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Questões legais sobre o fim da vida

Questões legais sobre o fim da vida

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Considerações iniciais

Caríssimos leitores, antes de qualquer coisa, queria dizer que o Direito não é somente decorar leis. Existe todo um estudo sociológico, filosófico, antropológico e por quê não científico-religioso para entender como as leis atingem determinado grupo social. A morte,  assim como a vida, não precisa ser dita explicitamente no ordenamento jurídico (conjunto de leis de uma nação, por exemplo), para sabermos que ela precisa ter de alguma forma regulamentação ou determinação de sua existência, apesar da previsão do nascimento com vida e os tipos de morte estabelecidos pelo código civil.

Direito e Ensino Religioso não estão distantes, como a princípio podemos pensar. O Ensino Religioso, por exemplo, é a única disciplina citada textualmente em nossa Constituição Federal. Então, nada mais natural de que em seu conteúdo também possamos estudar os aspectos legais sobre o fim da vida.

Inicialmente, quando pensamos nos aspectos legais sobre o fim da vida, precisamos lembrar-nos dos aspectos da vida em si, a começar pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, prevista em nossa Constituição. Este princípio é pessoal, intransferível e irrecusável, ou seja, ninguém poderá abrir mão da sua dignidade e ela está presente na vida de todos os seres humanos. Este princípio é oriundo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas desde a Idade Média se debate a sua existência e importância com o Direito das Gentes

“Mas e aí? O quê isso tem a ver com a morte?” um leitor mais ansioso já deve estar se perguntando e eu respondo: tudo. É o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que faz com que as pessoas tenham o direito de terem um enterro digno, de serem devidamente identificadas e não enterradas como indigentes, direito a funeral e enterro conforme era sua crença religiosa e de seus familiares, proibição da pena de morte e debates sobre autorização de eutanásia e cuidados paliativos de doentes terminais, a ortotanásia. Todos estes efeitos que acabei de citar podem muito bem serem estudados na Ciência das Religião e, por sua vez,  tanto nas aulas de Ensino Religioso, como nos cursos de Direito. Em seguida, vou procurar abordar um pouco sobre cada um e gostaria que a cada explicação, você que está lendo fizesse uma reflexão sobre, pois tratar da morte é tratar da própria vida também.

O direito de viver e morrer dignamente

O direito de sepultar é algo cotidiano, porém, como a morte ainda é um tabu em nossa sociedade, poucos juristas se propõem a estudar tal temática por ela ser ainda vista como depressora ou macabra. Mas a verdade é que o Direito Funerário perpassa uma série de disciplinas importantíssimas para regulamentar este fato que permeia todas as sociedades humanas, passando pelo direito constitucional, administrativo, direitos humanos, direito civil, etc.

Dentro de todo este emaranhado jurídico, nos deparamos com um mundo de crenças e costumes sociais, culturais e religiosos que precisam ser observados concomitante à aplicação das leis. Por exemplo: algumas religiões têm o seu cemitério específico para os sepultamentos e outras não admitem, sob hipótese nenhuma, que o corpo seja cremado. Uma desatenção a isso e está formado o imbróglio jurídico.

Dar à família a oportunidade de realizar um enterro digno e que sejam feitos os rituais religiosos necessários, também é uma questão que deve ser protegida pelo Direito. O Estado laico não é um estado que proíba as pessoas de manifestarem suas crenças religiosas, pelo contrário, lhes dá condições para as manifestar livremente, até na última despedida. Isso está previsto no art. 5º da nossa Magna Carta, o princípio da Liberdade Religiosa, que deriva do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Todo bom estudante de Ciência da Religião já deve ter aprendido o quão importante é defender a liberdade religiosa dos cidadãos. Na hora da morte também.

Outro assunto no qual Direito e Ensino Religioso se encontram perfeitamente é a proibição da Pena de Morte. Quem nunca se questionou o porquê de o Brasil não permitir tal punição extrema, não é mesmo? Pois bem, o Estado Brasileiro é signatário do pacto de San José da Costa Rica, que não o permite abrigar em seu ordenamento jurídico pena cruel, de banimento, prisão perpétua, trabalhos forçados e morte. Também é uma proibição relacionada ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e várias religiões também não concordam com a morte como punição ou reparação de crimes.

