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Violência e religião: um olhar a partir da psicologia

Violência e religião: um olhar a partir da psicologia

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Nomes como Martin Luther King ou Dorothy Stang estarão sempre associados à tentativa, interrompida pela violência, de fazer uso da experiência do sagrado como um viés de pacificação humana. Entretanto, se por um lado a religião pode ser promotora da paz e fomentadora daquela utopia que nos move ao que nos falta, especialmente o bem comum, ela também pode, e por muitas vezes endereça, a anulação de um dos maiores direitos humanos: não ser exterminado pelo outro. Aqui, o extermínio é físico e simbólico, que vai desde o discurso que aprisiona o corpo à aniquilação material deste. E, a respeito do corpo, talvez nunca tenhamos visto uma ditadura pós-moderna tão à la medieval.

A psicologia, ciência e profissão que angaria neutralidade, faz as suas fronteiras com a religião de modo cauteloso, parcimonioso. Tem o compromisso social e os direitos humanos como uma das suas atribuições mais propedêuticas, embora surjam, vez ou outra, figuras que manipulam o sofrimento humano elegendo a religião como uma pedagogia curativa, o que é abominado pelos Conselhos que representam esta classe. Reconhecer a experiência religiosa como uma das possíveis alternativas de promoção da vida difere ética e essencialmente de tomá-la como técnica executada às quatro paredes de um consultório, o que violenta, aprisiona e enquadra o sujeito à experiência fetichista daquele que a inventa. Sim, é uma invenção! Um jogo sádico e de a-sujeitamento, não menos parecido com as outras diversas formas de violência que transportam o sujeito à categoria de ‘objeto de gozo do Outro’, como assinala um dos conceitos da abordagem psicanalítica.

O que nos move, porém, à violência? A comunicação entre a pulsão de vida (Eros) e a pulsão de morte (Tânato) – termos cunhados por Sigmund Freud, especialmente em Além do princípio do prazer (1920) – corroboram a hipótese do médico de Viena de que, mesmo que o aparelho psíquico seja regido por um princípio de prazer, a matemática do funcionamento do mesmo é a de tentar zerar ou reduzir, o quanto possível, a excitação interna ou externa. A pulsão de morte funciona, assim, como movimento destrutivo ou criativo, simultaneamente, o que talvez explique, inclusive, o porquê do desenvolvimento tecnológico que as guerras promoveram ser vislumbrado com entusiasmo, impregnando no homem uma cultura de guerra. A resposta sobre o quesito da violência virá, dentre em outras publicações, em um diálogo entre o pai da psicanálise e o pai da física moderna.  Freud e Einstein, em 1932, escreveram Por que a guerra?, texto oriundo da troca de cartas entre alguns dos homens mais influentes sobre o pensamento ocidental.

Respondendo à pergunta de Einstein sobre se é possível livrar a humanidade da guerra, Freud inicia a sua deliberação observando que é por meio do uso da violência que os conflitos de interesses entre os homens são resolvidos, desde através da força muscular à transferência do poder a uma unidade maior, como o Estado, o que se mantém por meio dos laços emocionais entre os seus membros ou, em outras palavras, por vida da identificação. Na carta, ao utilizar os seus conceitos sobre as pulsões, o psicanalista retoma a ideia de forças ambivalentes que se comunicam, elegendo os motivos idealistas como desculpas para práticas destrutivas, em nome exatamente da satisfação: um modo do organismo preservar a própria vida destruindo a alheia.

Assim, a religião, possivelmente uma das produções humanas mais viscerais, quando utilizada como palco para a proliferação de ideais e identificações, corre o risco de se tornar um espetáculo de ordenamentos, enquadramentos e foraclusão dos sujeitos. Tal massificação estimula a violência, em nome do sagrado, em detrimento de interesses fascistas; e não faltam adeptos, já que em tempos de ‘Modernidade Líquida’, o fundamentalismo promete a vacante satisfação que as incertezas e inseguranças deste tempo não podem assegurar. Culto às armas de fogo, indústria bélica em perene expansão, sistemas de saúde pública ineficazes, muros: esses são alguns dos diversos elementos que compõem a cultura de violência que prega a segurança e o direito à autoproteção, todos travestidos para não revelar algo daquilo que há de mais genuíno no medo humano, a saber, a dificuldade, a resistência e o apavoramento para lidar com o diferente. E, frente a tanta diversidade religiosa, o sagrado do outro pode, por hora, aparentar o que há de mais estranho em nós. Mas, de fato, é só aparência.

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Referências

SIGMUND, Freud. Além do princípio do prazer (1920-1976), In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol XVII.
_____. Por que a guerra? (1933), In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Vol XXII.