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Religiões contra-hegemônicas na Amazônia: desafios de um campo de pesquisa

Religiões contra-hegemônicas na Amazônia: desafios de um campo de pesquisa

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Desde que comecei a estudar o campo religioso no Amazonas, alguns fatos têm me chamado atenção: em primeiro lugar, a persistência de algumas interpretações sociológicas/antropológicas consagradas entre as décadas de 1960/70 que forjaram a imagem de uma região sincrética, mas fundamentalmente católica. Em segundo, uma resistência em construir na esfera pública uma discussão mais horizontal – com diferentes grupos, movimentos e igrejas – sobre a diversidade e a pluralidade de crenças e práticas religiosas locais. Em terceiro, uma enorme dificuldade em positivar a laicidade, como se ela representasse uma ameaça à liberdade de crença.

Os três pontos, como não podia deixar de ser, se entrelaçam, na medida em que propiciam a manutenção de uma identidade católica (ou pelo menos cristã) para o território e colaboram para manter sob controle – às vezes mesmo sob o escrutínio das autoridades eclesiásticas – as religiões contra-hegemônicas.

No primeiro caso, parece que estamos diante daquilo que o sociólogo Ricardo Mariano chamou de “sincretismo hierárquico”, ou seja, o reconhecimento do outro desde que ele se mantenha em seu lugar de subalternidade. Assim, diferentes autores puderam apontar as formações heterodoxas da vida religiosa do “caboclo amazônico” – populações ribeirinhas e povos da floresta – e as persistências de um imaginário encantado entre esses grupos como resquícios ou sobrevivências de cosmologias e sistemas simbólicos que antecederam sua catequese incompleta.

Mesmo quando descreviam um intrincado processo de sobreposição de crenças (mais do que de fusão de elementos), o importante parecia ser sua autodeclaração católica, o culto aos santos, o consenso de que a noção de comunidade se dá em torno de uma devoção, de uma capela ou mesmo de uma festa. Isso garantiu, aliás, números robustos ao catolicismo entre essa população nos censos demográficos. Ir além desses trabalhos é importante para que possamos notar, com mais acuidade e de modo um pouco mais realista, a forte entrada dos grupos pentecostais na Amazônia durante a segunda metade do século XX e a emergência das identidades afro-indígenas.

Ocorre que a notação de vozes mais plurais só se faz na medida em que derrocamos a ideia de uma identidade homogênea, estática, fixa no tempo e no espaço. E, para isso, precisamos tanto fortalecer os debates sobre as religiões/religiosidades na esfera pública – Sim! Religião se discute – quanto abrir espaços para a participação dos grupos antes silenciados. Um exemplo talvez ajude a aclarar: quando cheguei a Parintins, em 2013, minha primeira atividade de pesquisa foi conhecer o que se havia produzido ali sobre religião. Duas tendências saltaram logo aos olhos: praticamente só havia trabalhos sobre o catolicismo (um ou outro sobre os Batistas – grupo evangélico com maior visibilidade local) e neles contemplavam-se mais as festas e formação de comunidades rurais, com laços de sociabilidade fortemente marcado pela Igreja. Outra questão é que não tardou para que me desencorajassem (assim como faziam com os alunos de graduação) a estudar temas que se contrapusessem à identidade oficial do lugar: católica. Parintins é sede de um bispado comandado há muito por prelados italianos. Sua história oficial foi escrita por um missionário italiano de grande prestígio (D. Arcângelo Cerqua), que também compôs um hino católico para a cidade, fundou ali um colégio católico e uma santa casa – hoje hospital, entre outras obras sociais. Além disso, a Igreja possui a rádio mais popular da cidade, jornal impresso, acesso a várias benesses do Estado, ótimas relações com os poderes políticos instituídos. 82% da população se reconhece católica. De forma subliminar, estava posto que o domínio católico não deveria ser questionado, nem mesmo criticado e que não era prudente visibilizar demasiadamente outras expressões religiosas.

Também as formas de reprodução da hegemonia pareciam inabaláveis. A maioria das escolas continua declaradamente avessa aos princípios (legais) da laicidade. Reza-se no início das aulas e ostentam-se comumente símbolos católicos nos prédios escolares – vários deles alugados pela diocese aos governos do Estado e do Município. A defesa da laicidade soa, nesse cenário, quase como blasfêmia – uma agressão à maioria ou falta de reconhecimento da união histórica entre a Igreja e a administração pública. Assim completa-se o ciclo: a manutenção da proeminência católica se faz sufocando grupos religiosos insurgentes, sobre os quais não se deve falar, para os quais não se deve olhar. Menos ainda contemplá-los com sujeitos em que possam exprimir outras visões, corporeidades e estéticas.

Lamentavelmente, esse não é o caso de apenas um município no interior do Amazonas e sim uma situação mais ou menos generalizável para vários pontos da Amazônia brasileira. Daí a questão central deste artigo: como driblar os desafios postos às religiões afro-indígenas na Amazônia, construindo um campo de pesquisa com grande impacto social? Tentemos algumas respostas.

