A ideologia das desigualdades: o núcleo das intolerâncias múltiplas
Atualmente nós somos atravessados por disputas políticas que desejam o monopólio representativo sobre a realidade. Uma batalha dessas expressa a demarcação sistemática e bélica das percepções unilaterais, incorpóreas e descoladas das vidas concretas que se manifestam a partir da pluralidade e da diferença. Dia após dia nós lemos o termo ideologia pairando longe dos seus sentidos mais profundos e alocado em discussões que turvam a realidade ao invés de lhe trazer luz.
Ao usar a ideologia como uma das marcas que potencializam a disputa desproporcional de força, os sujeitos que se reconhecem como norma, como universais e que são propositalmente desatentos às dinâmicas reais de desigualdade, violência e diversidade, sustentam uma descrição do mundo que não se contrasta.
A percepção desse sujeito norma escapa às múltiplas formas de existir que dão sentido à condição humana. Logo, se a ideologia, como afirma Marilena Chauí em seu texto A ideologia da competência , corresponde a um “corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras e preceitos) de caráter prescritivo, normativo e regulador” a sua competência, associada aos que constroem visões marcadas de mundo, se regozija na manutenção de uma realidade sem oposição, ou seja, na consolidação de um mundo que hipervaloriza a identidade em detrimento da perspectiva.
Queremos dizer que a ideologia desliza pela realidade como uma tecnologia de poder. Nesse sentido, percebemos que os sujeitos que detêm as forças constitutivas dos discursos fabricam o mundo a partir das suas técnicas de dominação, corrupção das consciências, e, mais, de naturalização das formas de degradação do outro.
O processo de banalização da violência e da morte do outro (simbólicas e objetivas) opera reiteradamente a partir das lentes de uma biopolítica — nos termos de Achille Mbembe, em sua obra Necropolítica —, ou seja, como construção da realidade política consolidada sobre uma norma central e forjada como mecanismo de controle. Esse mecanismo se baseia numa soberania que decide “quem pode viver e quem pode morrer”.
O continuum de força se manifesta através do biopoder retroalimenta as tecnologias que o sustenta. Os seus dispositivos que banalizam e destroem os traços da diferença são letais, mesmo que não aparentem ser.
Sueli Carneiro, importante filósofa brasileira, destaca no seu texto Escritos de uma vida, que a mídia e o poder econômico são artefatos expressivos na manutenção de um discurso homogeneizador e intolerante: “algumas ocorrências dentre os inúmeros ataques que indicam o impacto social das pregações, exorcismos e demonizações diariamente veiculadas pelas redes de televisão. Somam-se, como agravante, o poder político econômico dessas denominações religiosas que impedem aos que são atingidos por sua intolerância religiosa de exercerem o ‘direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem […]’ com prevê a Constituição.”
Quando pensamos que os discursos são atos e que, nessa dinâmica, eles se entranham no mundo dando a ele sentido, significado e forma nós somos inclinados a perceber que essa narrativa hegemônica de igualdade se deslocada da realidade e das suas nuances. Essa narrativa compõe, assim, uma ideologia da desigualdade.
A composição de uma ideologia da desigualdade se relaciona diretamente ao esforço reiterado para mascarar a diversidade do mundo. Tal empreendimento acontece em nome dos sujeitos que se veem como padrão e que criam representações/práticas que não suportam perder algo que para eles é bastante caro: o protagonismo político, afetivo e religioso, por exemplo.
O filósofo coreano Byung-Chul Han, em seu texto Agonia do Eros, afirma que “possuir, reconhecer e apreender são sinônimos de poder”. Nessa lógica, o sujeito norma exerce seu poder de continuidade discursiva sobre o mundo, mantendo a ideologia das desigualdades que, de modo perverso e dissimulado, ataca a diversidade como se ela fosse o real problema, quando, na verdade, o que é nocivo às cenas da vida comum são os efeitos que se desdobram do seu desejo pela a homogeneidade e pela não dialogicidade.
A não dialogicidade e o desejo pela homogeneidade marcam profunda e negativamente as representações e as ações dos sujeitos. A construção de uma consciência incorpórea, monológica e centralizadora é altamente enfraquecedora, deturpadora e destrutiva da nossa capacidade de encontrar o outro, enquanto outro.
Compreendemos que a impossibilidade do encontro, em nome de uma ideologia que destrói a diferença, preserva uma cosmovisão intolerante. Quanto menos aptos estivermos para o encontro, mais vetores de aniquilamento e guerra seremos. Descortinar essa ideologia que constrói e mantém as desigualdades em nome das visões homogêneas de mundo é urgente!
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.