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Deus condena ou Deus aceita? Cristianismo e diversidade sexual no Brasil

Deus condena ou Deus aceita? Cristianismo e diversidade sexual no Brasil

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O interesse pelo tema da sexualidade e do gênero e suas intersecções com o fenômeno da vida religiosa na sociedade brasileira já completou duas décadas, insuflado pelo  debate público sobre os direitos sexuais e sobre o papel do Estado na proteção social de minorias políticas como mulheres e lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT).

A Constituição Cidadã de 1988, colocou em novos patamares as demandas dos movimentos coletivos por reconhecimento e legitimidade, por demarcar a responsabilidade do Estado em construir políticas públicas voltadas para o acesso dessas populações à serviços, programas e políticas sociais amparadas em ideais de igualdade e equidade. Essa ampla discussão envolveu a abordagem de problematizações em torno da liberdade religiosa e da laicidade do Estado.  No país, ocorreu um incremento do tema com a participação de atores em agendas internacionais, em conferências, fóruns e outras associações e redes de direitos humanos (Nagamine e Natividade, 2016; Adorno, 2008). Há quase duas décadas eu acompanho tais debates, identificando avanços e transformações, retrocessos e permanências, bem como núcleos de tensão no Brasil. E é sobre essas novidades e dinâmicas que me debruçarei nesse muito breve artigo.

HOMOFOBIA E CRISTIANISMO

Desde que comecei a pesquisar “religião e direitos sexuais” foi evidente como identidades e comportamentos dissonantes da norma da heterossexualidade eram objeto de hostilidade por parte das correntes religiosas hegemônicas no Brasil. Um exemplo muito expressivo é a histórica obstrução dos direitos civis das populações LGBT pelas ditas bancadas religiosas (Câmara, 2002; Mello, 2005; Natividade, 2008; Natividade e Lopes, 2009). Os debates sobre casamento gay, adoção de casais por pessoas do mesmo sexo e sobre a criminalização da homofobia galvanizaram atenção de instituições religiosas, produzindo uma verdadeira explosão discursiva sobre sexo e gênero nas igrejas e redes religiosas (Natividade, 2008). Esse interesse alcançou as esferas da vida pública e ensejou a participação destes sujeitos na vida legislativa brasileira, bem como na presença em cargos do executivo e da dita política pública. Por outro lado, também nos púlpitos, nas interações cotidianas nas congregações,  prevalece o controle da sexualidade, por meio da promessa de “cura gay” e outros trabalhos pastorais que prometem transformar homossexuais em supostos heterossexuais (Natividade, 2009; Natividade e Oliveira, 2013; Robinson and Spiven, 2007). Um exemplo é expresso na publicação de literatura religiosa (nacional e estrangeira) de gênero autoajuda, que ensina a “se libertar do homossexualismo”, sob a tutela de missionários, médicos, psicólogos e psiquiatras cristãos. Estes fatos sociológicos evidenciam o tratamento que a diversidade sexual recebe de correntes do cristianismo no Brasil ao longo de décadas. De um ponto de vista generalista, as religiões cristãs cultivam hegemonicamente visões negativas sobre a diversidade sexual. Esse enquadramento faz com que seja cultivado um senso comum que liga homofobia e religiões cristãs. O desafio, então, é ir além dessa visão e compreender dinâmicas sociais em curso. Reporto ao argumento da antropóloga Kath Weston (1993), quando discute os limites de pensar o debate em termos da ‘tolerância’ ou da ‘intolerância’. Para ela, essa dicotomia, mais atrapalha que ajuda. Mais produtivo é investigar negociações, dissidências, movimentos, ambivalências, disputas que alteram o curso dessa relação.

NOVOS ENLACES?

Ao reconstituir uma memória das formas de atuação do movimento gay norte-americano, Humpreys (1972) faz um produtivo resgate etnográfico do modo como igrejas protestantes – nos Estados Unidos – foram ambientes sociais que acolheram movimentações embrionárias dos coletivos gays e lésbicos. Dessa aglomeração participavam leigos, clérigos, pessoas sem religião, cujo interesse em problematizar as hierarquias entre pessoas homossexuais e pessoas heterossexuais se pluralizaram em múltiplos cursos de ação. Um deles originou a criação de igrejas específicas, as comunidades gays e lésbicas nos Estados Unidos, na década de 1960, com o surgimento da pioneira Metropolitan Church, a Primeira Igreja da Comunidade Metropolitana em Los Angeles (Natividade, 2010).

Os nexos entre sexualidades gays e lésbicas e cristianismo são apontados pelo historiador John Boswell (1980; 1994). Ele descreve como correntes do cristianismo cultivaram posturas de ‘abertura’ para a diversidade sexual em distintos momentos históricos, inclusive realizando cerimônias de ‘união’ homoafetiva entre pessoas do mesmo sexo, em fins da Idade Média. Os livros de Boswell são referência para quem quer compreender os significados das interações homoeróticas em um dado contexto, a partir de fontes da historiografia que trabalham sobre documentos das cúrias e outras fontes da hierarquia religiosa da Igreja Católica. A hipótese sustentada por Boswell, é que o preconceito sexual reproduzido nas proibições oficiais da Igreja não advém essencialmente da religião, mas reflete as convenções culturais de uma dada sociedade, um certo ‘espírito do tempo’ e, por este motivo, tais posições são frequentemente interpeladas pelas mudanças que afetam os contextos.

