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Pajelança e encantaria na Amazônia brasileira

Pajelança e encantaria na Amazônia brasileira

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Roosewelt Pinheiro / Agência Brasil

O boto, segundo os moradores, é atraído pelo cheiro do sangue menstrual, por isso sua preferência recaia sobre as mulheres menstruadas que se atrevem a tomar banho nos rios, andar em embarcações de pequeno porte ou tomar banho sozinhas após as 18 horas nas beiras de rios e igarapés, como também nos afirma Angélica Maués.

No caso de Itapuã segundo Maués, as mulheres usam um dente de alho nas mãos para afugenta-los, e em são Francisco do Piririm, quando os botos se aproximam das embarcações, as pessoas jogam farinha de mandioca na água, pois segundo os nativos isso os afugenta devido a uma perfuração que esses possuem na parte superior da cabeça.

Outro fato muito comum naquela região era a  ‘flechada de bicho’  que é apontada por Maués, como uma doença de causa não natural, considerada anormal, que apresenta como sintoma, dores em alguma parte do corpo com exceção da cabeça e dos encruzos, e seu tratamento não pode ser feito a base da medicina tradicional, tem que ser tratada  por um pajé, na vila em questão as doenças eram em geral chamadas de maleficio, que poderia ter duas causas: uma delas por seres encantados que eram as chamadas flechadas de bicho, tidas pelos nativos como naturais por virem da natureza, e malefícios causadas pelo homem, quando havia manipulação das forças da natureza para se prejudicar alguém, chamado de feitiço, o que Cordeiro, define como um modo sociocultural de adoecer e de perceber o fenômeno como prova persuasiva da existência de um mundo transcendente ao da experiência cotidiana comum.

Naquela comunidade, a natureza era considerada encantada e viva. Os espaços, animais e outros elementos possuíam gostos, vontades, aborreciam-se, agradavam-se, adoeciam e curavam as pessoas. O ‘encantado’ é uma pessoa que não morre, mas que segundo Maués, passa a morar em um outra dimensão da natureza.

A vila contava com um pajé, sua residência estava localizada fora do meio urbano, seu ‘dom’ era de agrado, e uma de suas entidades dizia ter vindo de muito longe, de uma região de águas profundas, de onde seu filho tinha vindo, pois havia se agradado dele e por isso o acompanhava. Esse movimento migratório de pajés é tratado por Pacheco em Diásporas de encantados na Amazônia bragantina.

O pajé atuava como ator principal nos casos de atendimento médico e espiritual da região. Quando me refiro às doenças espirituais, ligadas às forças da natureza, fenômenos tidos geralmente como sobrenaturais que tinham influência no dia a dia dos nativos. A título de exemplo, destaco a panema, que segundo Maués, é uma força mágica que incapacita o indivíduo para a realização de suas empreitadas. Dentre as doenças sobrenaturais pode-se citar ainda mal olhado, quebranto, flechada de bichos, assombrações, etc.

O curador, como também era chamado o pajé, ao fazer o primeiro atendimento de um paciente dava-lhe um diagnóstico sobre seu estado de saúde, onde informava se o malefício que o afligia era de ordem espiritual ou não. Era o pajé, portanto, uma figura central e de suma importância dentro desta comunidade, não esquecendo das, rezadeiras, benzedeiras e parteiras, que nem sempre possuíam o dom da possessão, mas detinham um grande conhecimento de rezas e também na manipulação de ervas medicinais muito solicitadas, como nos afirma Segundo Silva.

Os encantados que se manifestam no pajé, assumem identidades de animais ou vegetais – espíritos da natureza que transitam entre dois ou mais mundos.  Das entidades que se manifestavam através do Sr. Juvenal, posso citar os mestres: Pitomba, Paricá, Cascavel, Sucurijú preto, Poraquê Pretinho, Tesoureiro, Pirarucu, Mafurá, mestre Sapo, entre outros.

Percebe-se que todas essas entidades possuem uma relação direta com a natureza, haja visto que este é um espaço sagrado e os nomes das entidades advém da fauna e da flora local, sejam eles repteis, anfíbios, peixes, pássaros ou árvores, etc.

Existiam muitas outras entidades ou mestres que o pajé incorporava, esses mestres, segundo Maués, foram seres humanos que se encantaram, ou seja não passaram pelo processo da morte, eles habitam o centro das matas ou o fundo dos rios, reproduzindo um imaginário amazônico que, de acordo com Paes Loureiro, se constrói a partir de duas simbologias; o rio e a floresta.

Para Maués, a pajelança cabocla, é amplamente praticada pela população rural da Amazônia, e é uma prática xamânica constituída de elementos mágico-religiosos, essa matriz religiosa era uma atividade comum na naquela região. Durante os anos 60 do século passado até os dias atuais, sucederam-se quatro pajés, sendo duas do sexo feminino, e dois do sexo masculino. No vale do amazonas, segundo Galvão, o pajé é um bom católico, mas ele não mistura suas práticas com aquelas da igreja.

Muitas vezes foram feitas sessões com o objetivo de tratar pessoas com panemeira, certa vez o pajé fez uma seção para dar atendimento espiritual à uma senhora, pois ela de repente jogava-se no chão e começava rolar de um lado para o outro querendo ir em direção ao igarapé, fazia-se necessário várias pessoas para segurá-la, tamanha a força que ela  fazia, para seguir em direção ao igarapé.

