minha época como estudante de Filosofia (pelos idos dos anos oitenta do século passado), pouco se discutia o assunto de forma franca nas universidades.

Senso: Em 2017, você participou da composição do livro Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Você pontua em seu texto A democracia em questão, alguns limites e ruídos que se manifestam na cena política contemporânea. Nesse sentido, é possível considerar que o racismo religioso aparece na composição ideológica, política e ética, como um dos desafios que enfrentamos diante do enfraquecimento da democracia, em nome, sobretudo, do fortalecimento dos fundamentalismos e obscurantismos?

Professor João Carlos: Escrevi este texto com o Prof. Márcio Paiva da PUC Minas e nele tentamos levantar alguns aspectos das Filosofias de Hannah Arendt e Emmanuel Levinas. São dois pensadores de origem judaica que viveram a experiência do Nazismo e, desta forma, perceberam de uma maneira radical a destruição moral, política e social que o obscurantismo, a ignorância somada ao uso ilimitado da violência e a incapacidade de reconhecer a necessidade da convivência com o outro podem acarretar. Não existe um final feliz para este tipo de história. Como tudo na vida, estes fenômenos extremos passam, mas deixam um rastro de destruição difícil de superar. Como a democracia não deve se reduzir a uma simples forma de governo, mas deve ser pensada como uma verdadeira forma de vida, temos que levar a ideia democrática (por mais desgastada que esta palavra possa parecer) para as relações afetivas, para as relações de trabalho, para as relações religiosas etc. Neste sentido, cercear as manifestações religiosas de um grupo humano pode ser considerado um perigo para a democracia.