Buscando compreender essa tensão a partir de novos fatos e eventos, observa-se, no cenário global e no Brasil, que a Igreja Episcopal Anglicana tem sido agitada por debates em torno da ordenação de pastores homossexuais. Nos últimos anos se consolidaram em comunidades anglicanas a criação de redes LGBT, como na cidade de São Paulo, onde já se realizou, inclusive, casamentos homoafetivos, como informa reportagem de O Globo, Portal G1, de 28 de novembro de 2018: “Igreja Anglicana realiza primeiro casamento gay de São Paulo”, ao noticiar a cerimônia de união de duas lésbicas. A matéria informa ainda que uma assembleia que reuniu clérigos e bispos em Brasília aprovou o casamento homoafetivo, por 57 favoráveis a 3 contrários, em 2018. O casamento passou a ser definido, “entre duas pessoas”, destacando não ser relevante o sexo biológico e gênero delas. Na mesma linha, a Igreja Presbiteriana norte-americana reviu sua constituição e aprovou, em março de 2014, o casamento gay e lésbico ao retificar sua redação, passando a defini-lo também como “entre duas pessoas” e não mais entre “homem e mulher”. Também em 2014, a Igreja Batista norte-americana aprovou em nova convenção a adesão de fiéis LGBT, passando a permitir explicitamente a existência de membresia com essa orientação sexual.

Na linha dos redirecionamentos, um importante líder norte-americano de um ministério evangélico interdenominacional que assumia a alcunha de coletivo “ex-gay”, o Êxodus Internacional, fechou as portas desta instituição e, em carta pública, pediu desculpas à comunidade homossexual pelo trabalho pastoral de “cura da homossexualidade”, passando a qualifica-lo como “uma falácia” e admitindo não haver “cura” para a homossexualidade. Posteriormente, acompanhamos nas mídias, a realização de um casamento com pessoa de mesmo sexo, por outra de suas lideranças. No cenário internacional, discursos papais recentes têm sido interpretados pelos movimentos como mais abertos e hospitaleiros à homossexualidade. Acompanhei notícias sobre ocasião em que o Papa Francisco recebeu uma pessoa transexual no Vaticano com discursos de “amor” e “aceitação” divina, em 2015, possibilitando redimensionar o interdito das sexualidades dissidentes.

No Brasil, uma das mais importantes lideranças religiosas do mundo evangélico, o Bispo Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), proferiu falas positivas no tocante à homossexualidade em discursos públicos, supostamente afirmando: “Muitos evangélicos levantam bandeiras contra gays e lésbicas. Jesus faria isso? Gays e lésbicas também são bem vindos à Igreja Universal do Reino de Deus”.  É amparado nesse olhar religioso que o Bispo Macedo apresentou a reflexão de que evangélicos não precisariam ser contrários aos direitos civis de comunidades LGBT. Tais declarações foram objeto de contestação e controvérsia, estabelecendo, apesar do debate, tensões no campo que apontam para a conformação de fissuras e contrariedades que agitam as cenas religiosas contemporâneas. Os fatos em questão lançam novas luzes para essas disputas e para as fronteiras reconfiguradas entre laico e religioso na sociedade brasileira.

Outra importante figura pública do meio evangélico mudou de posição. A missionária Lana Holder, uma “ex-lésbica” se ‘desconverteu’ – ou seja, se ‘converteu’ às  proliferantes e dissidentes igrejas inclusivas (ou igrejas gays) brasileiras e assumiu a identidade de uma “lésbica de Jesus”, criando uma das maiores igrejas pentecostais inclusivas no Brasil, a Igreja Cidade Refúgio, em São Paulo. Lana Holder e sua companheira são figuras carismáticas que se dirigem ao público jovem e atraem ao interior de seus templos uma parcela numerosa da população homossexual paulistana. Em suas congregações, a Cidade Refúgio promove cultos, reuniões de oração, mas também atividades de sociabilidade como haves gospel e festas LGBT evangélicas.

Igrejas inclusivas ou “igrejas LGBT” existem no Brasil desde os anos 2000 e conquistam cada vez mais legitimidade no campo religioso brasileiro, apesar de serem ainda representantes de uma corrente minoritária. Como movimento emergente (Mariz, 2013) elas atravessam um importante processo de institucionalização, ampliando suas congregações no território brasileiro em distintas regiões do país e aumentando sua aparição nas mídias e na sociedade brasileira. O discurso inclusivo, sua teologia emergente e falas públicas colaboram para reposicionar as definições de pecado, concebendo as sexualidades LGBT como “benção divina”. Em tais congregações, gays, lésbicas e pessoas transgêneros se tornam pastores e pastoras, presbíteros e presbíteras, diáconos e diaconisas, obreiros e obreiras, exercendo a vida eclesial e compatibilizando cristianismo e sexualidades LGBT. A mensagem religiosa, frequentemente, inclui pessoas em trânsito de gênero na salvação, ou seja, elas não estão destinadas à danação eterna, como na maior parte das igrejas do tradicionalismo cristão. Denominações inclusivas também reconfiguram modelos de família, ao atuar em defesa do casamento igualitário e da adoção de crianças por casais de mesmo sexo. É crescente número de casais gays e lésbicos que busca oficializar sua relação pro meio de união estável ou de casamento civil entre seus participantes. Seguindo essa linha, os direitos civis das pessoas LGBT são o pão cotidiano das conversas e dos púlpitos nas congregações inclusivas brasileiras.

Esse texto é repleto lacunas, mas penso cumprir o propósito de mostrar novas relações entre diversidade sexual e cristianismo, a partir de recentes fatos e eventos, apresentando aspectos de renovação da tradição religiosa bem como formas de agência que grassam a sociedade brasileira e afetam as instituições religiosas, levando tanto ao endosso do tradicionalismo, mas também à  revisão de seus valores, modelos e ideais. Espero ter colaborado para um olhar sobre o religioso situado menos em uma perspectiva essencialista e mais no chão do construtivismo antropológico, ao abrir mão dos rótulos de tolerantes ou intolerantes e privilegiar a análise das dinâmicas e invenções em contexto.


Referências

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