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O que é a laicidade?

O que é a laicidade?

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A laicidade é um princípio institucional de harmonia entre todos os seres humanos fundada sobre o que os une, e não sobre o que os separa. Este princípio é realizado por meio dos dispositivos jurídicos da separação do Estado e as diferentes instituições religiosas, agnósticas ou ateias – e, além disso, da neutralidade do Estado em relação às várias opções para a consciência individual. Nesse sentido, é preciso diferenciar o adjetivo “laico” que diz respeito ao Estado e suas instituições, e o adjetivo secular que pode dizer respeito aos indivíduos, instituições não estatais, e a sociedade na qual estes vivem.

Caminhada pela Liberdade Religiosa (Foto: Raphael Costa)

Pode ser definida a laicidade como um regime social vivo, cujas instituições políticas são legitimadas pela soberania popular e não por elementos religiosos. A própria noção de democracia está estreitamente relacionada a ideia de laicidade. Muitos autores da ciência política entendem que a laicidade, assim como a ideia de República são concepções constitutivas para a realização e completude de uma democracia plena.

Se a laicidade significa o estado ideal de emancipação mútua de instituições filosófico-religiosas e do Estado, o movimento secular evoca a reivindicação histórica dessa emancipação secular. O movimento político secular defende e luta por uma ordem política democrática e laica – ao serviço dos cidadãos, em sua capacidade como tal; e não em sua identidade étnica, nacional, religiosa, identidade de gênero, ou orientação sexual etc. Portanto, nesse movimento está a ideia que o Estado não deve regular direitos de acordo com identidades, castas, classes sociais ou outra categoria que divida os cidadãos de um país. A laicidade dita que o Estado tenha uma conduta isonômica e neutra diante de seus cidadãos.

Assim,  o sistema político laico diferencia-se da tolerância, nos termos desenvolvidos por John Locke, em A Carta sobre a Tolerância (1689), Voltaire no Tratado sobre a Tolerância (1763) ou mesmo da tolerância ampliada de Pierre Bayle em “De la tolérance” (1686) que, ao contrário desta, admitia e aceitava a descrença. É importante notar, que ao contrário do sistema político tolerante, a democracia laica é incompatível com uma democracia de associação ou com o reconhecimento de corpos intermediários como, por exemplo, as comunidades.

É por isso, que a Assembleia Nacional francesa decretou em 1789: “É necessário recusar tudo aos judeus como nação; é necessário tudo lhes conceder como cidadãos” (LE MONITEUR UNIVERSAL, 2002, p. 69). Conforme a cientista política Catherine Kintzler:

Enquanto que a tolerância não fecha seus olhos para as convicções e aos pertencimentos – por que ela se abriu sobre sua multiplicidade a fim de reconhecer seu número real – e as vezes mesmo elegendo uma delas como religião oficial – a laicidade exige ao contrário que os ignore, por princípio e antecipadamente, considerando-se todas as convicções e pertencimentos como infinitos (KINTZLER, 2008, p. 27, tradução minha).

Assim, teríamos no mundo ocidental historicamente três conceitos políticos que determinariam a relação do Estado com a consciência e a religião: 1. A Tolerância restrita (Locke); 2. A Tolerância ampliada (Bayle) e 3. A Laicidade. No senso comum, e mesmo em alguns textos legais, como, por exemplo, em nossa Constituição Federal, esses três sistemas políticos são frequentemente confundidos. Uma Constituição realmente laica deve garantir a liberdade de consciência e, não somente a de religião, pois uma norma assim elaborada excluiria ateus e agnósticos.

De forma bastante simplificada esses três sistemas podem ser explicados de forma resumida e esquemática:

TOLERÂNCIA RESTRITA (LOCKE) TOLERÂNCIA AMPLIADA (BAYLE) LAICIDADE
Autonomia de julgamento Sim Sim Sim
Separação do Público e do Privado Sim Sim Sim
Contingências das religiões Sim Sim Sim
Possibilidade de uma religião oficial ou de um dogma civil Sim. Basta que o poder público não exija obrigação Sim. Basta que ninguém seja obrigado Não. O poder público é obrigatoriamente neutro
As comunidades enquanto tais podem ser atores políticos reconhecidos? Sim, basta que ninguém seja obrigado a participação Sim, basta que ninguém seja obrigado a participação Não. A democracia laica não admite corpos políticos intermediários
Pode-se pensar a cidadania sem um fundamento religioso? Não Sim. Pode-se Deve-se
A Referência religiosa indesejável Não Proposição admissível em teoria Proposição suficiente e necessária
Contingência da crença como forma política A descrença ou o ateísmo dissolve toda a possibilidade de vínculo político Os não-crentes temem a lei civil A associação não deve em sua teoria a vínculos préexistentes

O termo laicidade vem da palavra grega laos que significa que as pessoas são entendidas como uma unidade indivisível, última referência de todas as decisões tomadas pelo bem comum. O secularismo acolhe esse ideal universal de organização da cidade e dispositivo jurídico que se funda e realiza sobre sua base.

A laicidade como Henri Pena-Ruiz (2003) diz, “é a palavra para o ideal de emancipação da esfera pública no que diz respeito a qualquer autoridade religiosa ou, num sentido mais amplo de toda a tutela do Estado, que para ser democrático, deve ser de todos e não apenas de alguns”.

