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Religião e a Banalidade do Mal

Religião e a Banalidade do Mal

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Foto: Kat J

Em um dos diálogos platônicos, Sócrates, protagonista de quase todos eles, chega atrasado e pede a um sofista (personagem que não se dava muito bem com Sócrates) que, encarecidamente, resuma seu discurso proferido na Ágora. Metáfora belíssima esta para falarmos de reflexão. Ela sempre chega “após”. Ela é como a coruja de Minerva que alça voo no final do dia, no entardecer, quando todas as certezas são colocadas em suspenso e não podemos afirmar plenamente se é o começo da noite ou o final do dia, talvez os dois. A coruja, em atitude de recolhimento, sobrevoa, percebe, vê, repara, silencia. E quanto mais anoitece, mais seu olhar é aguçado. A reflexão não deveria ser assim? Em momentos de crise ou de profunda incredulidade na humanidade, em momentos de escuridão, não deveríamos estar mais atentos? A metáfora não para por aí. Nosso personagem, Sócrates, insistentemente pede ao interlocutor que explique melhor suas afirmações, pois percebe nelas algumas contradições. Ao solicitar, ironicamente, essa “gentileza”, a justifica com o fato de que, em sua casa, ele tem um inquilino que irá perguntá-lo sobre o dia e suas andanças e, se ele não souber explicar, sem contradições, ao inquilino o que aconteceu, este não o deixaria dormir. Sabe-se que Sócrates não possuía inquilino nenhum. Ele se referia à sua consciência, seu daimonion, que o cobrava explicações sobre os caminhos percorridos, atalhos escolhidos, partidas e chegadas. Com isso, aprendemos que o pensamento grego define a postura reflexiva como a capacidade de travarmos um “diálogo consigo mesmo”, como nos apresenta o filósofo Platão.

Para entendermos bem a ideia de banalidade do mal, a partir de Hannah Arendt, é necessário nos atentarmos para esse aspecto da filosofia socrático-platônica, pois é aí que ela vai buscar fôlego para a construção de grande parte de sua obra. Ao contrário do que se pensa, quando falamos em mal banal não estamos nos referindo a uma possível trivialidade em relação à questão ética ligada ao mal, muito menos a uma espécie de ideologia em que o mal se torna comum em uma determinada sociedade. É mais que isso. O mal é banal não porque ele se repete constantemente, a ponto de ser naturalizado por certa comunidade, mas pelo fato de ele ser praticado por pessoas que seriam incapazes de se perguntar sobre a moralidade de suas ações, isto é, uma ação com certo vazio reflexivo, pessoas comuns, incapazes do diálogo consigo mesmas. Quando Arendt levanta a questão ética sobre o Mal (questão que perpassa quase toda história da filosofia, desde os Gregos, passando por Agostinho e Kant), ela afasta nossa visão sobre um mal que seria cometido por um monstro, um sádico, alguém diabólico, apresentando a possibilidade de o mal ser praticado por qualquer pessoa que, imersa em uma ideologia qualquer, se abstém de suas capacidades reflexivas.

A pensadora é levada a essas conclusões após assistir ao julgamento de Eichmann, oficial nazista responsável por encaminhar judeus para campos de concentração. Durante o julgamento, ela se propõe a entender o processo mental em jogo daqueles que, de cidadãos comuns, transformaram-se em pessoas que participaram ativamente no assassinato em massa de outras pessoas. E suas descobertas são elucidativas. Conforme foi dito, ela não se depara com um monstro diabólico, mas com um cidadão perfeitamente comum, pai de família amoroso e cumpridor de suas tarefas. Eichmann chega a alegar que ele estava sendo condenado não por um crime, mas por uma virtude: o fato de ser um oficial disciplinado, um bom cumpridor de ordens. Justamente aí encontramos o ponto nevrálgico dessa discussão. O bom cumpridor de ordens se utiliza de um pensamento e, consequentemente, de uma linguagem burocrática, com slogans e frases prontas, com dogmas que a ela só cabe obedecer, justificando isso em uma espécie de “vontade superior”, como era o caso de Eichmann, que, por diversas vezes, falava em “destino do povo alemão”, de uma guerra que fazia parte da “evolução histórica do povo alemão”, chegando, inclusive, a afirmar, por diversas vezes, que não odiava o povo judeu. A grande questão é que ele dava provas de que realmente acreditava nisso e, nesse sentido, não se sentia culpado pelos crimes a ele imputados.

Essa reflexão faz com que a pensadora canalize sua energia para combater, antes da questão do mal como um problema metafísico, as estruturas político-burocráticas que impedem a reflexão. Sendo assim, é possível existir totalitarismo sempre quando perdemos a capacidade reflexiva, tal qual apontava Platão, de travarmos um debate conosco mesmos, percebendo nossas contradições e interstícios. Toda vez que voltamos para nossa casa e não somos capazes de dizer ao nosso “inquilino” o que fazemos, por que fazemos, por quem fazemos e para que fazemos, corremos o risco de uma vida robótica, escrava e banal se instaurar. Isso é um alimento vigoroso aos traços totalitários, pois assim podemos praticar o mal tingido de bem, patriotismo, de valores superiores e até de Deus.

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Quando algumas instituições, como as religiões, por exemplo, legitimam a destruição do outro, colocam-se como inimigas de uma sociedade plural e se tornam adeptas do discurso único, elas se transformam em meios de transporte para agentes do mal banal e porta-vozes de uma prática irrefletida que distanciam o re-ligare da re-flexão. Diante de tempos sombrios como esses em que vivemos, em que o útil parece não dar espaço ao ético, é preciso re-suscitar grandes questionamentos sobre o caminho de nossas condutas morais. É claro que teremos dilemas! E quanto mais dilemas, mais necessidade de reflexão aprofundada; quanto mais necessidade de reflexão aprofundada, mais antídoto teremos para nos afastar da prática do mal.