Mais uma vez, alguns leitores podem questionar: mas o Estado não é laico? Pois bem, aqui a análise é a seguinte: o Direito, como dito no início do texto, não é uma ciência que estuda apenas a letra fria da lei. É preciso levar em consideração a sociedade que o constrói, as motivações que fizeram com que o legislador tenha pensado seriamente no mandamento “não matarás”, por exemplo, quando decidiu incorporar a proibição de pena de morte no ordenamento jurídico brasileiro. E, antes de tudo, legisladores são seres humanos, como nós e também têm suas crenças. Não há neutralidade nas Ciências Humanas em geral, mas devemos ser imparciais. O mesmo serve para o legislador. É como deve pensar o estudante de Ciência da Religião? Até onde minhas práticas religiosas interferem ou não na vida dos outros? Como as práticas religiosas dos outros inferem nas minhas? Eu faço com o outro aquilo que não quero que façam comigo? É um bom ponto de partida para uma reflexão sobre o tema.

Outro ponto das questões legais sobre o fim da vida e que perfeitamente se associam à Ciência da Religião e ao Ensino Religioso é a eutanásia. Para quem não sabe, a eutanásia é abreviação da vida de pessoas que se encontram em situação de saúde irreversível e, por isso, terminal. São pessoas que só estão vivas graças aos aparelhos que mantêm seus órgãos funcionando, por exemplo.

Organizações sociais como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outras entidades de diversos seguimentos religiosos já se manifestaram contra a liberação da prática no Brasil e o nosso país, por ter uma predominância religiosa cristã em nossa população, apoia esta proibição que é alvo de debates jurídicos, científico-religioso, filosóficos, antropológicos e sociológicos há anos.

Mesmo com o costume brasileiro de acompanhar as tendências do exterior, aqui a Eutanásia ainda não teve “vez” e a falta de debate sobre o assunto, se deve, em sua maioria, à proibição feita pelos próprios núcleos religiosos que influenciam seus fiéis a apenas não aceitarem a prática e não participarem de questionamentos sobre isso.

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Aqui, podemos traçar outro ponto de reflexão: até onde a religião pode alcançar quando se trata de aliviar o sofrimento alheio? Sim, é um sofrimento, pois muitas vezes, quadros irreversíveis, cujo corpo está vivo com ajuda de aparelhos, geram um desgaste emocional gigantesco à família, que, por várias vezes precisam recorrer à justiça para tentar pleitear tal direito. Será que as crenças religiosas podem estar em um patamar maior que o sofrimento humano? E quantos seres humanos também não têm direito sequer a atendimento de saúde eficiente, escolas boas, refeições dignas? São pontos de extrema importância que também merecem igual questionamento e, por quê não, revolta.

Por último, mas não menos importante, queria abordar com, você, caro leitor, a ortotanásia. Diferentemente da eutanásia, a ortotanásia é os cuidados paliativos feitos por médicos para doentes terminais, cujo objetivo é atenuar seu sofrimento ao máximo. Diferentemente da Eutanásia, muitas vezes o paciente de cuidados paliativos está lúcido, consciente, pode até andar, mas por conta de sua enfermidade, não há mais chances conhecidas ou possíveis de tratamento. Então, para aplacar a dor e outros sintomas da doença e permitir que os últimos momentos de vida da pessoa tenham certa leveza e dignidade, faz-se necessário estes tratamentos.

A ortotanásia é permitida no Brasil e é vista como uma espécie de ajuda de cunho humanitário que preserva o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Várias religiões tem em meio aos seus fiéis, voluntários para ajudar nos cuidados com o enfermo. Dentro de algumas religiões, o momento da ortotanásia é o momento de preparar tanto a pessoa enferma como seus familiares para o inevitável momento final.

Gostaria de finalizar dizendo que o estudante de Ciência da Religião, tal como o operador do Direito, precisa ser empático, acima de tudo. Você enquanto estudante pode se perguntar o porquê e eu respondo: porque lidamos com vidas. Entender o que envolve o fim da vida é compreender o seu percurso e isso implica diretamente em ser empático. Compreender as leis é importante, mas respeitar a crença do outro é vital.


Referências

HOSN, Magda Abou El. Direito de sepultar e as consequências no mundo jurídico brasileiro: jus sepulchri. Belém, PA: GTR, 2014.
BULOS, Uadi Lammêgo. Direito constitucional ao alcance de todos. São Paulo: Saraiva Jur, 2018.
DELSOM, Manuel. A eutanásia golpeia o rosto de Cristo. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, [S. l.], p. 1-1, 11 jul. 2018. Acesso em: 30 jul. 2019.
VITÓRIA, Francisco de. Relectiones: sobre os índios e sobre o poder civil. Brasília, DF: UnB/FUNAG, 2016.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Manual de direito civil – volume único. 21. ed. Saraiva. São Paulo. 2019.