Reconhecer a diversidade

Discutir os processos de pluralização religiosa parece sempre um bom caminho, embora ele tenha se mostrado, na maioria dos casos, insuficiente. Sabemos hoje que há muito o campo religioso brasileiro encontra-se em ebulição e que a temperatura dessa transformação vem subindo nas últimas décadas. À queda expressiva do número e do prestígio de católicos opõe-se o crescimento dos evangélicos (especialmente dos pentecostais) e a multiplicação dos sem-religião. Mas há mais de 20 anos o sociólogo Antonio Flávio Pierucci já questionava se era mesmo possível falar em “diversidade” quando o retrato ainda mostrava um país basicamente cristão. Na mesma esteira, autores como Vagner Gonçalves, Ari Pedro Oro, Ricardo Mariano e Emerson Giumbelli dissecavam em suas pesquisas os novos projetos de “cristianismo hegemônico” e a eclosão de um sem número de violências em sua “guerra nada particular” contra as religiões afro-brasileiras.

Hegemonia parece ser um conceito que nos fornece aqui uma chave interessante de análise. A ideia do Brasil como maior país católico do mundo embalou vários projetos da Igreja – inclusive o de criar um partido católico que nunca decolou – e serviu para legitimar as aproximações das lideranças eclesiásticas e leigas com o Estado, sempre com o propósito declarado de salvaguardar os valores “morais” e religiosos da maioria. Hoje, em compensação, argumentos e organizações do mesmo tipo se espraiam entre os evangélicos, de tal modo que sua investida para aparelhar o Estado algumas vezes se soma e outras vezes se choca com os interesses católicos (vejam-se, como exemplo, a convergência das pautas defendidas pelas bancadas religiosas no Congresso Nacional). Mais do que uma operação pragmática, que se dá no campo das lutas políticas, o que sempre esteve em jogo foi uma batalha sobre as mentalidades, representações e mobilizações sociais, isto é, um domínio sobre os corpos e “as almas” dos rebanhos. Conforme já propunha Antônio Gramsci, estão envolvidos nesses processos vários sujeitos e grupos – escolas, opinião pública, intelectuais, empresários, políticos e, claro, bispos, padres e pastores – que ajudam a fabricar significados, valores e crenças formais e a exportá-los, como legítimos e às vezes inquestionáveis, para grande parcela da população. Como define Raymond Willians, não se trata portanto apenas de dominação ou manipulação, mas da criação mesmo de um conjunto de “práticas e expectativas sobre a totalidade da vida” que informa a “percepção de nós mesmos e do mundo” e nos orienta assim sobre como e onde agir.

Disso, podemos deduzir os poderes hegemônicos não convivem bem com o pluralismo democrático e nem com formas contestatórias. Ao contrário, servem à afirmação de “verdades” e de sujeitos/grupos dispostos a defendê-las a todo custo. Historicamente desenvolveram-se dentro dos empreendimentos coloniais e serviram para afirmar os modelos de civilidade e de pensamento formulados nos centros de poder político e econômico. Podem, de alguma forma, aceitar a diversidade, desde que ela pareça inócua (como no caso de uma pluralização interna do Cristianismo, em que o vetor parece levar à adesão a novos conservadorismos), mas, jamais admitem um questionamento das suas formas de saber e de lidar com as coisas desse e de outros mundos. Fortes aliados do Estado, movem contra seus adversários a violência das armas e das ideias socialmente legitimadas, conduzindo, não raro, ao epistemicídio, que “é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural” (segundo a formulação de Sueli Carneiro).

A compreensão da forma, do significado e do potencial questionador das expressões contra-hegemônicas só pode ser obtida, assim, fora dos limites impostos pelos grupos majoritários, ou nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, para além da linha abissal, que institui para o “outro” um espaço de invisibilidade. Para o caso específico das religiões, o desafio tem sido desenhar um novo universo de plausibilidade e enunciação, fruto do diálogo com as teorias pós/decoloniais, multiculturais, antirracistas, bem como com as lutas emancipatórias travadas pelos movimentos negros, quilombolas, indígenas e coletivos de mulheres e LGBTQ+. Eles, portanto, têm nos ajudado a abandonar as abordagens essencialistas (às vezes funcionalistas) da religião para assumir os “múltiplos lugares epistêmicos subalternizados”, dos quais diferentes grupos, movimentos e tradições religiosas partem para construir suas relações com a natureza, o corpo, enfim, com a vida. A própria ideia do que é sagrado torna-se, agora, muito mais ampla e dinâmica.

 

Produzir memórias/histórias que durem no tempo

O principal desafio me parece ser contornar o silêncio ao qual as religiões contra-hegemônicas foram relegadas. Esse deve ser um trabalho paulatino, construído a muitas mãos e precisa surgir não apenas como um esforço acadêmico, mas como uma aposta na construção coletiva, colaborativa, de um conhecimento que fortaleça a esfera comunicativa e, nela, a participação de diferentes grupos, movimentos religiosos e igrejas. Nesse caso, as pesquisas, para além de seu caráter científico, devem fortalecer o diálogo horizontal entre diferentes tradições, retirando da condição de subcidadania as religiões afro-indígenas, por exemplo. Deve colaborar para desfazer os estigmas sobre as religiões mediúnicas e combater todos os tipos de preconceitos.