Laicidade tem como base três pilares: a liberdade de consciência, o que significa que a religião é livre, mas apenas diz respeitos aos crentes, e que o ateísmo é livre mas apenas afeta os ateus; a igualdade de direitos, que impede todo privilégio público da religião ou do ateísmo; e a universalidade da ação pública, isto é, sem discriminação de nenhum tipo.

Essas são as três exigências indissociáveis da laicidade, afirma Henri Peña-Ruiz.

OS PRINCÍPIOS DA LAICIDADE

A liberdade de consciência. A consciência é livre para aderir a qualquer escolha espiritual, seja crente, agnóstica ou ateia, ou a não aderir a qualquer ou para mudar de opinião (a apostasia é um direito que deve ser garantido pelo Estado).

Separação do Estado e da Religião. Isto implica uma clara distinção entre o público e o privado, e a estrita separação entre política e religião ou outras particularidades.

A igualdade de tratamento de todos os cidadãos. A neutralidade do Estado laico requer que nenhuma escolha particular ou contingência (religiosas ou não) sejam discriminadas positivamente ou negativamente. Não pode haver privilégios públicos de uma opinião ou pertencimento comunitário em um Estado Laico. Somente assim se garante a igualdade, considerando-se todos os indivíduos como cidadãos livres. Nesse sentido, está claro que quando LGBTs brasileiros pedem direitos iguais aos cidadãos heterossexuais, como por exemplo, o direito ao casamento, ou a proibição da discriminação motivada por identidade de gênero ou orientação sexual – isto nada tem a ver com privilégios, mas pelo contrário, diz respeito a isonomia Estatal e a igualdade de direitos. Na democracia laica nenhum grupo de cidadãos pode ter menos direitos do que aqueles concedidos ao conjunto da cidadania.

A Busca do bem comum como a única razão para o Estado. Os gregos chamavam “koinonia” o princípio de que o exercício da cidadania deve ter como referência apenas o bem comum (koinonia), colocando entre parênteses os interesses privados. O estado laico está ancorado no princípio republicano que se refere ao bem comum como princípio universal. Não deve haver, portanto, financiamento público legítimo de culto privado. Esse financiamento deve ser atribuído exclusivamente ao que é de interesse geral. O secularismo é, assim, comprometido com a defesa dos serviços públicos, ou seja, o uso do orçamento público para serviços que são de interesse geral (educação, saúde, segurança social etc.), e não para interesses privados, étnicos, setoriais ou comunitários.

ESCLARECIMENTOS

  • A laicidade não é antirreligiosa, pois isso iria contra o princípio da liberdade de consciência que anima o ideal secular. Também não é anticlerical, se por isso se entende uma oposição frontal ao exercício das funções do
  • A laicidade não é o ateísmo ou agnosticismo. A laicidade procura uma forma de convivência institucional, uma organização política da sociedade, enquanto o ateísmo ou agnosticismo são visões de mundo na qual o divino não está incluído.
  • Religião não é o mesmo que clericalismo. O clericalismo, que luta contra o movimento laicista é uma tendência política ilegítima da religião, ou seja, é a pretensão de domínio de uma escolha ou contingência espiritual em particular sobre esfera pública. O secularismo não é anticlerical, quando o clero tem um papel dentro dos limites da sua comunidade religiosa; mas torna-se anticlerical, em virtude de seus princípios, quando o clero pretende ir além dos limites da sua própria comunidade religiosa e tenta impor uma certa concepção da lei (comum) a partir de uma certa concepção da fé (particular). Um exemplo bastante óbvio é aquele dos religiosos que tentam impor suas concepções morais ligadas a leituras fundamentalistas da Bíblia a toda a sociedade, tentando combater os direitos LGBTs, o direito do uso ao próprio corpo ou manifestações de grupos que se choquem com suas concepções filosófico-morais.
  • Defender a liberdade de consciência não é adotar uma postura relativista. A neutralidade do Estado laico não significa que a relatividade dos valores morais (relativismo), e muito menos falta de valores (niilismo). Na verdade, o secularismo assume fortes valores morais e de salvaguarda que os asseguram, mas não valores particulares que vêm de uma matriz particularista, mas valores universais, que são baseadas nos direitos humanos (liberdade de consciência, autonomia moral, a igualdade entre homens e a mulher, dignidade de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, a liberdade para decidir sobre o aborto, etc.). Aqueles de setores clericais que se apregoam o papel de guardiães da moralidade tendem a negar a validade universal dos valores morais defendidos pela democracia laica e pelo secularismo.
  • A luta pela laicidade é a luta pela emancipação das consciências. Mas essa luta vai ser incompleta se seguir uma religião em particular, enquanto essa desfruta de privilégios ilegais na esfera pública, e, sobretudo, nas escolas públicas. Portanto, a laicidade exige a separação entre o Estado e as igrejas, o poder político e as instituições religiosas, bem como a abolição de toda tutela da consciência humana, como condição de possibilidade para a emancipação humana. Daí a sua relação especial com a racionalidade e pensamento livre.

 


Referências

KINTZLER, Catherine. Qu´est-ce que la Laïcité? Deuxème édition. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 2008.
LE MONITEUR UNIVERSAL, 23 décembre 1789 In: R. NEHER-BERNHEIM. Histoire juive de la Révolution à l´État d´Istaël, Paris, Seuil, 2002.
PENA-RUIZ, Henri. Qu´est-ce que la laïcité? Paris, Gallimard, 2003.