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A fé venenosa da intolerância religiosa

A fé venenosa da intolerância religiosa

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Nosso objetivo, com este artigo, é perspectivar o fenômeno da violência motivada pela intolerância religiosa como uma emergência que desafia a população negra cristã e os praticantes das religiões de matriz africana. Queremos afirmar que uma democracia não se governa pela fé venenosa. Isso significa dizer que, em um mundo cada vez mais plural, é preciso ter leis que garantam plena liberdade religiosa, política, cultural e civil. Por isso, citaremos aqui o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 diz: “Todo mundo tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar sua religião ou crença no ensino, na prática, no culto e na observância, isoladamente ou em comunidade com outras pessoas”.

© Fernanda Scherer

Em outras palavras, a discriminação religiosa, no entanto, não afeta apenas o povo de matriz africana. Acreditamos que os relatores do documento da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas consideram que nenhuma religião está a salvo de violações. É bastante provável, então, que a intolerância e o preconceito sejam comumente enfrentados por algumas religiões das quais você participa. A heresia e os hereges não são apenas uma imagem do passado, porquanto estão muito vivos e presentes neste século, por parte dos perseguidores daqueles que “ousam” professar uma religião diferente. É obvio que a liberdade religiosa está ameaçada em muitas partes do mundo, principalmente no Brasil.

O que está em jogo?

A resposta para essa pergunta nos leva a afirmar categoricamente que o que está em jogo é o preconceito contra o povo negro. Tal preconceito manifesta-se na cultura, na religião, economia e na política. Certamente, essa tensão nasce da sequela da escravidão, entretanto é preciso ir mais longe e mais fundo para explicar a violência que o povo negro sofreu e sofre. Refere-se aos sortilégios que povoam o universo espiritual do povo africano. Dentro desse quadro, no período colonial, a Igreja impôs aos negros um Deus dos brancos e até uma “alma” branca. Aqui está o drama: a Igreja, em vez de libertar, alienou. Vale lembrar a experiência de Fanon diante do silêncio da instituição religiosa católica. Ele, que representa todo o povo subalterno, faz uma crítica severa do modus operandi da Igreja, ao afirmar que: “os comunicados triunfantes das missões informam, na realidade, a importância dos fermentos de alienação introduzidos no seio do povo colonizado. Falo da religião cristã, e ninguém tem o direito de chocar-se. Uma igreja nas colônias é uma Igreja de bancos, uma igreja de estranhos. Ela não chama o homem colonizado para o caminho de Deus, mas para o caminho do branco, o caminho do Senhor, o caminho do opressor. E como sabemos, nessa história há muitos chamados e poucos escolhidos”

Além disso, sentimos ainda hoje as raízes de uma narrativa com um acento forte da visão teológica eurocêntrica que nos foi passada, no entanto a Igreja católica avançou nos documentos posteriores ao Concílio Vaticano ll (1962-1965). Ainda assim, as recepções desses documentos caminham lentamente nos corredores dos seminários, que são o lugar de formação do clero. Os presentes ordinários da igreja desconhecem ou desprezam o decreto e a declaração, como explica Oliveira: “Na Unitatis Redintegracio (UR), o concílio exorta os católicos a abrirem o diálogo com pessoas de outras religiões… Nostra Aetate (NA) fala da relação com as igrejas não cristãs, mostrando a necessidade do diálogo e condenando as perseguições”.

A esse respeito, observamos que uma parcela do clero negro é alienada em relação a cultura afro-brasileira, assim como parte do clero branco não é menos alienada. Por esse motivo, a relação com os congados e as religiões de matrizes africana sofre condenações que desqualificam a vivência religiosa dos fiéis em nome da fé, conforme a tese de que “Extra Ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação). Com isso, não é compreensível nem justificável que a história do catolicismo no Brasil diminuiu significativamente a coesão do povo negro, destruindo seus valores e desprezando sua cultura. De algum modo, os negros sobreviveram pela força dos espíritos dos antepassados e pelas feitiçarias, cujas forças simbólicas permitiram-lhes situar-se no mundo e escapar da dor e da morte.  É por aí que se pode correr o risco de cair em uma armadilha da violência, caso não haja uma hermenêutica da esperança escatológica de Deus amoroso que se desdobra para que todos os homens sejam capazes de se encontrar em sua diversidade (Mt. 25).

Por fim, o desafio da Igreja cristã é transformar esse olhar de desconfiança em uma nova visão de alteridade das culturas, ou seja, em possibilitar novos saberes teológicos, promovendo mais comunhão e diálogo, mostrando que a convivência é composta por diversidade. Por certo, necessitamos viver a comunhão e o respeito entre as religiões que professam sua fé diferente e saber que, sempre quando a liberdade religiosa é violada, outras liberdades sofrem logo em seguida. A liberdade religiosa, portanto, deve ser salvaguardada em primeiro lugar.