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O diálogo entre Igreja Católica e MST: a oportunidade da virada ecológica

O diálogo entre Igreja Católica e MST: a oportunidade da virada ecológica

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O presente texto visa pensar a necessidade de articulação entre Igreja Católica e MST com vistas à promoção da defesa da região amazônica, tomando como referência a Amazônia Legal, pensando a preservação ambiental para um homem integral, porque matéria e espírito, e entendido na sua reintegração com a natureza. Desejo aqui provocar uma reflexão sobre aspectos jurídicos sobre terra e ambiente, as relações cidade/campo e homem/natureza; pensar caminhos que possam confluir para uma visão mais ampla de matriz mística acerca do papel do homem em seu habitat.

No ordenamento jurídico brasileiro, o Estatuto da Terra (1964) estabeleceu requisitos que consideram a conservação dos recursos naturais como parte da função social da propriedade. A Constituição Federal de 1988 abriga essa demanda propalando que a função social seria exercida com a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.

O descumprimento da função ambiental da propriedade rural tem previsão na lei de inúmeras sanções. Dentre as principais, Gonçalves e Ceresér na obra “Função ambiental da propriedade rural e dos contratos agrários” listam a desapropriação em casos de agravo à qualidade de vida, dano aos ciclos biológicos e a diversidade; a restrição de acesso ao crédito rural com previsão de responsabilidade das instituições credoras em caso de descumprimento da legislação ambiental; pode caracterizar conduta criminal, quando o dano ambiental é causado de forma dolosa ou culposa, conforme previsto no art. 68, da lei 9605 de 12 de fevereiro de 1998; por fim, veda-se a posse por usucapião em decorrência da não obediência da codificação ambiental.

As diretrizes para se planejar empreendimentos ambientais com foco na eliminação da divisão antagônica do trabalho entre campo e cidade deveriam levar em conta três fatores básicos: a) uma distribuição espacial mais uniforme da população; b) a integração entre agricultura e indústria; c) recuperação do solo e provisão de melhor qualidade através da reciclagem dos nutrientes. O desenvolvimentismo ganhou o Brasil a partir da década de 1950 e trará na sua esteira na década de 1980 a chamada “revolução verde” que abrira o caminho para a ascensão do “capital verde” na década seguinte. Na prática o desenvolvimentismo consistia em um reordenamento do espaço criando novas estruturas viárias e acesso à energia com vistas à produção.

Cabe ressaltar que a modernização da agricultura impulsionou o crescimento econômico no campo, mas não logrou ampliar a oferta de produtos agrícolas no mercado interno haja visto a ênfase nas commodities de exportação e nem tampouco alargou o mercado de trabalho pois as novas tecnologias são poupadoras de mão-de-obra na frente agrícola e nocivas ao meio ambiente, em particular as técnicas agroquímicas.

Nesse sentido, esse processo de consumo da natureza pelo homem pode ser analisado em perspectiva marxista. Na interpretação original da visão marxista sobre a questão ecológica empreendida por Bellamy Foster,  na obra “A Ecologia da Marx”, podemos identificar o conceito de “metabolismo” para indicar o processo de trabalho como uma relação entre o homem e a natureza no qual se estabelece a mediação física entre ambos que permite a sobrevivência humana. Contudo, uma “falha metabólica’ teria surgido como efeito colateral da relação entre a produção capitalista de exploração predatória tanto do homem como da natureza e do antagonismo entre cidade e campo. É aqui que entram em cena as revoluções agrícolas.

Tanto a agricultura quanto indústria de matriz capitalista tem no seu cerne a prática da exploração crescente de solo e do trabalho. Marx entendia que a atividade laboral visa criar valor de uso a partir dos recursos naturais de modo que o fluxo circular econômico inclui por definição a interação metabólica entre seres humanos e natureza. A análise marxista denuncia que a expulsão dos campesinos da terra constitui parte essencial do processo de expansão do capitalismo no contexto agrário pois é condição prévia para a instalação da grande lavoura. As consequências sociais são o acirramento da polarização entre pobres e ricos, entre campo e cidade.

Em síntese, tem-se que os efeitos perversos do capitalismo periférico incluem a degradação da natureza; a posição subalterna do capitalismo agrário no contexto internacional e a marginalização do campesinato. O fator básico que explica essa condição reside na constatação de que numa economia periférica a produção tende a ser uma extensão das economias centrais que drenam riquezas, inexistindo uma conexão objetiva com a economia local. E, deste modo tem-se que: tudo se passa no local, mas o circuito do capital é global.