Há três pontos que me parecem fundamentais: em primeiro lugar precisamos construir novas bases de dados, nos quais esses “outros” sujeitos apareçam e nos quais recebam o devido reconhecimento. Novamente, um exemplo parece necessário: em Parintins, quando consideramos os dados estatísticos oficiais, produzidos por meio dos Censos Demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), chegamos facilmente à conclusão de que não existe ali religiões afro-brasileiras organizadas, já que nunca houve na série histórica nenhuma declaração de afrorreligiosos. Mas o dado é profundamente enganoso e parece ser fruto de um ambiente repressivo, eivado de violências simbólicas contra a pajelança, a umbanda, a ayahuasca, entre outras. Em nossos levantamentos, encontramos mais de 30 lugares de culto, que vão desde pequenas searas até terreiros devidamente registrados e reconhecidos por associações de cultos afro. Neles estão saberes ancestrais aos quais a população recorre com bastante frequência para curar os males do corpo e do espírito, com banhos, garrafadas, defumações, rezas, benzeções, puxações.

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O segundo ponto é que os próprios grupos precisam participar ativamente da criação desses registros. Há, para tanto, um leque variado de metodologias, que levam a diferentes produções. Algumas boas práticas podem ser encontradas nas cartografias sociais, que não se circunscrevem à “descrição de cartas ou a um traçado de mapas e seus pontos cardeais com vistas à defesa ou à apropriação de um território”, mas antes a uma “descrição de pretensão plural [que] compreende práticas de trabalho de campo e relações em planos sociais diversos”, envolvendo “múltiplos agentes, os quais contribuiriam à descrição com suas narrativas míticas, suas sequências cerimoniais, suas modalidades próprias de uso dos recursos naturais e seus atos e modos intrínsecos de percepção de categorias (tempo, espaço, lugar) e objetos”, conforme a descrição de Alfredo Wagner Berno de Almeida. Há também a opção dos inventários participativos, propostos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como forma de considerar “a comunidade como protagonista” para levantar, “descrever, classificar e definir o que lhe discerne e lhe afeta como patrimônio, numa construção dialógica do conhecimento” acerca de suas referências culturais. Uma terceira possibilidade seria ainda a produção de fontes a partir de narrativas orais e/ou videográficas, nas quais as lideranças religiosas se sentisse motivadas a narrar as suas trajetórias pessoais, bem como a de suas comunidades, estabelecendo novas interfaces entre suas (auto)representações e as da sociedade local.

Por fim, o terceiro ponto é de que essas memórias/histórias precisam durar no tempo e circular nos espaços públicos. Temos hoje um conjunto já relativamente grande de estudos sobre os povos de terreiro, as religiões ayahuasqueiras e mediúnicas, os novos movimentos religiosos ou as tradições esotéricas. Mas isso, por si só, não as retira de um lugar incômodo frente ao cristianismo hegemônico e nem garante maior visibilidade e aceitação social. A maioria dos estudos monográficos não recebe nenhuma publicidade e circula, quando muito, nos ambientes restritos de bibliotecas ou repositórios digitais. Os estudos publicados ainda são de difícil acesso (sobretudo aqueles publicados por pequenas editoras) até mesmo para pesquisadores. Além disso, o material coletado/produzido nas pesquisas é guardado, de forma individual (ou solitária) pelos próprios pesquisadores, que em alguns casos tem dificuldades até para fazer uma etapa de socialização/devolução dos resultados com os próprios sujeitos sociais da sua pesquisa.

Mudar essa realidade é difícil e parece custoso, mas proponho que tentemos nos valer dos novos recursos digitais disponíveis, para construir bancos de dados e repositórios digitais, alimentados por meio do diálogo entre os grupos de pesquisa, pais e mães de santo, mestres daimistas, pajés, sacacas, etc. Isso evitaria que retornássemos sempre ao grau zero (como no caso das entrevistas) e abriria a possibilidade de avaliarmos os avanços na pesquisa, por meio de novas hipóteses e do cotejamento de fontes e materiais etnográficos produzidos em contextos variados. As universidades também podem abrir as portas para todas essas expressões religiosas, propondo fóruns nos quais todos estejam igualmente representados, na medida em que se interessem na construção de um diálogo que fortaleça ao mesmo tempo a laicidade e os direitos de cada grupo, movimento religioso ou igreja assumir seu lugar na esfera pública.

Agradecimento

Registo aqui meu agradecimento à profa. Clarice Bianchezzi, que coordenou comigo a pesquisa intitulada “A religião na(s) fronteira(s) – espaço público e reconfigurações do campo religioso no médio-baixo Amazonas”, da qual derivam boa parte das ideias e dos dados presentes no texto. Também sou grato à Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) pelas bolsas que foram concedidas a nós e a nossos bolsistas e que garantiram a viabilidade dos nossos projetos ao longo dos últimos anos.


Referências

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