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Mídia e Religião: O espetáculo que pode se devotar à violência simbólica

Mídia e Religião: O espetáculo que pode se devotar à violência simbólica

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“Não posso deixar de manifestar a dor e a vergonha que sinto diante do dano irreparável causado às crianças por parte dos ministros da Igreja”. A declaração é de Papa Francisco em visita recente ao Chile. A mensagem ganhou os meios de comunicação do mundo todo. Isso porque trouxe uma narrativa de remissão da Igreja Católica – e do seu personagem mais proeminente – às vítimas de pedofilia praticada por alguns religiosos.

O discurso de Francisco é um prato cheio para jornalistas. O enunciado é disruptivo e acomoda-se à gramática midiática, a qual considera acontecimento como aquilo que rompe a ordem do dia, uma ficcionalização do real por meio do espetáculo. Modelo que virou regra para vender notícias, especialmente em época do chamado “Jornalismo de Feed de Notícias”, o qual se sustenta pelas manchetes impactantes, capazes de redirecionar usuários de redes sociais para sites noticiosos, ou seja, a pulsão pós-moderna pelo clique.

Essa é uma prática perversa da interface entre mídia e religião. Isso porque esvazia o raciocínio ideológico a favor de uma leitura fácil, atraente, cujos atores envolvidos assemelham-se às celebridades, dispostos a se exporem em quaisquer enredos que garantam visibilidade midiática. Na sociedade de massa virtual, destacar-se é o mesmo que ter vida, ao passo que permanecer ou voltar para a multidão seria uma sentença de morte decretada pelo anonimato.

Ao esvaziar o discurso por meio do espetáculo, mídia e religião criam a pretensa sensação de culpa remida. Mas, são nas camadas discursivas decantadasque se configuram a chamada violência simbólica. É que “dor e vergonha” não curam cicatrizes, apenas ensejam a espetacularização de uma narrativa de redenção forjada para os públicos sem rosto. Os quais consomem o enredo como se fosse de uma telenovela, castigando vilões ao final da trama.

É nesse sentido que a apropriação da linguagem midiática se torna um aparelho ideológico de religiões. Pasteurizado por e para os meios instantâneos, o discurso não cumpre sua função de problematizar pontos cruciais relativos aos Direitos Humanos, como a dignidade da pessoa em sua plenitude. Não que o pedido de perdão não seja louvável. No entanto, por si só, é uma cantilena que preserva o lugar de poder engendrado por meio da interseção entre os enunciados da mídia e da religião. Remir a culpa é o clímax, para um final posterior sem mais.

Acomodação

Os contornos discursivos da religiosidade produzidos para figurar na mídia constroem um efeito de sentido de vilania humana diante de um Deus criado em sua perfeição. Os porta-vozes terrenos dessa entidade sublime são juízes do Apocalipse da humanidade, fadada ao pecado e, portanto, ao fracasso. Contexto que é reiterado nas aparições midiáticas da promotoria da religiosidade.

A perspectiva é niilista, não há como fugir. O maniqueísmo é a fórmula exata do roteiro. Não há que se problematizar nada. Tudo está no seu devido lugar, os bons e os maus. Basta escolher um caminho. Na tela da TV, computador ou smartphone, a escolha parece ser da audiência. Mas, lembre-se, ao recusar seguir o caminho já traçado pelo “bem”, as consequências serão as piores possíveis.

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As estradas, no entanto, se bifurcam e surge o que o literato Silviano Santiago chamou de entre-lugar, um tempo e um espaço da travessia, que está no meio, além das absolvições e condenações, da pura metafísica que busca respostas binárias para um universo demasiado complexo.

Essa abstração configura-se como uma categoria de análise fundamental para o entendimento dos atores e seus textospara o público não-presente à frente do púlpito. A enunciação deve ser eloquente, emotiva e de fácil penetração aos receptores desconhecidos.

Esse é o cerne da questão. Para se legitimarem, as instâncias religiosas acomodam-se à gramática mediatizada, espetacularizada. Fogem, por via de regra, ao debate aprofundado para figurar no mainstream pensado para Homer Simpson, como asseverou William Bonner quando perguntado sobre o texto adequado para a audiência de um telejornal.

Numa visão dos primeiros cristãos, considerados heréticos pelo catolicismo nascente enquanto instituição, Deus, diante da criação de todo o cosmos, perdeu energia e se afastou dos homens. Portanto, cabe aos homens trazer Deus para si. Um Deus antropológico que é piedoso e capaz de transformar o âmago da existência na Terra, condenada pelo artificialismo midiático-religioso do maniqueísmo. Visceralmente engendrado na oposição entre mocinhos e vilões. Resta saber o quão disposta a humanidade está em trazer essa entidade para perto de si.