A questão agrária ganha as vestes religiosas da luta pela “terra sagrada” enquanto meio de vida da população campesina e dos povos originários. Nesse sentido, muito atual e pertinente, a realização do “Sínodo para a Amazônia”, que tem como lema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, está previsto para ocorrer em outubro do corrente ano de 2019. Com relatoria do Cardeal Cláudio Hummes, o referido Sínodo consiste numa ação da Igreja Católica para, munida de sua tradição de luta popular, unir forças aos movimentos que defendem a vida e ambiente amazônicos.

As diretrizes “Sínodo para a Amazônia” consistem no reconhecimento do território como espaço vital para milhares de espécies vivas e o homem como vetor que repousa na dualidade conservação/predação, cabendo à Igreja, junto aos movimentos sociais, defender a conservação ante os intentos do “capital verde” e outros eufemismos gerados no seio do capitalismo predatório com vistas a legitimar a degradação da natureza. O patrimônio ambiental da Amazônia dialoga com o acervo cultural dos povos tradicionais da floresta tropical como legítimos habitantes. Nesse sentido, os saberes nativos constituem parte do patrimônio cultural a ser protegido pari passu à preservação ambiental.

Os chamados “povos das águas”, em particular a população ribeirinha, representam o próprio fluxo de pessoas, produtos e saberes pelas veias abertas da Amazônia. Reconhecer a cidadania e prover acesso a direitos é tarefa urgente de uma sociedade que se pretende plural e inclusiva. O mesmo deve se dizer dos povos indígenas, legítimos detentores do direito de usufruto das terras amazônicas, cabendo ressaltar que desde tempos imemoriais sua dinâmica demográfica e produtiva não tem a dimensão predatória do capitalismo e por isso mesmo não colocam em risco a sobrevivência da floresta tropical, à qual o indígena procura se integrar invés de submetê-la a interesses estranhos à ecologia própria que a rege. É nesse sentido, guiada pela ecologia dos saberes nativos, que a Igreja Católica intenta ressignificar a relação homem/natureza/terra com vistas a recuperar a harmonia edênica perdida pelos pecados do capital.

E como o MST, com sua história e agenda de luta pela terra pode colaborar com a questão amazônica no diálogo com a Igreja? O ponto chave consiste na força integradora do MST por meio da luta por conquistas sociais para a população campesina (terra, saúde, educação, etc), na promoção de meios de produção de identidade (simbologia) e motivação para a luta (mística) que permitem a manutenção do encantamento do mundo, em contraposição à lógica do capital. Aqui temos um evidente caso de religiosidade como ferramenta de resistência com importante papel na construção identitária dos movimentos campesinos com origem na Teologia da Libertação e sua associação entre a fraternidade e a noção de luta de classes – a “opção preferencial pelos pobres”, conforme exposto por Antonio Julio Menezes Neto no texto “A Igreja Católica e os movimentos sociais do campo”.

Desse processo emerge a mística campesina. Mas o que isso significa? Na explicação de Roseli Sallete Caldart, podemos identificar três significados para a “mística”: 1. no sentido religioso “mística” é sinônimo de “mistério” e se liga à espiritualidade e ao aspecto cósmico da existência humana, justificando os sacrifícios terrenos pela expectativa da consumação das promessas divinas, de modo que para ser efetiva precisa derivar um ethos que reverbere num conjunto de ações verbais, físicas e psíquicas direcionadas ao plano espiritual; 2. No sentido político, a mística evoca o carisma que há em cada sujeito social, de modo a solicitar o uso das qualidades pessoais a serviço do interesse coletivo; 3. No âmbito dos movimentos populares, a mística é captada como parte da expressão cultural e dos seus valores constitutivos, de modo a enunciar as relações de pertencimento do sujeito em relação ao grupo social, sendo essencial para a memória da luta coletiva

Por meio da mística, a memória da luta é trazida à luz mediante três elementos centrais: 1) as ferramentas de trabalho no campo; 2) os alimentos produzidos na terra; e, 3) a arte popular dos cantadores, griôs, artesãos, etc; conforme alerta João Rodrigues Pinto no texto “Metáforas da luta pela terra”. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) tem papel essencial para um processo de articulação da luta política em contraste com o messianismo que antecedeu – a invés de esperar uma “terra prometida” futura, colocou-se em perspectiva a construção de uma “terra sem mal” no tempo presente.

Pelo exposto, podemos identificar os elementos que compõem o mix ideológico que permitiu a ascensão do MST: a) visão e ativismo marxista; b) catolicismo popular e, c) práticas comunitárias rurais. Essa configuração permitiu agregar ao conceito de lutas de classes também a noção de fraternidade. A ideia de libertação humana no plano terreno se expressava com perfeição na luta pela terra e isso seria uma condição sine qua non para uma ordem social cristã. Por meio da espiritualidade da mística sem-terra ensina: a) a solidariedade (ser parte de um todo); b) o companheirismo (dividir o pão) e c) a comunhão (o encontro com o outro), na busca de se opor ao “demônio” do mercado com suas práticas de alienação, consumismo e exploração.