O senhor Juvenal, quando foi chamado pela primeira vez para tratá-la, disse que a senhora possuía um dom de nascença, pois, segundo ele, existem dois tipos de dons: o de nascença e o de agrado, e que ela seria uma pajé, pois o seu dom era de nascença, segundo Cavalcante, esse tipo de dom já se traz do ventre da mãe, já o de agrado, é um dom que se manifesta tardiamente.

A Chamada era realizada à noite sob a luz de uma lamparina que, geralmente, ficava por trás de uma parede. Só lembrando que nessa região os encantados habitavam ou os centros da matas ou o fundo dos rios e igarapés, a luz que clareava o espaço onde a sessão era realizada era produzida pelo fogo do tauari do pajé, que sentado em um banquinho, sem camisa, vestido apenas com uma calça branca, e com três faixas, amarradas em seu corpo, uma no braço, uma na cabeça e uma na cintura, sacudindo o maraca em sua mão direita e na outra o cigarro de tauari, iniciava a sessão pedindo que se abrisse o portal entre os dois mundos para que os mestres pudessem vir em socorro dos humanos e trazer consigo o conhecimento do mundo da encantaria sobre os elementos da natureza que podiam curar tanto os males físicos como os espirituais, que Maués classifica como doenças naturais e não–naturais.

Entre os encantados mais conhecidos da pajelança amazônica, maués cita mestre Cobra Norato, que possui sua lenda narrada em várias versões, e em diferentes regiões da Amazônia, sendo provavelmente de origem indígena.

A pajelança cabocla praticada na região do São Francisco do Piririm possuía algumas diferenças bem marcantes em relação àquelas praticadas em outras regiões da Amazônia, como por exemplo a praticada na região do Salgado, no estado do Pará, citada por Maués e muitas semelhanças com pajelança citada por Galvão, uma dessas diferenças com relação as praticadas na região do salgado com afirma Maués, é o fato de que os pajés que atuavam na Vila de são Francisco, não possuírem um lugar especifico para a realização de suas práticas litúrgicas. Era comum que eles fossem até o paciente e em sua casa realizassem seu ritual de chamada. Esses pajés, carregavam sempre consigo um banquinho e uma pequena mala onde traziam seus aprerparos, que constava basicamente de sua cinta, suas faixas, um maraca e cigarros de tauari ou material para fazê-lo, e seus rituais não apresentarem nenhuma característica sincrética com o cristianismo, pois não existem altares, rezas ou cânticos que fizessem referências ao catolicismo.

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Destaca-se ainda o conhecimento espiritual e a cosmovisão indígena do pajé, tendo todo seu conhecimento nativo usado em prol da comunidade, e sua mediunidade era vista como um dom, e como tal deveria ser usado para o bem das pessoas ao seu redor. O pajé se considerava apenas o instrumento de manifestação desses dons, e não cobrava por seus serviço, para ele atender a comunidade era sua obrigação.

A ausência do sincretismo, em tempos tão recentes, onde a prática do catolicismo popular era tão presente, nos leva a questionar o porquê a prática da pajelança nessa região consegui se manter próxima a sua origem indígena e distante do cristianismo.

A pratica da pajelança que ainda pode ser encontrada nas regiões próximas a vila de São Francisco do Piririm, encontra-se ameaçada pela chegada de grandes agricultores, que vem desmatando para fazer a plantação de soja, destruindo a natureza e o habita dos encantados

A pajelança, seus ensinamentos e ainda a relação direta com o meio ambiente podem criar no individuo uma sacralização pela natureza, despertando assim uma consciência ambiental, onde as folhas, flores, rios, córregos, pedreiras etc. precisam ser respeitados, pois, segundo Mauss nessa cosmovisão a natureza possui Mana, que Geertz determina como força vital traduzida pela denominação êmica de axé.

A pajelança pode criar uma consciência acerca do universo sobrenatural, da dicotomia entre sagrado e profano, como nos afirma Eliade, e da mística que se diferencia a partir do fenômeno religioso analisado,  o que  possibilita ao ser humano a acreditar a partir da pajelança em um mundo que existe para além do universo em que vivemos.


Referências

CAVALCANTE, Patrícia. De “nascença” ou de “simpatia”: iniciação, hierarquia e atribuições dos mestres na pajelança marajoara. 2008.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio Sobre o Simbolismo Mágico- Religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. São Paulo: Nacional, 1955.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Kloogan S/A, 1989.
MAUÉS, Raimundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Estud. Av. vol 19 no. 53 São Paulo jan./Apr. 2005.
MAUÉS, Raimundo Heraldo. A Ilha Encantada, Medicina e Xamanismo Numa Comunidade de Pescadores. Belém: gráfica editora universitária, 1990.
MAUÉS, Maria Angélica Motta. Lugar De Mulher: Representações sobre os Sexos e Práticas Médicas na Amazônia, (Itapuá/Pará).
PAES LOUREIRO, João de Jesus.  Cultura Amazônica-Uma Poética do Imaginário. 3ª. Edição. São Paulo: Escrituras Editora, 2000.  Acessado em: 30 de junho de 2019.
SILVA, Gerônimo. No Ar, na Água e na Terra: Uma Cartografia das Identidades nas Encantarias da “Amazônia Bragantina”, Belém, PA, 2011.
SILVA, Jerônimo Silva e; SARRAF-PACHECO, Agenor. Diásporas de encantados na Amazônia Bragantina. Horizontes Antropológicos (Online), v. 21, p. 129-156, 2015.
SILVA, Maria da Conceição da Cordeiro. Doença De Feitiço: Aspectos da Cosmologia Amazônica. UNIFAP, 2017