O ambiente pensado como habitat que abriga diferentes comunidades urbanas e rurais, citadinas e ribeirinhas, pioneiros e migrantes, povos indígenas e colonos. É preciso fazer o contraponto à cultura do consumo, a qual, no girar da roda da fortuna do capital, degrada a natureza e promove a prática do descarte do meio ambiente e sua gente. A convergência entre natureza e humanidade encontra na Amazônia terreno fértil e talvez sua última chance, exigindo esforços concentrados de Estados e Igreja. Da experiência amazônica se espera criar as bases para a preservação ambiental que possam se espraiar para outras regiões do globo também em situação vulnerável pelo avanço do capitalismo predatório. O diálogo com os povos originários deve ser estabelecido como uma condição sine qua non para uma nova articulação entre homem e natureza.

Devemos visualizar as identidades amazônicas como formas de expressão cultural e social legítimas. São povos que por séculos vem coabitando a Amazônia com as demais espécies, rios e a floresta. A espiritualidade nativa está em perfeita comunhão com a natureza e é justamente com essa “teologia selvagem” que o cristianismo precisa dialogar para ampliar seus horizontes e entendimento sobre a “criação divina”: ser a imagem e semelhança do Criador, para além de um privilégio consiste em grandiosa responsabilidade para com o universo criado no qual habitamos. Pensar a vida terrena como o curso do grande rio Amazonas com seus afluentes em direção ao mar aberto. Pensar a floresta como o paraíso que não podemos perder, o “último éden” que nos restou. E nesse sentido, as forças que engendram a degradação da floresta encarnam o próprio Mefístófeles moderno, a verve demoníaca que almeja destruir a obra divina, a começar pelo homem – mas aí reside a astúcia do espírito dos tempos modernos: pela alienação ou ganância, colocar o homem contra a obra divina da natureza para que o primeiro siga o caminho da auto-destruição – a natureza é o espelho no qual o homem deixou de ver seu reflexo. Recuperar a humanidade da natureza e [re]naturalizar o homem religando ambos ao Criador é a tarefa de uma teologia ecológica.

A Igreja Católica pode e deve, justamente no diálogo com o MST, pensar e promover uma outra forma de agir humano com relação à natureza, dessa feita mais espiritual no sentido de reconhecer a floresta como entidade viva e da qual se provê vida – a virada ecológica, para a qual a ecologia de saberes e a agroecologia já envidam esforços; e assim atuar enquanto agente capaz de mover “montanhas de ignorâncias” e proteger a floresta com seus povos e seus saberes. A pedra fundamental já foi lançada na III Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla (1979), que num duplo movimento, olhando para trás, fez a mea-culpa pelo envolvimento dúbio da Igreja com o processo de dominação das populações nativas no decurso do processo colonial e, olhando para frente, abraçou as populações autóctones como nossos semelhantes – reconhecendo nesses “o próximo a que devemos amar como a nós mesmos”. Com a encíclica Laudato Si (2015) a relação homem/natureza se articula na dimensão mística da relação mais ampla Deus/criação e revela nosso pecado: ao submeter a natureza aos seus desvarios o homem buscou, pelo “espírito demoníaco” do tempo, usurpar o lugar do Criador, que em sua infinita sabedoria estabeleceu Terra e Céus em perfeita harmonia. Nós, homens e mulheres do tempo presente, precisamos reconhecer que no antropoceno resta evidente que somos o fator deflagrador da escalada sem precedentes no desequilíbrio ambiental. É tempo de nos convertermos. A hora de reescrever a nossa “história natural” chegou e a Igreja tem em suas mãos uma nova oportunidade para cuidar de nossa “Casa Comum” tendo como eixo a comunhão com a terra viva & e a floresta sagrada.


Referências 

BRASIL. Lei Nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Estatuto da Terra. Disponível em: www.planalto.gov.br [acessado em agosto de 2019] BRASIL. Lei Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br [acessado em agosto de 2019] CALDART, R. S.; PEREIRA, I. B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. Dicionário da Educação do Campo. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
GONÇALVES, Albenir Itaboraí Querubini; CERESÉR, Cassiano Portella. Função ambiental da propriedade rural e dos contratos agrários. Editora Leud: São Paulo, 2013.
NETO, Antonio Julio Menezes. A Igreja Católica e os movimentos sociais do campo: a teologia da libertação e o movimento dos trabalhadores rurais sem terra. CADERNO CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 331-341, Maio/Ago. 2007.
PINTO, João Rodrigues. Metáforas da luta pela terra: a mística do MST. Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação. Blumenau, v. 5, n. 3, p. 287-301, set./dez. 2011.
SíNODO AMAZÔNICO. www.sinodoamazonico.va [acessado em agosto de 2019]